Análise literária
SOBRE O AUTOR:
José
Martiniano de Alencar nasceu no dia primeiro de maio de 1829, em Mecejana, Ceará,
e faleceu no Rio de Janeiro, em 12 de dezembro de 1877, aos 48 anos de idade.
Morreu de tuberculose, doença que se fez presente durante grande parte da sua
vida. Filho de um senador do império, foi ainda menino para a então capital
federal do Brasil, o Rio de Janeiro. Aos catorze anos, em 1843, mudou-se para
São Paulo, formando-se em Direito no ano de 1850. Formado, retornou ao Rio de
Janeiro e exerceu a profissão de advogado. Foi
jornalista, político (sendo repetidas vezes deputado conservador pela sua
Província) e ministro da Justiça, não conseguindo, entretanto, chegar a
senador, que era sua grande meta.
A
carreira literária de José de Alencar principia, realmente, com as crônicas que
depois reuniu sob o título de “Ao correr da pena”(1856). Mas a notoriedade foi
devida aos artigos polêmicos do mesmo ano, contra o poema épico A confederação dos tamoios, de Gonçalves
de Magalhães, nos quais traçava o programa de uma literatura nacional, baseada
nas tradições indígenas e na descrição da natureza, mas norteada por uma
rigorosa consciência estética. Para juntar o exemplo à teoria, publica em 1857 O Guarani, que fora precedido por um
pequeno romance, Cinco Minutos.
A partir
daí não cessaria mais de escrever e publicar com relativa abundância, em três
fases mais ou menos distintas.
Na
primeira, que vai de 56 a 64, publica alguns de seus romance mais importantes e
quase todo o teatro. De 66 a 69, apenas escritos políticos, inclusive as
famosas Cartas a Erasmo, nas quais exortava o imperador a exercer efetivamente
seus poderes, a fim de pôr cobro à tirania das cliques governamentais. De 70 a
75, postos de lado a política e o teatro, entra em nova fase criadora,
publicando oito livros de ficção. O último romance, acabado em 77, Encarnação,
foi publicado depois da sua morte, assim como o belo fragmento autobiográfico,
como e por que sou romancista.
A obra de Alencar permite a seguinte classificação:
a)
Romance Urbano ou Social: Cinco Minutos ( 1856
), A Viuvinha ( 1860 ), Lucíola ( 1862 ), Diva ( 1864 ), A Pata da Gazela (
1870 ), Sonhos d’ouro (1872) , Senhora
( 1875 ), Encarnação ( 1893 ).
b)
Romance Regionalista: O Gaúcho( 1870 ), O Tronco do ipê (
1871 ), Til (1872) , O Sertanejo ( 1875 ).
c)
Romance Histórico: As Minas de Prata ( 1865 ), Guerra dos
Mascates ( 1873 ).
d)
Romance Indianista: O Guarani ( 1857 ), Iracema ( 1865
), Ubirajara ( 1874 ).
e)
Teatro: Demônio Familiar ( 1857 ), Verso e Reverso (
1857 ), As asas de um anjo ( 1860 ), Mãe ( 1862 ), O Jesuíta ( 1875 ).
Alencar escreveu ainda obras de não-ficção e
poesias. Devido à diversidade de temas, Alencar é considerado o mais
importante escritor do Romantismo Brasileiro.
O ESTILO DE EPOCA
O
movimento romântico brasileiro coincide com o momento decisivo de autonomia da
pátria. Os escritores tomam para si a
missão de reconhecer e valorizar o passado brasileiro, conferindo à literatura
cores locais, esforçando-se para criar
uma literatura legitimamente brasileira, capaz de revelar as qualidades
grandiosas da pátria que se tornara independente. Neste sentido, José de
Alencar aparece na literatura brasileira como o consolidador do romance,
realizando na prosa de ficção a tendência nacionalista que vinha sendo
reclamada pela crítica, sobretudo em romances como O Guarani e Iracema. O
gosto pelo teatro foi uma das características marcantes do romantismo em todos
os países. No brasil, coube a Gonçalves
de Magalhães a encenação da primeira tragédia, intitulada Antônio José ou O poeta e a inquisição, no dia 13 de março de
1863, no palco do Constitucional Fluminense, no Rio de Janeiro, sob os cuidados
do ator João Caetano. O grande nome do teatro romântico brasileiro é o de
Martins pena, considerado o inventor da comédia de costumes brasileira.
