Bernardo
Joaquim da Silva Guimarães nasceu em 1825, em Ouro Preto, interior de Minas
Gerais, e aí faleceu em 1884. De 1847 a 1852, cursou a Faculdade de Direito de
São Paulo, deixando fama de estudante boêmio e brincalhão. Exerceu diferentes
atividades ao longo da vida: foi juiz, professor, jornalista, mas gostava mesmo
de literatura. Escreveu vários livros de poesia e ficção, mas foram os romances
A escrava Isaura (1875) e
O
seminarista (1872) que reservaram um lugar de destaque a Bernardo Guimarães
como um dos mais importantes prosadores do Romantismo brasileiro.
VISÃO GERAL DA OBRA
A contundente
crítica do romance é contra o celibato
religioso, contra a proibição de casamento para os padres, vista como uma
violência contra a natureza humana: “Ah, celibato!... Terrível celibato!... Ninguém
espera afrontar impunemente as leis da natureza! Tarde ou cedo, elas têm seu
complemento indeclinável, e vingam-se cruelmente dos que pretendem subtrair-se
ao seu império fatal!...”.
José
Martiniano de Alencar nasceu no dia primeiro de maio de 1829, em Mecejana, Ceará,
e faleceu no Rio de Janeiro, em 12 de dezembro de 1877, aos 48 anos de idade.
Morreu de tuberculose, doença que se fez presente durante grande parte da sua
vida. Filho de um senador do império, foi ainda menino para a então capital
federal do Brasil, o Rio de Janeiro. Aos catorze anos, em 1843, mudou-se para
São Paulo, formando-se em Direito no ano de 1850. Formado, retornou ao Rio de
Janeiro e exerceu a profissão de advogado. Foi
jornalista, político (sendo repetidas vezes deputado conservador pela sua
Província) e ministro da Justiça, não conseguindo, entretanto, chegar a
senador, que era sua grande meta.
A
carreira literária de José de Alencar principia, realmente, com as crônicas que
depois reuniu sob o título de “Ao correr da pena”(1856). Mas a notoriedade foi
devida aos artigos polêmicos do mesmo ano, contra o poema épico A confederação dos tamoios, de Gonçalves
de Magalhães, nos quais traçava o programa de uma literatura nacional, baseada
nas tradições indígenas e na descrição da natureza, mas norteada por uma
rigorosa consciência estética. Para juntar o exemplo à teoria, publica em 1857 O Guarani, que fora precedido por um
pequeno romance, Cinco Minutos.
A partir
daí não cessaria mais de escrever e publicar com relativa abundância, em três
fases mais ou menos distintas.
Na
primeira, que vai de 56 a 64, publica alguns de seus romance mais importantes e
quase todo o teatro. De 66 a 69, apenas escritos políticos, inclusive as
famosas Cartas a Erasmo, nas quais exortava o imperador a exercer efetivamente
seus poderes, a fim de pôr cobro à tirania das cliques governamentais. De 70 a
75, postos de lado a política e o teatro, entra em nova fase criadora,
publicando oito livros de ficção. O último romance, acabado em 77, Encarnação,
foi publicado depois da sua morte, assim como o belo fragmento autobiográfico,
como e por que sou romancista.
A obra de Alencar permite a seguinte classificação:
a)Romance Urbano ou Social: Cinco Minutos ( 1856
), A Viuvinha ( 1860 ), Lucíola ( 1862 ), Diva ( 1864 ), A Pata da Gazela (
1870 ), Sonhos d’ouro (1872) , Senhora
( 1875 ), Encarnação ( 1893 ).
b)Romance Regionalista: O Gaúcho( 1870 ), O Tronco do ipê (
1871 ), Til (1872) , O Sertanejo ( 1875 ).
c)Romance Histórico: As Minas de Prata ( 1865 ), Guerra dos
Mascates ( 1873 ).
e)Teatro: Demônio Familiar ( 1857 ), Verso e Reverso (
1857 ), As asas de um anjo ( 1860 ), Mãe ( 1862 ), O Jesuíta ( 1875 ).
Alencar escreveu ainda obras de não-ficção e
poesias. Devido à diversidade de temas, Alencar é considerado o mais
importante escritor do Romantismo Brasileiro.
O ESTILO DE EPOCA
O
movimento romântico brasileiro coincide com o momento decisivo de autonomia da
pátria. Os escritores tomam para si a
missão de reconhecer e valorizar o passado brasileiro, conferindo à literatura
cores locais, esforçando-se para criar
uma literatura legitimamente brasileira, capaz de revelar as qualidades
grandiosas da pátria que se tornara independente. Neste sentido, José de
Alencar aparece na literatura brasileira como o consolidador do romance,
realizando na prosa de ficção a tendência nacionalista que vinha sendo
reclamada pela crítica, sobretudo em romances como O Guarani e Iracema. O
gosto pelo teatro foi uma das características marcantes do romantismo em todos
os países. No brasil, coube a Gonçalves
de Magalhães a encenação da primeira tragédia, intitulada Antônio José ou O poeta e a inquisição, no dia 13 de março de
1863, no palco do Constitucional Fluminense, no Rio de Janeiro, sob os cuidados
do ator João Caetano. O grande nome do teatro romântico brasileiro é o de
Martins pena, considerado o inventor da comédia de costumes brasileira.
