21 de out. de 2018

TEXTO MODELO: ENVELHECIMENTO POPULACIONAL E SEUS DESAFIOS


Outrora, a velhice era uma dignidade; hoje ela é um peso”. A constatação de Francois Chateabriand revela um cenário de descaso e persistente desrespeito aos idosos, vistos como fardo na sociedade atual. Cotidianamente, não são raros os casos em que o público senil sofre com a intolerância quanto às necessidades específicas dessa fase da vida. Tal sofrimento decorre, em grande parte das vezes, dos descuidos familiares quanto aos mais velhos e da ausência de uma consciência legal e social que zele pelos direitos da terceira idade.
Em primeiro lugar, é importante ressaltar que é no âmbito doméstico que o desrespeito a quem está envelhecendo se torna mais expressivo. Devido ao choque de gerações é comum haver incompreensão e isolamento, uma vez que os mais novos não entendem os anseios de quem já passou dos sessenta anos. Essa desarmonia é traduzida em maus-tratos, agressões físicas e falta de atenção e carinho, fatores que agravam uma realidade de solidão, a qual, em muitos casos, culmina em doenças psicológicas, como a depressão. Além disso, em alguns lares os idosos são explorados financeiramente, tendo seus – já escassos – recursos subtraídos para o sustento da prole. Assim, esse público se vê constantemente desprezado e a alegria de existir se desfaz.
Ademais, na esfera social a persistência do descaso é também visível. O Estatuto do Idoso é um conjunto de leis destinado a garantir o bem-estar social daqueles que têm mais de sessenta anos. No entanto, esse aparato legal não é facilmente acatado, fato perceptível em situações simples do cotidiano: as vagas privativas são poucas e, comumente, são ocupadas pelo público jovem; as filas preferenciais são insuficientes para garantir atendimento rápido e a assistência médica é parca em relação à demanda do público mais velho. Outro fator importante é que não há um investimento público permanente com o intuito de garantir lazer e atividades esportivas aos idosos. A obra fílmica “Up: altas aventuras” apresenta o cotidiano de um velhinho que amarga a solidão e vive imerso na saudade, o que o torna mal humorado e infeliz. Para além do universo ficcional, a velhice, no contexto brasileiro, também se faz sinônimo de tristezas e reflexo de invisibilidade familiar e social.
Portanto, para amenizar os impasses relacionados ao persistente desrespeito ao idoso na sociedade brasileira, medidas são necessárias e urgentes. Diante disso, a família deve ser conscientizada, por meio da divulgação nas mídias sociais, sobre a valorização do cidadão senil e de sua experiência de vida. Além disso, é dever do Estado promover maior fiscalização quanto ao cumprimento do Estatuto do Idoso, estabelecendo punições severas àqueles que violarem as leis. Para isso, uma ouvidoria específica ou um canal telefônico para registrar denúncias de ações contra os anciãos da sociedade é relevante, a fim de evitar a omissão quanto ao problema. Atendimento público de qualidade, nos serviços básicos e na realidade hospitalar, contribuirá também para atenuar o impasse. Ações assim auxiliarão para que o corpo social se porte com alteridade e o respeito à terceira idade seja uma marca do envelhecimento no contexto contemporâneo.

17 de nov. de 2017

Doce Novembro

Chegue com doçura, Novembro
e anuncie algo vindo do futuro.
Novo tempos, felicidade em garrafadas.

Abomina este teu cheiro pagão de morte.
Jogue perfume e descanso neste cansaço íntimo de mim. 

Venha, Novembro!
Encha-me de lirismo
Mostra-me a face nova do amor.

Diga-me que Dezembro fará da
nova vida doce de ser feliz,
sol de dormir tarde, canção para
bailar, música de esquecer o medo.

Que em ti, Novembro, os sonhos amanheçam
reais e a tristeza seja deixada na solidão
de um qualquer cais.

4 de nov. de 2017

Tema: Desafios na doação de órgão no Brasil


Descanso ao “operário das ruínas
Por Daniele Ribeiro
O momento da morte é marcado pela dor. Em face do fim, os homens, comumente, refletem quanto ao sentido do ser e sobre como fazer da continuidade da existência um tempo valoroso. É por esse motivo que a doação de órgãos poderia ser o instante de oferecer vida àqueles que estão nas longas filas de espera por transplantes. A irreversibilidade da morte encefálica, tão comum, dado os elevados índices de óbitos no cotidiano do Brasil, não se converte em doações devido, especialmente, à negativa familiar e à, ainda, ineficiente gestão de saúde para que o processo seja rápido e de sucesso.
Verme – “operário das ruínas”. É com essa definição que o poeta incluso no rol dos pré-modernistas, Augusto dos Anjos, define o que estará em ação após a morte. No entanto, essa realidade pode ser amenizada já que alguns órgãos podem continuar a viver em outras pessoas. Contudo, o luto associado à falta de informação e mitos – quanto ao tráfico de órgãos e também a fé religiosa – impedem que as famílias façam a opção por doar. A ausência de altruísmo e a postura individualista da sociedade atual, características preditas por Bauman, definem, muitas vezes, a negativa, uma vez que a dor do momento, potencializada pela parca informação sobre a realidade das tristes filas de espera por uma esperança de vida, não dão espaço para que os corpos daqueles que faleceram cerebralmente  tenham um destino diferente da ação do “operário” descrito pelo “poeta do mau gosto”.
Além disso, mesmo sendo o Brasil reconhecido pelo sucesso nos transplantes que realiza, o país desperdiça parte dos órgãos que poderiam ser transplantados. Uma vez diagnosticada a morte encefálica, o que deve ser feito por um médico neurologista – profissional nem sempre presente, pelo menos de modo constante, nos hospitais públicos brasileiros -, o processo deve ser rápido e atendendo à vasta extensão territorial do país. Assim, as unidades hospitalares precisam ser ágeis na comunicação à Central de Captação de Órgãos, o que nem sempre acontece. Além disso, o corpo morto deve ser mantido em leitos, sob condições adequadas para que o transplante ocorra, atenção que, em um sistema público superlotado, nem sempre é prioridade, uma vez que esses leitos acabam sendo destinados a quem clinicamente tem condições de viver. Todos esses fatores frustram a esperança de que o corpo morto seja mais que “carne dada aos vermes” e formam um embaraço à vida de quem almeja um órgão.
“Não é da morte que temos medo, mas de pensar nela.” A constatação de Sêneca, filósofo romano, ajuda a ilustrar o quanto a falta de diálogo – social e familiar – colabora para a perpetuação do não aproveitamento dos órgãos no Brasil. Essa realidade pode ser atenuada por meio de propagandas constantes nos grandes canais de mídia sobre o assunto. Ademais, quanto ao aspecto técnico e estrutural, cabe ao Ministério da Saúde destinar verbas para a contratação de mais profissionais neurologistas para realizar, sem adiamentos ou demoras, a constatação precisa da “causa-mortis”. À tal Ministério, associado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, compete desenvolver um sistema integrado e ágil de modo a possibilitar comunicação e procedimentos mais velozes. As informações quanto a isso devem ser de conhecimento público, acessíveis em portais eletrônicos, a fim de que a população acompanhe o comprometimento das equipes de saúde, denuncie negligências e possa conhecer o destino dos órgãos doados, já que a aproximação entre as famílias também é um fator relevante para suscitar maior solidariedade entre os brasileiros.

Redação: "O problema do feminicídio na sociedade"

   A violência contra a mulher tem atingido índices alarmantes. O ápice das situações ocorre com a morte das vítimas, fato que acontece, na maior parte das vezes, após uma série de outras atitudes de amedrontamentos, humilhações e agressões. A permanência da cultura machista e a baixa eficácia dos aparatos legais têm feito do feminicídio um problema que ameaça não somente o público feminino, mas a harmonia geral da sociedade.
             A herança patriarcal de domínio e submissão do feminino à supremacia do homem tem sido fator motivador da violência física e psicológica contra mulheres. Muitas são aquelas que, no âmbito doméstico, são alcançadas pela morte como o último grau de uma escala de violências contínuas praticadas por parceiros. Na maior parte das vezes, o fim de um enlace de afeto impulsiona o feminicídio. O sentimento de perda, a não aceitação de um rompimento amoroso e o ciúme são fatores que impulsionam a violência extremada na morte. O homem, tendo a mulher como objeto de domínio, feito para o seu prazer, conforme alimentado pela cultura machista, não reconhece que as companheiras tenham a liberdade de escolha e de direito a rechaçá-lo. A desproporção de forças, o silenciamento diante de agressões frequentes e a sensação de desproteção levam ao trágico, mas não raro, fim de cessamento da vida.
                Além disso, há falhas por parte do Estado em proteger o feminino. A Lei Maria da Penha, de 2006, existe com a intenção de coibir e penalizar qualquer tipo de ato que vitimize as mulheres. No entanto, a aplicação da lei se mostra ainda falha. Inúmeras são as vítimas que, após acionarem a proteção policial, não contam com a vigilância e proteção constante. Diversos são os casos em que elas morrem sob a tutela de uma “medida protetiva”, que, paradoxalmente, não as livra do assassinato. Ademais, a ausência de denúncias, o medo, a dependência financeira e ou sentimental fazem com que as notificações ainda sejam poucas frente à realidade escondida no interior dos lares. Assim, os percentuais de violência permanecem elevados e leis, como a do feminicídio, de 2015, buscam minimizar brechas e  garantir punição aos que maltratam e matam as mulheres brasileiras, mas esbarram em questões culturais e comportamentais que precisam ser mudadas.
           Diante desse cenário, é importante que medidas sejam tomadas a fim de atenuar o problema na sociedade. A educação que, conforme Immanuel Kant, é a arma mais poderosa que se pode usar para mudar o mundo, é a principal via para conscientizar quanto aos perigos da ideia de dominação de um gênero sobre outro. O incentivo à denúncia e a proteção efetiva às vítimas deve ser uma das prioridades das Defensorias de Atendimento à Mulher. Acompanhamento psicológico e amparo social também são necessários para as vítimas de violência e seus filhos. Ações como essas e o enfrentamento do patriarcalismo destrutivo podem ajudar a tornar a sociedade mais harmônica, democrática e menos amedrontadora às mulheres de hoje e de amanhã.