O
teatro de José de Alencar é marcado por uma preocupação moral. A comédia O
demônio familiar apresenta a figura do menino escravo Pedro, o “demônio
familiar”, como um malandro e
aproveitador, capaz apenas de fazer o mal
para a família brasileira.
A OBRA
A peça O demônio familiar foi encenada pela
primeira vez no Teatro do Ginásio do Rio de Janeiro, no dia 5 de setembro de
1857, fundindo uma temática europeia, como a interferência do dinheiro nas
relações afetivas, com uma temática brasileira, a atuação do escravo no
interior das casas das famílias brasileiras.
O
objetivo de José de Alencar era produzir uma peça original e de efeito moral,
capaz de revelar a singularidade da comédia brasileira e de educar as famílias
no combate ao vício, o de permitir, no interior das casas, a figura do escravo.
Quanto ao aspecto formal, a peça não apresenta novidades, pois emprega recursos
típicos da tradição teatral para a solução dos problemas de enredo.
Na peça
em questão, o recurso do inesperado como solução para os problemas surge na
forma de uma carta de alforria ao moleque Pedro, funcionando como um
instrumento de punição para a personagem. A técnica que liga um ato ao outro da
peça é conhecida como “técnica do gancho”, porque cria um pequeno suspense no
final do ato para prender a atenção do espectador.
Quanto ao
aspecto temático, O demônio familiar
apresenta uma ideia curiosa. A peça, aparentemente, é avançada para a época. Em
1857 (ano da estreia da peça), trinta anos antes da abolição da escravidão, o
tema do abolicionismo soaria aos ouvidos da plateia como algo avançado e
contrário aos interesses da elite dominante. Entretanto, a apologia da
liberdade é apenas aparente, pois a liberdade na peça é vista como um
instrumento de punição. A liberdade traria para o escravo consequências
severas, porque ele teria que aprender com a vida o que não conseguiu assimilar
como escravo, como o respeito e a educação.
Em outras
palavras, a escravidão é um mal não porque o branco subjuga o negro, mas porque
a maldade vem do negro. Este paga com tramas e desejos mesquinhos o bem que
lhes queria seus senhores.
Em suma:
não se trata de livrar o negro da crueldade do branco, mas de preservar o
branco das maldades do negro.
Como a
“classe” branca era econômica e politicamente a dominadora, podia falar e
escrever o que quisesse, como a mensagem interpretada acima.
José de
Alencar emprega recursos convencionais para se fazer entender pelo público,
objetivando a educação moral das famílias brasileiras. As principais lições
são: a escravidão é um mal, porque expõe a família à falta de escrúpulo dos
negros; a família é mais importante que a sociedade, pois é ela que fornece as
bases para que o indivíduo possa evitar os prazeres excessivos da vida social;
na família, a mulher, por desconhecer os perigos do mundo, deve sempre agir em
nome do verdadeiro amor; o dinheiro interfere de forma negativa nas relações
afetivas.
Em O
demônio familiar, todas as lições de moral são dadas pelo personagem Eduardo.
PERSONAGENS
Eduardo:é
o protagonista da peça. Órfão de pai, tornou-se o chefe da família,
conduzindo-a sempre através dos princípios da justiça e da bondade, o que o faz
ter o respeito de todos. Por trabalhar como médico, conhece as dores do mundo
e, por isso mesmo, sabe dar importância à vida família.
Carlotinha:é
a irmã de Eduardo. Suas ações revelam esperteza e inteligência. Como típica
mulher romântica, é bonita e deixa-se levar pelo sentimento amoroso.
Jorge:
irmão caçula de Eduardo e Carlotinha. Sua proximidade das artimanhas de Pedro
determina sua pequena importância na peça.
D. Maria:
viúva, mãe de Eduardo, Carlotinha e Jorge. Sem grande importância na trama, D.
Maria é apresentada como mãe zelosa.