Redação “O combate ao consumo de entorpecentes no Brasil”

REDAÇÃO DISSERTATIVA (NÃO NECESSARIAMENTE MODELO ENEM, POIS PARA TAL SERIA NECESSÁRIO INCLUIR CITAÇÕES E UM DETALHAMENTO ÚNICO DA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO).

                   O uso de entorpecentes no Brasil é um problema que, apesar de antigo, tem repercussões no agora e compromete o futuro, especialmente, dos jovens do país. O aumento no número de usuários revela que as estratégias de traficantes têm sido mais eficazes que a ação policial de repressão violenta à comercialização das drogas. Diante disso, a busca por programas de prevenção ao consumo, com o forte envolvimento da família e da sociedade, e  práticas políticas e policiais que busquem a real recuperação daquele que fez uso de entorpecentes e a reinserção social dele são essenciais para enfraquecer as teias da dependência.
                     Quando se trata de vícios, o melhor é evitá-los. A problemática relacionada ao uso de entorpecentes também passa por esse pressuposto, uma vez que manter jovens e adultos distantes do forte domínio das drogas, especialmente as ilícitas, por meio do diálogo familiar, da assistência da comunidade e de programas sociais que promovam melhores oportunidades podem ser os caminhos mais eficientes. As notícias rotineiramente difundidas sobre a guerra entre traficantes e forças policiais seriam desarticuladas se menos pessoas buscarem refúgio, psicológico ou social, no consumo das drogas, abalando o mercado do tráfico.
                     Ademais, a ideia difundida pela mídia quanto ao pobre ser o pivô e o maior consumidor de substâncias tóxicas acoberta os cartéis e organizações criminosas que espalham o vício. O governo e a polícia ainda falham por permiter que esta trabalhe sem os recursos necessários para enfrentar a articulação dos aliciadores, já que o investimento em armamento e preparo policial é parco por parte do Estado. Tal cenário é propício para que os megatraficantes expandam seu mercado consumidor. Pensando nisso, não só combater o tráfico, mas também dar oportunidades para que os viciados se recuperem e sejam reinseridos, diminuindo os índices de reincidência, é uma importante ação para atenuar o problema.
                     Portanto, para que o combate ao uso de entorpecentes alcance êxito família, sociedade e governo devem se comprometer. Programas comunitários que promovam encontros envolvendo familiares, profissionais de saúde e policiais podem auxiliar para que os mais jovens conheçam os riscos das drogas. Políticas públicas que disseminem propagandas de desestímulo às drogas lícitas, como álcool e cigarro, também podem ser úteis, já que estas, em muitos casos, funcionam como via de encorajamento a outros usos ilícitos. Garantir trabalho, educação e chances reais aos mais pobres, inclusive àqueles que estão em fase de reinserção social, mantêm-nos distantes do problema. Além disso, é muito importante investimento governamental em preparo policial para barrar não só a ação do traficante da “boca de fumo”, mas também da apreensão dos verdadeiros mandantes dos crimes. Medidas como essas poderão ajudar a dirimir o efeito devastador que os tóxicos produzem, especialmente nos mais jovens.

19 de out. de 2017

NOVOS FORMATOS DE FAMÍLIA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

Texto modelo Enem
(Conclusão ainda no modelo antigo)

A história das civilizações trouxe consigo mudanças comportamentais que têm redefinido a sociedade. Os novos formatos de família, por exemplo, demonstram como os conceitos de outrora se tornaram redutores para acompanhar a multiplicidade dos arranjos familiares do momento atual. O desafio, no entanto, é antigo: amenizar preconceitos e promover a equidade de direitos aos padrões que fogem ao meramente tradicional.
A revolução comportamental das últimas décadas revelou a discrepância de postura dos indivíduos. De um lado, o desejo de liberdade e de rompimento de normas – características típicas de movimentos da década de 60, como o hippie e as manifestações feministas – abriram espaço para novos comportamentos e arquétipos, diferentes dos tradicionais. Por outro lado, os grupos alicerçados na tradição se sentiram impelidos a manifestar aversão e não aceitar os laços familiares modernos: recasamentos, uniões homoafetivas, paternidade socioafetivas e monoparental, por exemplo. Conforme Voltaire, “O preconceito é uma opinião não submetida à razão”. Nessa perspectiva, o recrudescimento da ignorância só pode ser atenuado por meio de ações de conscientização e debates constantes nos canais de comunicação social, como as redes sociais e as emissoras de tv aberta.
Outro fator que impede a aceitação desses modelos diversificados de famílias é a questão constitucional. Ainda que existam resoluções que assegurem, por exemplo, no caso dos homossexuais, direito ao casamento, o Código Civil ainda não reconhece oficialmente outro formato de casal diferente do padronizado homem-mulher. Além deles, famílias monoparentais sofrem também com o preconceito no âmbito social e o estigma por não estarem em relações regidas pelo matrimônio. Assim, ações legais que reconheçam a modernidade do conceito de família e suas multiplicidades garantiriam equidade no tratamento social.
                Por conseguinte, percebe-se que reconhecer as mudanças oriundas do momento histórico e cultural da atual sociedade é fator propulsor para dirimir preconceitos e alcançar a imparcialidade legal. Para isso, cabe ao Governo Federal, em associação com as entidades educacionais e com a mídia, investir em educação para o respeito à alteridade, por meio de discussões constantes nos espaços escolares e lugares públicos. Além disso, a revisão de leis, como o Estatuto da Família – o qual apregoa que família é a união entre pai, mãe e filhos, exclusivamente – é primordial para promover o amparo jurídico necessário a quem sofrer discriminação por pertencer a um laço não-tradicional. À gestão dos municípios importa fornecer apoio psicológico para que os indivíduos possam lidar com a diversidade. Medidas como essas contribuirão para uma sociedade em que a pluralidade seja aceita no recôndito dos lares e na liberdade pública.  







Crimes virtuais

Texto modelo Enem

O advento da globalização e das novas tecnologias legou ao mundo real preocupações quanto aos iminentes riscos da vida virtual. O fornecimento de dados e a liberdade de manifestação de opinião podem se revelar verdadeiras armas a serviço de indivíduos mal intencionados. Sabendo que a conexão e suas vantagens reais são um caminho irreversível, reconhecer e combater os crimes virtuais se revelam ações necessárias e urgentes.
À semelhança da obra de George Orwell, o romance “1984”, a vida em rede torna os cidadãos conectados sujeitos a um monitoramento incessante. O fornecimento de dados em transações bancárias, o compartilhamento de conteúdo de caráter particular e as amizades virtuais podem esconder perigos que envolvem a atuação de programas maliciosos, o roubo de informações, a exposição pública de fotos íntimas e a aproximação, ainda que inocente, de pedófilos. Desse modo, os crimes contra a propriedade e a pessoa – comuns são as denúncias de racismo e homofobia na rede, por exemplo – apresentam-se como uma cruel faceta da perversa conexão global.
Nesse contexto, invasões cibernéticas e escândalos envolvendo espionagem internacional demonstram o quanto a web necessita de regulamentação para garantir uma navegação segura e produtiva. Nesse sentido, foi criado o Marco Civil da internet. A lei, sancionada em 2014, propõe uma legislação que garanta privacidade, liberdade de expressão e neutralidade na rede. Porém, o texto da lei ainda não é claro o suficiente e há lacunas quanto ao real funcionamento e fiscalização desse dispositivo legal. Como resultado, algumas ações criminosas continuam sendo enquadradas no Código Penal, de 1940, numa total anacronia.