Pedro: escravo
de Eduardo. Pedro é um “moleque” capaz de aprontar grandes confusões no seio da
família, sendo, por isso mesmo, o “demônio familiar”. Sua grande ambição não é
deixar de ser escravo; pelo contrário, o que almeja é ser cocheiro e, por isso,
arma as tramas para que seus senhores obtenham posses e ele possa conduzir uma
carruagem.
Alfredo:é,
ao lado de Eduardo, outro ‘bom moço” da peça. Pretendente de Carlotinha, sua
sinceridade e honestidade, bem como seu apego à cultura brasileira, logo
angariam a amizade de Eduardo e o amor de Carlotinha.
Azevedo:é
o oposto de Alfredo e Eduardo. Homem rico, excessivamente frívolo e afrancesado
nos modos, é avesso ao amor e despreza as mulheres e tudo o que diz respeito ao
Brasil. Sua função na peça é a de despertar a antipatia do público.
Henriqueta:amiga
de Carlotinha e apaixonada por Eduardo. Os obstáculos que a separam do amado
são as artimanhas de Pedro e as dívidas do pai com o moço Azevedo. Não tem o
brilhantismo das mocinhas românticas.
Vasconcelos:pai
de Henriqueta. Sua situação financeira instável o leva a negociar o casamento
da filha como forma de quitação das dívidas. Insinua desejo de casar-se com D.
Maria.
ESPAÇO
O
registro espacial do drama de Alencar reproduz a preocupação central da peça,
que é a de destacar a vida familiar.
Assim,
todos os atos se passam na “casa de Eduardo”.
Cenário: Ambientada em casa de Eduardo
·
Ato Primeiro: Gabinete de estudo ( cena primeira a
XV )
·
Ato Segundo: Jardim ( cena primeira a IX )
·
Ato Terceiro: Sala interior ( cena primeira a XVIII
)
·
Ato Quarto: Sala de visitas ( cena primeira a XVII )
Vida
urbana: Passeio Público, Rio de Janeiro.
Os
espaços externos aparecem apenas indiretamente.
Temos
referências à rua do Catete , aos hábitos urbanos, como o teatro, as lojas da
moda, e outros recantos mundanos da cidade.
TEMPO
Os três
primeiros atos da peça ocorrem em um único dia. O quarto ato ocorre um mês após
os acontecimentos do final do terceiro ato.
LINGUAGEM
A
linguagem do texto, especialmente na voz de Eduardo, é marcada pela
grandiloquência, o didatismo pouco sutil, a expressão declamatória e a
reprodução da sintaxe lusitana:
“(...)
O coração que ama de longe, que concentra o seu amor por não poder exprimi-lo,
que vive se parado pela distância, irrita-se com os obstáculos, e procura
vencê-los para aproximar-se. Nessa luta da paixão cega todos os meios são bons:
o afeto puro muitas vezes degenera em desejo insensato e recorre a esses ardis
de que um homem calmo se envergonharia; corrompe os nossos escravos, introduz a
imoralidade no seio das famílias, devassa o interior da nossa casa, que deve
ser sagrada como um templo, por que realmente é o templo da felicidade
doméstica.”
·
A
coloquialidade e as gírias de Pedro quebram esse discurso de Eduardo.
·
Uso
de onomatopeias: “Pedro puxou as rédeas;
chicote estalou; tá, tá, tá; cavalo, toc, toc, toc; carro trrr”.
·
O
uso de pronome pessoal do caso reto como objeto direto (quando vê ele passar”,
“a moça só espiando ele”).
Ainda o tratamento de intimidade que Pedro
dedica aos amos ao chamar Carlotinha de “nhanhã”, é a manifestação linguística
da familiaridade com que o demônio é recebido na casa.
·
O
aspecto linguístico da personagem
Azevedo, que tem no uso e no abuso de estrangeirismos, principalmente de
origem francesa, um dos símbolos da afetação que o caracteriza.
·
Uso do ditado popular: Pedro – Moça é como
carrapato, quanto mais a gente machuca, mais ela se agarra.
·
Uso da metalinguagem: Pedro – Quando é esta coisa
que se chama prosa, escreve-se o papel todo; quando é verso, é só no meio,
aquelas carreirinhas.