Como a internet globalizou os benefícios da vida virtual, mas também expandiu as possibilidades das práticas criminosas na rede, os desafios para vencer os impasses são muitos. Para isso, o governo deve ampliar o alcance jurídico da “Lei Carolina Dieckman”, definindo punições severas para a criminalidade cibernética. Ademais, uma educação mais consciente e crítica é fundamental para o manuseio da rede, a qual pode ser desenvolvida pela comunidade escolar. A denúncia feita pelos cidadãos e instituições é indispensável para banir as ameaças dos cibercriminosos. Medidas assim minimizarão as vulnerabilidades do viver em rede, impondo retidão aos caminhos tortuosos do espaço virtual.

INCLUSÃO DIGITAL: MAIS UM DESAFIO PARA O BRASIL CONTEMPORÂNEO

Texto modelo Enem

           
            O cenário das novas tecnologias, herança da globalização, trouxe perspectivas de integração entre pessoas e serviços das quais a modernidade não consegue mais se distanciar. No entanto, a ideia de que todos usufruem dessa modernização é utópica. Ainda há uma multidão de indivíduos que estão desconectados dessas transformações. Diante dessa realidade, é necessário entender quais são as consequências da exclusão digital e que desafios precisam ser vencidos para erradicar essa modalidade moderna de exclusão.
            O advento da vida on line tem ampliado o conceito de desigualdade. Do entretenimento ao universo dos negócios, as redes de trocas digitais trouxeram novas possibilidades de interação na contemporaneidade. Porém, ainda são muitos os brasileiros que têm a rede virtual como um âmbito estranho. Zygmunt Bauman afirma que o uso da internet se tornou um item social, um parâmetro de aceitação no processo de inserção na sociedade. Percebe-se então que os indivíduos que estão à margem do processo, especialmente por questões relacionadas à pobreza, reduzem sua – já mínima – possibilidade de participação ativa na comunidade do wi-fi.
            Os muito pobres, de excluídos da cidadania real, agora também amargam o distanciamento virtual. Além da escassez de recursos básicos para saúde e alimentação, surgem outras demandas: o plugue na rede virtual, consciente e participativo, exige políticas públicas que permitam o acesso ao conhecimento, aos novos formatos de emprego, à capacitação para o uso eficiente e transformador das formas de viver e sobreviver na era presente. Assim, não basta o acesso ao entretenimento furtivo das redes sociais. É preciso educação para o uso, para a interação, para o nivelamento das possibilidades.
            Portanto, para vencer os desafios impostos pela conectividade plena no Brasil são necessárias medidas governamentais de largo alcance social. Nesse contexto, fomentar o letramento digital é imprescindível. Para isso, o governo pode promover leis de incentivo à inclusão, garantindo o acesso dos brasileiros (inclusive das zonas rurais) aos computadores, por meio de incentivos fiscais que propiciem a queda dos preços desses equipamentos e barateamento dos serviços de internet. Além disso, a inserção da ementa Informática nos currículos escolares e a gratuidade de cursos na área de tecnologia para jovens e adultos carentes diminuiria o distanciamento digital. Ações como essas tornariam essa modalidade de exclusão moderna mínima em uma aldeia de acessíveis e reais benesses da globalização.

Combate à homofobia

Texto-modelo

Da cultura à lei: o inadiável vilipêndio à homofobia

 A homofobia é um problema que ameaça a convivência entre as orientações sexuais diversas. Vista como uma anomia social, conforme os ditames de Durkheim, a homossexualidade enfrenta barreiras que, em parte preocupante dos casos, desencadeia situações de violência extrema e morte. Diante disso, compreender as raízes dos preconceitos e o comportamento legal diante da não aceitação de orientações sexuais não padronizadas se torna um imperativo contemporâneo.
“O bom crioulo”, obra do naturalista Adolfo Caminha, primeiro romance a abordar a temática homossexual na literatura brasileira, retrata o amor ao igual como uma aberração, um comportamento contra o natural. Muito anterior ao contexto literário, essa percepção se baseia no enraizamento do que vem a ser entendido como normal, teorizado pela cultura do patriarcado, herança religiosa judaico-cristã que define a figura masculina como central e elemento de autoridade. Nesse modelo, historicamente o conceito de família e união afetiva se resume a pai, mãe e filhos. Diante disso, qualquer protótipo diferente é entendido como abominável, sendo legado ao desprezo e negação. Muitos indivíduos respaldados por esse pressuposto, lamentavelmete, praticam ações violentas que vitimam aqueles que resolvem assumir sua homossexualidade.
        A resposta violenta ao público LGBT – lésbicas, gays, bissexuais e travestis – é uma atitude inconstitucional grave. A liberdade de expressão é uma premissa da Constituição Federal de 1988. No entanto, a ausência de ações punitivas rígidas e de denúncias constantes propicia um cenário no qual intolerância e discursos de ódio ficam ilesos. Consequentemente, não são incomuns notícias sobre a morte por assassinato ou a desistência da vida daqueles que são constrangidos – seja no mundo real ou nas plataformas virtuais – devido à orientação sexual.  As bancadas político-religiosas e a resistência tradicional baseada na exclusão e no cerceamento dos direitos, além da ausência de uma legislação específica para o crime de homofobia, deixam uma brecha larga para que uma sociedade igualitária seja inibida. Clement Attlee, político inglês, teoriza que “A democracia não é apenas a lei da maioria, é a lei da maioria respeitando o direito das minorias”, ou seja, o estado democrático de direito só se faz real quando grupos com orientações diferentes – sexuais, religiosas ou políticas – convivem de modo respeitoso e amparado legalmente.
              Ações sociais e governamentais são, portanto, importantes para combater a homofobia, essa chaga social que urge cura. Para isso, é indispensável que os movimentos de empoderamento LGBTs sejam ampliados e difundidos, dando, especialmente, visibilidade à luta gay por direitos, mitigando a percepção do homossexual como ser demonizado e delituoso. Ademais, cabe ao governo, por meio dos poderes legislativo e judiciário, revisar o Código Penal e estabelecer punições específicas e rígidas, fiscalizando o cumprimento delas, àqueles que agirem de modo agressivo ao alimentar o ódio e a ojeriza social a comportamentos sexuais em desacordo com a heterossexualidade. Com a especificação legal, alcançar-se-á a inibição ao crime e sanção aos que resistem ao respeito que a liberdade de existir proclama na Carta Magna. Sob tal perspectiva, a coexistência fraternal pacífica em meio à diversidade comportamental abrirá caminhos para uma sociedade livre, justa e fraterna.

15 de nov. de 2016

Análise literária "Olhos d'água", de Conceição Evaristo

ANÁLISE LITERÁRIA"Olhos d’água", de Conceição Evaristo:
a violência e a miséria que vitimam os afro-brasileiros



Nos quinze contos que enfeixam Olhos d’água, de Conceição Evaristo, a temática está relacionada às agruras diárias pelas quais passam os afro-brasileiros numa sociedade excludente como a nossa. Nessas pungentes narrativas, ainda que existam alguns protagonistas masculinos, a ênfase centra-se em personagens femininas, muitas delas figurando parcial ou totalmente nos nomes de alguns dos contos.
Indubitavelmente, questões étnicas e sociais são assuntos recorrentes na obra dessa escritora, visto que ela está envolvida com questões ligadas à igualdade racial desde a década de 1980.
No prefácio da obra, Heloisa Toller Gomes observa que muitas personagens femininas dos contos são “todas a mesma mulher, captada e recriada no caleidoscópio da literatura”. Essa mesma mulher repete os dilemas vividos pela Ponciá do romance, encarnando a face de cada um dos desvalidos da sociedade brasileira, às voltas com a miséria e a violência urbana. Na realidade, essa mulher única em várias outras atua nas narrativas como resposta à indagação que o leitor encontra no poético Olhos d’água, primeiro conto do volume: “De que cor eram os olhos de minha mãe?”. A pergunta obriga a narradora a fazer o caminho de volta para o lar e resgatar sua própria história, sua identidade. E dessa consciência de sofrimento, de “lágrimas e lágrimas”, há a possibilidade de a mulher que narra apreender que ela própria, a mãe, a filha, as tias, “todas as mulheres de minha família” compõem fragmentos de uma mesma mulher que sofre.
O olhar da escritora recai sobretudo na existência difícil de personagens femininas afrodescendentes, que tentam se equilibrar no fio tênue de um cotidiano marcado por humilhação, opressão e preconceito.
As personagens que figuram em cada narrativa pertencem ao universo dos excluídos de nossa sociedade, isto é, são crianças de rua, prostitutas, mulheres pobres e humilhadas, homens que roubam, matam e são capazes de amar. Se a condição social por si só comprova que são pessoas discriminadas, mais ainda o são por serem afrodescendentes.
Sobre a autora: Conceição Evaristo Maria da Conceição Evaristo de Brito
Nasceu em 1946, numa favela de Belo Horizonte (MG). Foi para o Rio de Janeiro em 1973. Ali, atuou no magistério e ingressou na Faculdade de Letras da UFRJ. Fez Mestrado em Literatura na PUC-Rio e Doutorado em Literatura Comparada na UFF. Na década de 1980, estabeleceu contato com o grupo Quilombhoje. Em 1990, os Cadernos negros publicaram alguns de seus poemas. Com o romance Ponciá Vicêncio, de 2003, Conceição Evaristo obteve a merecida consagração literária. Em 2006, lançou o livro Becos da memória e, em 2008, Poemas da recordação e outros movimentos.
 Características da obra: temporalmente os contos abordam o presente, mas não deixam afastar o passado e sempre interrogam o futuro.
A escrita: há uso freqüente do recurso de escrita que se baseia na hifenização, a qual passo a denominar, neste caso específico, palavras siamesas (cuja lista a seguir, aviso, pode estar incompleta): "lava-lava" e "passa-passa" (p. 16); "peitos- maçãs" (p. 22); "gozo-pranto" (p. 23); o nome de uma de suas mais contundentesde sua galeria de personagens, "Duzu-Querença" (p. 31); "florcriança" (p. 46); "borboleta-menina" e "dedos-desejos" (p. 51); "ave-mãe" (p. 55); "corpo-coração", "gozo-dor" e "jorro-d'água" (p. 60); "barrigas-luas", "águaslágrimas", "dança-amor" e "buraco- perna" (p. 61); "alma-menina" (p. 63); "figurinhaflor" (p. 74); "quarto-marquise" (p. 76); "coragem-desespero" (p. 80); "beija- beija" (p. 82); "verdades-mentiras" e "peito-coração" (p. 83); "Deus- menino", "imagem-mulher" e "imagem-homem" (p. 84); "rio-mar" (p. 99); "fumacinha-menina" e "contra-contra" (p. 101); "mar-amor" e "mundo-canal" (p. 104); "mar-amar" e "mar-morrente" (p. 107).
NOMES DOS PERSONAGENS: Os nomes escolhidos para seus personagens são criados a partir da aglutinação de palavras - "Luamanda" - exemplo formado pelo substantivo lua e o verbo "mandar" (conjugado no presente do indicativo, terceira pessoal do singular) - "Dorvi" - novamente utilizando um substantivo "dor", aliado ao verbo "ver" (conjugado na primeira pessoa do pretérito perfeito). Outras fontes preciosas para a denominação de personagens são as culturas Banto e lorubá. E não são utilizadas apenas para este fim, pois as referências às narrativas míticas africanas se apresentam ora como poderosas metáforas, ora como alegorias que podem se referir, direta e/ou Indiretamente, à diáspora africana no passado brasileiro e seus desdobramentos em nosso "presente-cotidiano".
RESUMO DOS CONTOS:  OLHOS D’ÁGUA Verifica-se que, desde o título, a autora utiliza-se da imagem dos olhos para fixar um centro de poeticidade e significação para o conto. É por meio dessa imagem que se desperta, na narradora, as lembranças que remontam sua infância como um belo e doloroso quebra-cabeças. Assim, emerge a necessidade de se reencontrar com a sua mãe, logo, com as suas origens.
Utilizando-se da imagem dos olhos, Conceição Evaristo traz à tona questões de ordem social, cultural e religiosa, relacionadas à miséria em que a narradora se encontra na infância e pensando em sua relação com os orixás e com as Yabás ainda em África. Dessa forma, a autora insere voz autoral, temática e ponto de vista sem abrir mão do trabalho estético em seu texto, fugindo do teor "panfletário". Ao se lembrar e narrar suas lembranças, a narradora-personagem de "Olhos d'água" evoca as experiências que marcaram sua infância e, neste jogo de recordações, acaba por (con)fundir suas próprias memórias com as lembranças de sua mãe:
[...] Às vezes, as histórias da infância de minha mâe confundiam-se com as de minha própria infância. Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da panela subia cheiro algum. Era como se cozinhasse, ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento (EVARISTO, 2010, p. 172).
No fragmento acima, memórias se fundem e um tema presente na vida da narradora vem à tona: a fome. Assumir essa fusão de lembranças é como aceitar uma carga hereditária. Recorrente na prosa de Conceição Evaristo , a hereditariedade que ecoa na geração seguinte revela-se um traço forte no que diz respeito à ancestralidade, como um elo estabelecido entre passado e futuro que se concretizará no desfecho do conto, quando em frente à filha, a narradora brinca de buscar, uma na outra, a verdadeira cor de seus olhos: Justifica-se esta afirmação, a presença do tema nos romances Ponciá Vicêncio e Becos da Memória.
Hoje, quando já alcancei a cor dos olhos de minha mãe, tento descobrir a cor dos olhos de minha filha. Faço a brincadeira em que os olhos de uma são o espelho dos olhos da outra. E um dia desses me surpreendí com um gesto de minha menina. Quando nós duas estávamos nesse doce jogo, ela tocou suavemente o meu rosto, me contemplando intensamente. E, enquanto jogava o olhar dela no meu, perguntou baixinho, mas tão baixinho como se fosse uma pergunta que para ela mesma, ou como estivesse buscando ou encontrando a revelação de um mistério ou de um grande segredo. Eu escutei quando, sussurrando, minha filha falou: _Môe, qual é a cor tão úmida de seus olhos?
Entende-se aqui a indagação acerca da cor dos olhos da mãe como uma forma de voltar às origens e buscar uma identidade perdida, ou desconstruída, pelo afastamento de suas raízes.
O tom acusatório com a qual a indagação vai se contornando ao longo do conto confirma a perda de identidade e a necessidade de reencontrá-la ou reconstruí-la. Mesmo que algumas lembranças da infância estejam nítidas e presentes para a narradora, a cor dos olhos que escapa de suas lembranças permite pensar nessa fragmentação identitária.
Presente desde o título, "Olhos d'água", a repetição da imagem sempre traz consigo uma nova caracterização, seja da mãe ou da própria narradora.