·
Uso de Intertexto: Pedro – É isso mesmo. Esse
barbeiro, Sr. Fígaro, homem fino mesmo, faz tanta cousa que arranja casamento
de sinhá Rosinha com nhonhôLindório.
·
Uso de Figuras de Linguagem: Eduardo – A mulher não
é, nem deve ser, um objeto de ostentação que se traga como um alfinete de
brilhante ou uma jóia qualquer para chamar a atenção!
Ironias antirromânticas
·
A
maneira como desfaz a imagem da mulher idealizada , comprova que Azevedo
encarna o ceticismo antirromântico:
“(.,.)
Um círculo de adoradores cerca imediata mente a senhora elegante, espirituosa,
que fez a sua aparição nos salões de uma maneira deslumbrante! Os elogios, a
admiração, a consideração social acompanharão na sua ascensão esse astro
luminoso, cuja cauda é urna crinolina, e cujo brilho vem da casa do Valais ou
da Berat, à custa de alguns contos de réis!”
Apologia da arte nacional
·
Chama
a atenção, no texto, uma discussão qual Alfredo e Azevedo discutem a existência
ou não de uma genuína arte brasileira:
Azevedo:“A nossa Academia de Belas-Artes’? Pois
temos isto aqui no Rio?(...) Uma caricatura, naturalmente,., Não há arte em
nosso país.
Alfredo: A arte existe, Sr. Azevedo, o que não existe
é o amor dela.
Azevedo: Sim, faltam os artistas.
Alfredo: Faltar,, os homens que os compreendam; e
sobram aqueles que só acreditam e estimam o que vem do estrangeiro.
Azevedo: (com desdém) Já foi a Paris, Sr. Alfredo?
Alfredo: Não, senhor; desejo, e ao mesmo tempo receio
ir.
Azevedo:Porque razão?
Alfredo: Porque tenho medo de, na volta, desprezar o
meu país, ao invés de amar nele o que há de bom e procurar corrigir o que é
mau.
·
As
posições estão aí estabelecidas sem sutilezas, com maniqueísmo bem demarcado:
Alfredo, um dos heróis, por ser um dos sustentáculos da moral da peça, defende
a arte brasileira, enquanto Azevedo, seu antagonista imediato na disputa do
amor de Carlotinha, e um representante do amoralismo, ataca esta arte.
CONCLUSÃO
Nota-se
que José de Alencar, na obra em questão, mostrou alguns comportamentos cariocas
do século XIX: o rico influenciado pela
cultura europeia e vivendo em função dela ( Azevedo ), o falso rico ( Sr.
Vasconcelos ), o casamento por interesse financeiro ou social ( Vasconcelos e
Azevedo ), a moça virginal e sonhadora ( Carlotinha ), o serviçal negro e
fofoqueiro ( Pedro ), a viúva e mãe exemplar ( Dª Maria ), o verdadeiro amor (
Eduardo e Henriqueta ), e o jovem humilde e nacionalista ( Alfredo ).
A
trama é leve, a linguagem é objetiva, mesclando termos da língua francesa e da
língua portuguesa.
O
objetivo da comédia é provocar riso no público e de forma graciosa mostrar os
comportamentos ridículos de uma sociedade.
Diferente
da crença de que os demônios são causadores do mal, Pedro, o serviçal, age de
maneira pensada, desejando o bem para
ele e para os demais; quando percebe que causou algum mal ele volta e repara. O
personagem está mais para anjo do que para diabo. É ele quem dá o tom de humor
à narrativa através de uma série de confusões.
Nota-se,
também, que era totalmente improvável o criado Pedro ser tratado como membro da
família de Dª Maria, visto que era escravo.
As
mulheres da época, superficiais e artificiais eram bonecas enfeitadas a fim de
laçarem um marido o mais rapidamente possível e domesticá-los
Sem
dúvida alguma, a peça O Demônio Familiar é abolicionista, vendo sobretudo a
questão pelo lado do senhor ( o escravo Pedro introduz na casa de Eduardo a
mentira, a fofoca e a intriga ), então, cabe à família, alforriá-lo ( punição )
pelo mau comportamento do negro escravo.
OBRA