A cada repetição da indagação, uma nova lembrança emerge das memórias da narradora, desde um momento da infância em que a miséria leva a mãe a inventar jogos para distrair a fome das filhas a lembranças em que os traços da mãe são trazidos à tona com minúcia de detalhes, não deixando escapar nem uma verruga escondida sob seus cabelos ou uma unha encravada do dedinho do pé.
A narradora é a filha mais velha de sete filhas, logo fica implícito as responsabilidades assumida ainda na infância. A linguagem poética chega a tornar leve, mas não apagar, as dificuldades e sofrimentos:
"Era como se cozinhasse, ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento. [...] fervia panela cheia de fome [...] salivar sonho de comida.
A musicalidade é um elemento importante no conto, como em: "Chovia, chorava! Chorava, chovia!"
O conto se mostra circular a partir que o final abre caminho para um novo questionamento sobre a cor dos olhos da mãe. Esta característica pode representar o sofrimento e a perseguição que ainda caem sobre os afrodescendentesem nosso pais e no mundo.
ANA DAVENGA
Narrador em terceira pessoa e onisciente narra a história de amor e morte de Ana e Davenga. O conto é marcado pelo ritmo do samba, do candomblé ou do coração. Davenga era um malandro, assaltante e tipo um chefe do morro. Ana era uma dançarina(bailarina) que sambava quando Davenga a encontrou. No início não era bem aceita entre o grupo de bandidos e mulheres que ficavam junto a Davenga. Maria Agonia era crente que pregava na praça com seu pai pastor, de Bíblia na mão e tudo, mas que sempre se entregava aos prazeres de Davenga. Por não querer morar com ele e esnobá-lo, acabou assassinada. A irmandade no crime, quando um precisa, o outro ajuda. Ana encarna as milhares de mulheres de homens no crime. Mora em barraco no morro, recebe constantes batidas policiais:
"Ana sabia bem qual era a atividade de seu homem. Sabia dos riscos que corria ao lado dele. Mas achava também que qualquer vida era um risco e o risco maior era o de não tentar viver". A inversão usada em "E naquela noite primeira..." é uma forma de explicitar a ideia da noite que inicia a vida dos amantes. O fim do conto é marcado com grande ironia pelo fato de Davenga preparou uma festa de aniversário para Ana, a primeira da vida dela, e na mesma noite ambos são mortos pela polícia.
DUZU-QUERENÇA
Duzu é uma mendiga que relembra sua trajetória, do dia que chegou à cidade grande ao momento que é narrada a história. Ela chega de outras terras com o pai, um pescador sonhador que migra em busca de uma vida melhor para sua família. No entanto, a esperança de uma vida digna se perde nas malhas da cidade grande. Duzu foi trabalhar em casa de família com a promessa da patroa que estudaria, mas a dona não deixou e acabou se tornando prostituta. Querença, neta de Duzu, é que reencontrar os sonhos. Suas estrelas não são apagadas como as da avó. Ela é a esperança de realização dos sonhos que Duzu não conseguiu ter. O conto Duzu - Querença apresenta a dura realidade dos marginalizados e despossuídos econômica e socialmente. Aqui Conceição não só rompe com a estética do belo, quando descreve o cotidiano do favelado e escancara a sujeira e a pobreza: "Duzu lambeu os dedos gordurosos de comida, aproveitando os últimos bagos de arroz que tinham ficado presos debaixo de suas unhas sujas."(p.29). Expõe também a frágil relação que existe entre centro e periferia, entre negros e brancos, entre a cultura do dominante e do dominado: "Um homem passou e olhou para a mendiga, com asco. Ela devolveu um olhar de zombaria . O homem apressou o passo, temendo que ela se levantasse e viesse lhe atrapalhar o caminho". É interessante apontar o fosso social que separa essas duas personagens iniciais. A convivência dessas diferentes realidades é conflituosa, pois há um aparente consenso, uma não aceitação mútua do diferente, percebe-se no gesto do transeunte, a confusão entre diferença e inferioridade. A velha mendiga do conto revela, através das lembranças, o universo "natural" da mulher negra e marginalizada. Quando criança seguiu um caminho predestinado, remanescente do período escravocrata, e que ainda se perpetua nas camadas mais pobres da população - o serviço doméstico, quase que naturalmente reservado à mulher/menina negra: "... Na cidade havia senhoras que empregavam meninas" (p.30).E quando jovem, se bonita, ao serviço sexual, onde convivem com a brutalidade, a violência e a exploração: "Duzu morou ali muitos anos e de lá partiu para outras zonas. Acostumou-se aos gritos das mulheres apanhando dos homens, ao sangue das mulheres assassinadas. Acostumou-se às pancadas dos cafetões, aos desmandos das cafetinas. Habitou-se à morte como forma de vida" (p.33). Embora seja um conto de narrativa crua, este nos oferece um lampejo de esperança quando percebemos em Querença o sonho da avó se tornando possível. Soa como uma transferência ou um legado, a responsabilidade de conseguir uma vida melhor e a neta capta a mensagem: E foi no delírio do avó, na forma alucinada de seus últimos dias, que ela. Querença, haveria de sempre umedecer seus sonhos para que eles florescessem e se cumprissem vivos e reais. Era preciso reinventar a vida. Encontrar novos caminhos. Não sabia ainda como. Estava estudando, ensinava as crianças menores da favela, participava do grupo de jovens da Associação de Moradores e do Grêmio da Escola. Intuía que tudo era muito pouco. A luta devia ser maior ainda... (p.37).
MARIA Conto curto pouco mais de três páginas. Maria empregada doméstica volta para casa depois de uma festa (hora extra) na casa de seus patrões. Carrega consigo os restos da festa para os filhos. Entra na condução a qual sofre um assalto. Um dos assaltantes era pai de seu filho que pergunta pelo garoto. No final do assalto, alguns passageiros acusam Maria de participar de cúmplice dos assaltantes. Maria é linchada até a morte. O enredo é bem comum dos noticiários policiais com o crescimento da intolerância nos grandes centros. As pessoas se colocam no papel de acusação, de juiz e de executor. Maria é um nome comum no Brasil, este caráter genérico ajuda a entender que a exploração do trabalho da doméstica e o julgamento de pessoas negras e pobres formam a realidade brasileira Maria segue a trajetória de tantas outras Marias que também são abandonadas com os filhos e tendo que se virar para sustentá-los. Ter filhos de homens diferentes é uma realidade nas regiões mais pobres, como acontece com a personagem. O narrador é onisciente e revela os pensamentos e as lembranças da personagem. A preocupação dela se os filhos gostariam de melão revela a limitação alimentar deles. O fato de um jovem negro ter incentivado as agressões à Maria serve para mostrar como o sistema é cruel. As pessoas acabam não percebendo que convivem com as mesmas dificuldades daquela que é agredida. Selva de pedra.
QUANTOS FILHOS NATALINA TEVE?
Conto narrado em terceira pessoa e com onisciência. Conta a história de Natalina e suas gravidez. Não podemos falar filhos, pois dos quatro que ela pariu, apenas um ela quis para ela. A primeira gravidez foi acidental aos 14 anos com seu namoradinho Bilico. "Brincava gostoso quase todas as noites com seu namoradinho e quanto deu fé, o jogo prazeroso brincou de pique- esconde lá dento de sua barriga". Não queria o filho, tentou evita-lo de todas as formas. Porém quando a mãe disse que a levaria para Sá Praxedes, uma espécie de parteira que fazia abortos, Natalina fugiu. Uma parte que apresenta a inocência da menina foi quando confundiu prisão de ventre com gravidez e tomou chá errado. Não podia ficar com a mãe, afinal tinha vergonha e além disso já moravam na casa a mãe, o pai, ela e mais seis irmãos. O primeiro filho de Natalina, nome ligado à ideia de nascimento, ficou com a enfermeira do hospital onde deu a luz. O segundo filho, também acidental, da relação com o trabalhador da construção civil, Tonho, também foi abando nado por ela. Embora o rapaz tenha ficado feliz e proposto a construção de uma família com ela, porém esta não era a vontade de Natalina. Tonho foi embora com o filho, voltando para sua terra. O terceiro filho foi um pedido do casal para quem Natalia trabalhava. Eles viajavam muito o que fazia a protagonista até se sentir dona da casa. Como o casal não conseguia ter filhos, a patroa pediu que Natalina se deitasse com seu marido para que ela engravidasse um filho para eles. Foi a pior gravidez dela. Foi tratada com todo zelo pelo casal, mas vomitou até na hora do parto e quase morreu. Não teve leite no peito e logo foi esquecida por eles. O quarto filho veio depois de um sequestro de bandidos que a confundira com outra mulher, pois perguntavam para ela onde estava seu irmão. Como ela há muito já se afastara da família negou que houvesse um irmão. Mas eles não se convenceram e ficou a cabo daquele que estava no volante eliminar Natalina. Antes porém ele a violentou e depois do gozo, em uma distração, deixou o revólver cair no chão. Natalina pegou matou o seu sequestrados. Mas a semente invasora desse homem já estava guardada e ela engravidou. O toque de sarcasmo está no fato que o filho feito na violência foi o única que ela quis para ela, principalmente por não ter que o dividir com ninguém. " Brevemente iria parir um filho. Um filho que fora concebido nos frágeis limites da vida e da morte.
Conceição Evaristo aborda neste conto a sexualidade feminina com a mesma crueza com que Machado problematiza a maternidade em "Pai contra mãe" Nascida na pobreza e marcada pela carência de afeto e informação, a adolescente favelada torna-se mãe precoce obrigada a entregar os filhos indesejados, num processo de rejeição e embrutecimento que passa até pela "barriga de aluguel" para o feto surgido do sexo com o patrão. O calvário de Natalina atinge um nível tragicamente irônico quando do novo estupro da garota, a que se segue o assassinato do agressor pela vítima. A jovem foge, mas "guarda a semente invasora" daquele homem, que logo frutifica. Ao final, constata que o filho estava para arrebentar no mundo a qualquer hora. Estava ansiosa para olhar aquele filho e não ver a marca de ninguém, talvez nem dela. (...) Sabia que o perigo existia, mas estava feliz. Brevemente ia parir um filho. Um filho que fora concebido nos frágeis limites da vida e da morte. (EVARISTO, 1999, p. 28) Como se vê, sexo, maternidade e violência não se separam, mas agora vitimam também o homem. O texto afro-brasileiro inscreve a mulher num outro diapasão, no qual o corpo mais do que nunca expressa sua condição de vítima de uma ordem social calcada na exploração e no preconceito.
BEIJO NA FACE
Narrador em terceira e com onisciência que revela todos os pensamentos, lembranças e fantasias da protagonista Salinda. A história começa após o retorno de uma viagem Chã de Alegria, ela ainda não desfizera às malas e as crianças haviam ficado com a tia Vandu. As lembranças da noite de amor no dia anterior não saiam de sua cabeça: "Salinda tombou suavemente o rosto e com as mão em concha colheu, pela milésima vez, a sensação impregnada do beijo na face. Depois com um gesto lento e cuidadoso, abriu as palmas das mãos, contemplando-as. Sim, lá estava o vestígio de carinho. Tão tênue, como os restos de uma asa amarela, de uma borboleta-menina". Salinda e o marido já haviam se separado antes. Ela já havia tido vários amantes. Nessa nova união, o marido se tornou muito controlador e vigiava cada passo que ela dava e lógico tinha muito ciúme. Salinda até assume que viveu bons momentos com ele, mas agora só pensa em se separar dele assim que as filhas crescerem. A saída para seu desejo de carinho e prazer se contruiu na cumplicidade da tia Vandu, em um dos quartos Chã da Alegria onde recebia seu amantes. Na última viagem para casa da tia, levou os filhos ao circo e lá viu a equilibrista, a atração que ela mais gostava no circo, pois via alguma semelhança com sua vida. E foi com esta equilibrista que ela conheceu uma nova forma de amor. "No princípio a aprendizagem lhe custara muito. Acostumada ao amor em que tudo ou quase tudo pode ser gritado, exibido aos quatro ventos, Salinda perdeu o chão. Habituada ao amor que pede e permite testemunhas, inclusive nas horas do desamor, viver silente tamanha emoção, era como deglutir a própria boca, repleta de fala, desejosa de contar as glorias amorosas. E por que não gritar, não pichar pelos muros, não expor em outdoor a grandeza do sentimento? Não, não era ostentação que aquele amor pendia. O amor pedia o direito de amar somente". O marido descobre e vai para casa da mãe. Salinda sabia que uma guerra começaria pela guarda dos filhos, mas ela não tinha mais temor. Sentiu porém um certo alívio. E ao olhar para o espelho viu refletido o rosto da outra, ambas se pareciam. Altas, negras e com dreads no cabelo. Um amor entre iguais. Neste conto nota-se a configuração de formas alternativas de amor e prazer, das quais o homem está excluído, onde o homoerotismo surge em registro terno para se contrapor à conjugalidade da família monogâmica desprovida de desejo e afeto. A literatura afrobrasileira dessas autoras subverte imagens e procedimentos cristalizados no discurso hegemônico e envereda por novas representações do amor, em que um outro erotismo marca presença.
Deste modo, uma nova mulher e um novo homem vêm surgindo aos poucos nos escritos de autoria afrodescendente. E surgem para agregar um perturbador suplemento de sentido ao conjunto de figurações marcadas desde sempre pela expressão das fantasias sexuais aqui plantadas pelo discurso do colonizador, e a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pela e da memória.
LUAMANDA
Outro conto em terceira pessoa em que o narrador é onisciente e nos apresenta as lembranças eróticas-amorosas da protagonista. A protagonista, Luamanda, é uma cinquentona que aparenta ser mais jovem e gosta que os outros pensem assim. Em um processo nostálgico, começa a refletir sobre sua vida e, principalmente, sobre suas paixões. A descoberta do amor e do erotismo passa por fatos e questionamentos dela. "Amor dói?" - primeira paixão, ainda menina, terminada com a surra da mãe. "Amor é terra morta?" - tinha onze anos e corpão de moça e seus amores eram distantes, platônicos. "Amor é terremoto?" - tinha treze anos e teve sua primeira relação. "Amor é um poço misterioso onde se acumulam águas-lágrimas?" - Ela teve sua paixão e cinco filhos. Fica implícito a ausência do homem. "O amor se guarda só na ponta de um falo ou nasce também dos lábios vaginais de um coração de uma mulher para a outra?" - Luamanda teve sua primeira relação com outra mulher. "O amor não cabe em um corpo?" - Ela já madura teve uma relação com um jovem, marcada pela intensidade e virilidade dele. "O amor é um tempo de paciência?" - Ela se apaixonou por um velho e a relação exigia a espera e o contemplamento do corpo, das rugas e o embranquecimento do pelo do outro. "O amor comporta variantes sentimentos?" - Luamanda teve que conviver com as cicatrizes de uma agressão de um amante que não soube aceitar o fim da relação. E durante tempo se recolheu em si mesma. Nessa reflexão, mesmo sendo mãe, avó, companheira, amiga e amante, afirma que ainda tem uma alma- menina. "Alma menina no tempo? Não, ela não se envergonhava de seu narcisismo". Luamanda ao contemplar o espelho se lembrou do poema de Cecília Meireles retrato, onde a voz poética não se reconhecia naquela imagem refletida, perguntou onde estava o que era antes. Porém, a protagonista não era assim, se reconhecia e se autodescobria sempre.  Esse fluxo de consciência da protagonista é interrompido e ela lembrou-se do compromisso pelo qual se preparava. As portas para o amor estavam abertas. Outro conto que retrata a independência amorosa e sexual da mulher. O homem é mero coadjuvante que não recebe nem nome. A condução é toda feita pela mulher, alterando assim o lugar que sempre fora destinado ao homem.

Um conto que faz reflexão à correría do dia-dia nas grandes cidades. A personagem Cida - embora saída do interior, onde o ritmo de vida é cadenciado e vivido - vive a rotina de trabalho, estudo e pouca entrega afetiva que os grandes centros nos impõe. Embora a história deixe pensar, o início, que Cida é alguém desconcertada para a vida pacata de sua cidade natal, ela tinha a alegria e a plenitude de sua vida lá. "Cida desse pequena guardava um sentimento de urgência. Seu corpo maturou-se no sangue mensal de mulher. As brincadeiras prediletas, ainda nessa época, eram a de apostar corrida com as crianças e a de desafiar grandes e pequenas, no tempo gasto para a execução de qualquer tarefa". Foi ao Rio de Janeiro a primeira vez aos 11 anos e bebeu enlouquecida a velocidade de tudo e todos. Aos 17, por causo de trabalho, mudou-se definitivamente para o Rio de Janeiro. Incorporou-se à cidade logo de cara. Ela fazia tudo rápido. Ir para trabalho, voltar do trabalho, cooper, prazer, amizades, missa, banco etc. Nado poderia lhe tomar tempo. Mas um dia, sem perceber, diminui seu ritmo e viu o mar pela primeira vez e uma profunda reflexão e admiração lhe caiu. Avistou um nadador a quem julgou rico para desperdiçar o tempo. Lembrou- se dos mendigos que eram extremamente pobres e não mediam o tempo. " Ou o tempo não se media com moeda, ou as horas, os dia, os anosnão seriam medidas justas do tempo". Cida se permitiu pisar na areia e contemplar mais um pouco o mar. E entre pensamentos chegou à porta de seu prédio. Pedro, seu amigo, esperava para lhe dar carona e a indagou sobre o atraso no cooper: "Ela estava atrazadérrima”. O final do conto quebra a rotina, o ciclo no qual Cida estava presa. Ela percebera que dera tempo demais para todas as outras coisa. Já tinha vinte nove anos e, enfim, resolveu dar um tempo:
Se distraíra, esquecera das horas. Ele poderia ir, já estava bastante atrasado. Hoje ela não iria trabalhar, queria parar um pouco, nâo fazer nada de nada talvez. E só então falou significativamente uma expressão que tantas vezes usara e escutara. Mas falou tão baixinho, como se fosse um momento único de uma misteriosa e profunda prece. Ela ia dar um tempo para ela.
ZAÍTA ESQUECEU DE GUARDAR OS BRINQUEDOS
Conto que faz uma abordagem do cotidiano dos morros e aglomerados. Pobreza, tráfico e violência. Zaíta é a protagonista, tem uma irmã gêmea e parte atrás da irmã para recuperar sua figurinha de uma garotinha abraçada em flores. Ela procurou na caixa de restos de brinquedos e outras coisa com que brincava e deixou tudo espalhado, mesmo sabendo que a mãe não gostava. Acaba morrendo em um tiroteio entre o grupo de seu irmão e a polícia. A família de Zaíta é formada pela sua mãe (Benícia), seu pais, sua irmã gêmea, seu irmão que estava no crime e o irmão mais velho que estava no exército querendo fazer carreira. Os rapazes eram filhos de outro pai, igualmente pobre como o pai dela. Conceição Evaristo aborda aqui a realidade de inocentes morto na favela. A falta de preocupação com moradores, crianças ou trabalhadores. A miséria leva ao crime quanto a desigualdade (o salário recebido pela mãe por seu trabalho) é inferior que as oportunidades que o tráfico oferece (o dinheiro que seu filho tem). Mesmo o irmão que está no exército depende da ajuda da mãe. Um toque de inocente sarcasmo acontece quando a irmã gêmea de Zaíta a vê morta não consegue entender a gravidade da situação, levando a consideração que a raiva da mãe para ela era mais grave ainda, grita para sua irmã : " - Zaíta, você esqueceu de guardar os brinquedos". As mulheres ficcionais apresentadas pela escritora Conceição Evaristo não se cansam de nos surpreender e, o público já deve refletir sobre as três forças femininas presentes em "Zaita esqueceu de guardar os brinquedos" todas elas tecidas pelo tom sutil da narradora moldada por Conceição Evaristo e surpreendidas quando ultrapassam algumas das imaginárias, mas não irreais, linhas de "cor", gênero e classe. As principais personagens de "Zaita esqueceu..." são crianças, duas meninas, moradoras de uma das centenas de periferias espalhadas nas metrópoles... Os aspectos mais evidentes são o ambiente no qual se passa a trama (um bairro na periferia de alguma grande cidade), personagens negros e/ou afrodescendentes, a pobreza, o crime, o tráfico de drogas. Porém, os mesmos elementos podem ser encontrados em textos de autores brancos, de classe média alta... Nenhum deles, entretanto, teceu uma trama com a delicadeza e perspicácia de Conceição Evaristo. Passo a palavra à narradora elaborada por Conceição Evaristo para a apresentação do núcleo familiar de Zaita: A mãe de Zaito estava cansada. Tinha trinta e quatro anos e quatro filhos. Os mais velhos já estavam homens. O primeiro estava no exército. Queria seguir carreira. O segundo também. As meninas vieram muito tempo depois, quando Benícia pensava que nem engravidaria mais. Entretanto, lá estavam as duas. Gêmeas. Eram iguais, iguaizinhas. A diferença estava na maneira de falar. Zaita falava baixo e lento. Naita, alto e rápido. Zaita tinha nos modos um quê de doçura, de mistérios e de sofrimento. Fica explícita a falta de nomeação dos irmãos de Zaita, retomando o recurso utilizado por Graciliano Ramos, em Vidas secas, os filhos não possuem nomes próprios ("o menino mais novo" e "o menino mais velho"). Essa metonimização possibilita algumas conjecturas: no caso dos filhos de Fabiano e Sinhá Vitória uma hierarquização pela experiência, por tempo de estada naquele mundo de escassas palavras. Quanto aos filhos homens de Benícia indicaria uma indeterminação quanto às possibilidades de futuro para ambos. De acordo com as estatísticas do local eles seriam os alvos preferenciais das balas sem ou com endereço certo: jovens negros, moradores de periferia e pobres... Outro elemento que se destaca no tocante aos irmãos é a irônica referência, feita pela narradora, às escolhas por carreiras distintas no campo militar: lutariam sob bandeiras opostas... Um era soldado efetivo do Exército Brasileiro, outro se sentara praça em diferente "arma": "soldado do morro"... Já a sonoridade presente no nome de cada uma das gêmeas remete à língua árabe. Enquanto Naita seria a musicalidade agitada e aguda de algumas composições árabes, Zaita seria blues ou samba-canção. O fato de serem gêmeas idênticas possibilita ainda uma leitura a partir da tradição ioruba: elas são ibejis (gêmeas em ioruba). E mais importante: Zaita seria um abiku - criança nascida para morrer... O desenvolvimento e desfecho da trama praticamente ficam por conta da voz narrativa e de Naita que se propõe a encontrar a irmã e pedir-lhe que retornasse para casa. Ela saíra e deixara de cumprir uma tarefa importante que, no entanto, permanecerá inacabada.
DI LIXÃO
No conto Di Lixão, a autora narra à história de um garoto pobre, que morava nas ruas e sem perspectiva de vida. No entanto, destaca o esforço de sua mãe que ainda tentou o alertar para que lutasse e seguisse outro caminho na vida, diferente daquele que ela já estava acostumada a levar. Mesmo com o alerta da mãe, o garoto não dá ouvidos a seus conselhos, assim como não acha que ela seja um exemplo para ele devido a vida que levou. O garoto havia ganhado o apelido "Di Lixão", devido a sua mania de chutar os latões de lixo na área onde circulava, diante das peripécias da vida acaba morrendo ainda jovem, aos 15 anos de idade, vítima que foi de um pequeno tumorzinho na boca, assim como de não ter buscado ajuda a tempo. Não gostava mesmo da mãe. Nenhuma falta ela fazia. Não aguentava a falação dela. "Di, vai para a escola! Di, não fala com meus homens! Di, eu nasci aqui, você nasceu aqui, mas dá um jeito de mudar o seu caminho!". Desocupada que vivia querendo ensinar a vida para ele. Depois, pouco adiantava. Zona por zona, ficava ali mesmo. Lá fora, o outro mundo também era uma zona. Sabia quem tinha matado a mãe. E daí? O que ele tinha com isso?[...] O dente de Di Lixão latejava compassadamente. Ele era uma dor só. As dores haviam se encontrado. Doía o dente. Doíam as partes de baixo. Doía o ódio. O dente latejou fundo no profundo da boca. Dor de dente matava? Não sabia. Sabia, porém, que ia morrer. Mas isso também, como a morte da mãe, pouca importância tinha.Às nove horas o rabecão da polícia veio recolher o cadáver. O menino era conhecido ali na área. Tinha a mania de chutar os latões de lixo e por isso ganhara o apelido. Sim! Aquele era o Di Lixão. Di Lixão havia morrido.
O conto denuncia o abando de crianças à sua própria sorte. Di lixão morreu sozinho, entre pessoas que iam e vinham sem notar sua presença. Foi uma morte sofrida e silenciosa. Só foi notado pelas pessoas quando morto. Foi levado pelo rabecão. Ele era um estorvo vivo ou morto para a cidade egocêntrica e cega. Como diz Chico Buarque: E se acabou no chão feito um pacote tímido/ Agonizou no meio do passeio náufrago/Morreu na contramão atrapalhando o público
LUMBIÁ
O menino negro Lumbiá que trabalha nas ruas de alguma cidade urbana vendendo amendoim e flores, é observador atento do burburinho cotidiano dos transeuntes, e também das vitrines hipnóticas em seus diversos apelos de compras. Na época do Natal, fascinado pelas luzes e cenas de presépio exposto numa loja, adentrou no recinto aproximou-se da imagem do "Deus-menino", que estava nu e de braços abertos, repousado na manjedoura. Lumbiá sentiu semelhança e se identificou em necessidade de afeto e acolhida que aquela imagem despertava nele. Retirou a imagem da cena do presépio para agasalhá-la e formar uma outra cena, assim descrita por Conceição Evaristo: "Tomou-o rapidamente nos braços. Chorava e ria. Era seu. Saiu da loja levando o Deus-menino. O segurança voltou. Tentou agarrar Lumbiá. O menino escorregou ágil, pulando na rua. O sinal I O carro! Lumbiá! Pivete! Criança! Erê, Jesus-menino. Amassados, massacrados, quebrados! Deus- menino, Lumbiá morreu!". O conto apresenta a denúncia de um genocídio não declarado e banalizado. Nos grandes centros urbanos em que é comum a invisibilidade social, morrem-se entre os profissionais de saúde que são estranhos ao moribundo ou moribunda, ou seja, uma morte socialmente asséptica e solitária
Os AMORES DE KIMBÁ
O conto retrata um triângulo amoroso entre Zezinho (Kimbá), Beth e Gustavo que acaba com ambos mortos. Zezinho era amigo de Gustavo que o apelidou de Kimbá (nome de alguém na África que lhe causava saudade). Zezinho morava na favela, em um barro cheio de gente. Família grande. O irmão mais velho que era alcoólatra, duas irmãs menores, avó e mãe. Não gostava de lá, queria ter a vida luxuosa do amigo. O conta retrata uma agonia constante em favela, a chuva forte que pode fazer escorregar o barranco e matar. A mãe passa a noite acordada e a avó só fica rezando. Beth foi apresentada a Kimbá por Gustavo, era prima dele. Em um encontro os três se relaciona sexualmente. Kimbá se surpreende por ser desejado também por homem. Tenta entender todo aquele sentimento que conflitavam dentro dele. A temática aborda vários temas como pobreza, a falta de infraestrutura nas favelas e a desigualdade social. Zezinho (Kimbá) foi atraído para esse triângulo amoroso pelo desejo de se ver fora da favela, de ter uma vida melhor diante da vida abastada dos outros dois. Chega a odiar a família por ele estar na favela e ter que conviver com suas manias, vícios etc.
Embora a relação de Kimbá e Gustavo seja descrita na narrativa, não é possível afirma que esta seja a opção sexual dele. Ele estava descobrindo tudo e em relação ao amigo fica implícito que consentia por um certo interesse. Gostou mesmo foi de Beth. Na impossibilidade de escolher entre Gustavo ou Beth, resolve selar o pacto de amor deles com a morte por envenenamento. Beth tinha dinheiro, O amigo, dinheiro e fama. Kimbá, a noite e o dia. A decisão seria, portanto, de Kimbá, que não tinha nada a perder. Só a vida. Era só ele querer. Já que não estava dando para viver, por que não procurara morte? Seria fácil. Primeeira Beth, depois o amigo e em seguida ele. A morte selaria o pacto de amor entre eles. A morte pelo amor dos três.
EI, ARDOCA
O conto apresenta um narrador em terceira pessoa, o qual possibilita ao leitor entender melhor a história e o sofrimento do personagem negro. Ardoca representa os afrodescendentes moradores de subúrbio que diariamente passam por dificuldades, como percebemos no seguinte trecho: Cresceu em meio aos solavancos, ao empurra-empurra, aos gritos dos camelôs, às rezas dos crentes, às vozes dos bêbados, aos lamentos e cochilos dos trabalhadores e trabalhadoras cansadas. Assistiu inúmeras vezes, como testemunha cega e muda, a assaltos, assassinatos, tráfego e uso de droga nos vagões superlotados. Ardoca desde criança utiliza o trem como único meio de transporte, o que sugere uma situação financeira desfavorecida. O conto também mostra um conflito do personagem consigo mesmo, pois se sente cansado da vida que leva no subúrbio. Assim, resolve por fim ao seu "sofrimento" interior e toma uma decisão: Ardoca abandonava o corpo, que pendia lentamente para um lado. O passageiro do banco próximo encolheu o pé. Um camelô, que vendia água, pulou por cima dele, para atender uma pessoa. Ardoca respirava com dificuldade, debaixo do negro de sua pele um tom amarelo desbotado aparecia. [...] Naquela tarde, ainda no trabalho ele resolvera tudo. Num gesto desesperado e solitário bebera lentamente um veneno e decidira levantar para morrer no trem. O narrador descreve o sofrimento de um homem negro e suburbano. Por um momento passamos a alimentar a esperança de que a vida desse homem está prestes a mudar, pois há uma pessoa tentando ajudá-lo. “Nesse momento entrou no vagão um passageiro correndo e gritando. Desesperado, saiu empurrando em direção ao rapaz desfalecido, chamando por ele: - Ei, Ardoca! Ei, Ardoca!" Mas a história é outra, e o homem que socorre Ardoca, na verdade estava o assaltando. Agora o sofrimento parecia ser maior, porque mesmo depois de tentar morrer no trem, ele estava perdendo junto com a vida, o que lhe restou nos bolsos. Por fim, percebemos a intromissão do narrador, em um comentário sentimental: o outro levava os pertences de alguém que já despertencia à vida e jazia no banco da estação. O barulho da máquina sobre os trilhos entoava uma música réquiem de descanso eterno para Ardoca. Amém Este conto pode, legitimamente, ser considerado como pertencente ao corpus literário afro-brasileiro uma vez que atende aos critérios já citados, como: a autoria, visto que se trata de uma escritora negra que busca escrever histórias ficcionais, nas quais se percebe o olhar do negro e não o do branco racista e dono de escravos. Apresenta também o ponto de vista, pois Conceição Evaristo escreve mostrando o olhar da sociedade a respeito dos afrodescendentes e dos próprios personagens negros a respeito da vida que vivem. E, além disso, está evidente que essa escritora escreve com a intenção de ser porta-voz de um público desfavorecido socialmente. Percebe-se, assim, que mesmo sem usar explicitamente a palavra "negro", nem remeter amplamente à descrição de suas peculiaridades físicas, uma narrativa pode ser considerada como literatura negra ao exprimir, como se analisou, anseios e vivências de excluídos, pessoas à margem da sociedade, com os quais os afrodescendentes, por viverem os mesmos problemas, podem se identificar.
A GENTE COMBINAMOS DE NÃO MORRER
O conto varia do narrador em primeira pessoa e terceira pessoa. Apresenta também várias vozes: Narrador, Dorvir, Bica e Mãe. Cada personagem descreve o que está acontecendo na favela e na vida dos outros personagens sob sua ótica. A narrativa é fragmentada, pois não há uma linearidade. O espaço é uma favela em guerra, tiros são ouvidos toda hora. Cada personagem narrador está em um ponto. Bica lembra do irmão morto porque falou demais. A mãe gostava de novela, as quais ela implicava, mas sabia que a mãe sabia separar muito bem ficção da realidade. Tinha acabado de dar a luz e tinha muito leite, logo alimentava também outras crianças. Se preocupava com seu homem, Dorvir. Achava que o irmão deu motivo para morrer. A mãe fala sobre a televisão e sua programação preferida, novela. Lembra do filho e das brincadeira que fazia com ele e vice-e-versa. Se preocupava com o destino de Bica, sua filha. Não acreditava que Dorvir seria bom futuro para ela e o neto. Dorvir está encrencado pois emprestou dinheiro do tráfico, dos homens de Baependi, e a pessoa não lhe pagou. Sabia que seu fim estava próximo, mas queria acertar contas com o seu devedor primeiro. Comenta sobre o prazer de viver no perigo que chegou a gozar nas calças quando, pela primeira vez, atirou. O conto termina com a narração de Bica: Deve hover outro caminhos, saídas mais amenas. Meu filho dorme. Lá fora a sonata seca continua explodindo balas. Neste momento, corpos caídos no chão, devem estar esvaindo em sangue. Eu aqui escrevo e relembro um verso que li um dia. " Escrever é uma maneira de sangrar". Acrescento: e de muito sangrar, muito e muito...
O conto retrata elementos e características de uma comunidade negra que passa por uma crise. A primeira parte do conto se refere ao momento em que as personagens se encontram desamparadas. A segunda que se inicia com a notícia do nascimento de uma criança (Ayoluwa), é o momento em que se devolve à comunidade a esperança. A narração ocorre em primeira pessoa o que revela na literatura negra a determinação do narrador em desvencilhar-se do anonimato e da "invisibilidade" a que o relegou sua condição de descendente de escravos ou de ex-escravos. Na grande maioria dos casos o eu individual funde-se ao nós coletivo, evidenciando um empenho em delinear uma identidade comunitária. O narrador deste conto participa e compartilha com a comunidade angústias e anseios, e a utilização da primeira pessoa do plural corrobora essa afirmação: "À noite, quando nos reuníamos sem volta de uma fogueira mais de cinzas do que de fogo, a combustão vinha de nossos lamentos" Nesta poética, o eu-enunciador, ao se declarar negro e evidenciar essa identidade, deixa de ser objeto da escritura para se tornar sujeito; ele conta as inquietações de sua comunidade, sem tomar de empréstimo a voz de um branco ou ser referido como "o outro", aquele que é observado e sobre o qual se fala. Partindo do momento presente, o narrador volta ao passado, às suas memórias, para descrever esta crise que tomou conta de sua comunidade e que, no momento da narração, já havia sido superada devido ao nascimento de mais um membro: "Quando a menina Ayoluwa, a alegria do nosso povo, nasceu, foi em boa hora para todos". O narrador pormenoriza as lembranças dos tempos difíceis, em que os dias "passavam como um café sambango, ralo, frio, sem gosto. Cada dia sem quê, nem porquê. E nós ali amolecidos, sem substância alguma para nos deixar de pé" 0 conto se atem a descrever os elementos da comunidade que foram afetados pela crise. O depois ou o antes disso configura-se como uma incógnita e o que sabemos, ao final da narrativa, é que o nascimento de Ayoluwa trouxe contribuições para a comunidade, mas este estado pode não ser permanente. A comunidade de que o conto trata é composta por muitos membros e a autora menciona todos eles na tentativa de caracterizar de forma totalizadora a organização social do grupo de ascendência africana. E ela obtém êxito. Através dos nomes selecionados e da explicitação de seus significados, expostos sempre ao longo do texto, podemos deduzir qual o papel desempenhado por cada personagem. Os nomes têm sempre origem africana e o narrador não detalha a função de cada um deles ou se atém a descrições do tipo psicológicas. É a partir do entendimento do significado do nome que podemos reconhecer a função atribuída a cada indivíduo. No dia do nascimento de Ayoluwa, Omolara foi a responsável pelo parto. Para descrever a personagem e para tomarmos conhecimento de sua função de parteira, o narrador assim nos descreve o nome da personagem e seu significado: "E no momento exoto em que a vido milogrou no ventre de Bomidele, Omolara, aquela que tinha o dom de fazer vir as pessoas ao mundo, a conhecedora de todo ritual do nascimento, acolheu a criança de Bamidele" Bamidele e Ayoluwa são as duas principais personagens e representam o momento de restabelecimento da ordem. É a partir do anúncio da gravidez de Bamidele que a comunidade volta a ter esperança. Ayoluwa, "aquele que veio para trazer alegria para o nosso povo" O ciclo não estava em harmonia o que encerra as angústias e descrenças das personagens: "agora nenhuma família mais festejava a esperança que renascia no surgimento de sua prole" Os personagens com maior idade também carregam consigo a força da resistência negra; estes indivíduos representam a história através de uma outra versão e nesta o protagonismo do homem negro é ressaltado. Conforme o narrador nos descreve, no momento da crise: Os mais velhos acumulados de tanto sofrimento olhavam para trás e do passado nada reconheciam no presente. Suas lutas, seu fazer e saber, tudo parecia ter se perdido no tempo (...). Todos estavam enfraquecidos e esquecidos da força que traziam em seus próprios nomes. As velhas mulheres também. Elas, que sempre inventavam formas de enfrentar e vencer a dor, não acreditava mais na eficácia delas próprias. Deslembravam a potência que se achava resguardada a partir de suas denominações 0 conto "Ayoluwa, a alegria do nosso povo" e a obra em geral permitem observar a emergência da literatura negra e a revelação de uma poética que busca corporificar as demandas dos afrodescendentese o processo de afirmação da identidade destes.
A Obra Olhos D'água contribui enquanto literatura que desmantela o discurso centralizador que coloca o branco em uma posição superior e os negros, índios e asiáticos, inferior; que relaciona a brancura de um indivíduo ao seu grau civilizatório e à sua capacidade evolutiva.

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