O
teatro de José de Alencar é marcado por uma preocupação moral. A comédia O
demônio familiar apresenta a figura do menino escravo Pedro, o “demônio
familiar”, como um malandro e
aproveitador, capaz apenas de fazer o mal
para a família brasileira.
A OBRA
A peça O demônio familiar foi encenada pela
primeira vez no Teatro do Ginásio do Rio de Janeiro, no dia 5 de setembro de
1857, fundindo uma temática europeia, como a interferência do dinheiro nas
relações afetivas, com uma temática brasileira, a atuação do escravo no
interior das casas das famílias brasileiras.
O
objetivo de José de Alencar era produzir uma peça original e de efeito moral,
capaz de revelar a singularidade da comédia brasileira e de educar as famílias
no combate ao vício, o de permitir, no interior das casas, a figura do escravo.
Quanto ao aspecto formal, a peça não apresenta novidades, pois emprega recursos
típicos da tradição teatral para a solução dos problemas de enredo.
Na peça
em questão, o recurso do inesperado como solução para os problemas surge na
forma de uma carta de alforria ao moleque Pedro, funcionando como um
instrumento de punição para a personagem. A técnica que liga um ato ao outro da
peça é conhecida como “técnica do gancho”, porque cria um pequeno suspense no
final do ato para prender a atenção do espectador.
Quanto ao
aspecto temático, O demônio familiar
apresenta uma ideia curiosa. A peça, aparentemente, é avançada para a época. Em
1857 (ano da estreia da peça), trinta anos antes da abolição da escravidão, o
tema do abolicionismo soaria aos ouvidos da plateia como algo avançado e
contrário aos interesses da elite dominante. Entretanto, a apologia da
liberdade é apenas aparente, pois a liberdade na peça é vista como um
instrumento de punição. A liberdade traria para o escravo consequências
severas, porque ele teria que aprender com a vida o que não conseguiu assimilar
como escravo, como o respeito e a educação.
Em outras
palavras, a escravidão é um mal não porque o branco subjuga o negro, mas porque
a maldade vem do negro. Este paga com tramas e desejos mesquinhos o bem que
lhes queria seus senhores.
Em suma:
não se trata de livrar o negro da crueldade do branco, mas de preservar o
branco das maldades do negro.
Como a
“classe” branca era econômica e politicamente a dominadora, podia falar e
escrever o que quisesse, como a mensagem interpretada acima.
José de
Alencar emprega recursos convencionais para se fazer entender pelo público,
objetivando a educação moral das famílias brasileiras. As principais lições
são: a escravidão é um mal, porque expõe a família à falta de escrúpulo dos
negros; a família é mais importante que a sociedade, pois é ela que fornece as
bases para que o indivíduo possa evitar os prazeres excessivos da vida social;
na família, a mulher, por desconhecer os perigos do mundo, deve sempre agir em
nome do verdadeiro amor; o dinheiro interfere de forma negativa nas relações
afetivas.
Em O
demônio familiar, todas as lições de moral são dadas pelo personagem Eduardo.
PERSONAGENS
Eduardo:é
o protagonista da peça. Órfão de pai, tornou-se o chefe da família,
conduzindo-a sempre através dos princípios da justiça e da bondade, o que o faz
ter o respeito de todos. Por trabalhar como médico, conhece as dores do mundo
e, por isso mesmo, sabe dar importância à vida família.
Carlotinha:é
a irmã de Eduardo. Suas ações revelam esperteza e inteligência. Como típica
mulher romântica, é bonita e deixa-se levar pelo sentimento amoroso.
Jorge:
irmão caçula de Eduardo e Carlotinha. Sua proximidade das artimanhas de Pedro
determina sua pequena importância na peça.
D. Maria:
viúva, mãe de Eduardo, Carlotinha e Jorge. Sem grande importância na trama, D.
Maria é apresentada como mãe zelosa.
Pedro: escravo
de Eduardo. Pedro é um “moleque” capaz de aprontar grandes confusões no seio da
família, sendo, por isso mesmo, o “demônio familiar”. Sua grande ambição não é
deixar de ser escravo; pelo contrário, o que almeja é ser cocheiro e, por isso,
arma as tramas para que seus senhores obtenham posses e ele possa conduzir uma
carruagem.
Alfredo:é,
ao lado de Eduardo, outro ‘bom moço” da peça. Pretendente de Carlotinha, sua
sinceridade e honestidade, bem como seu apego à cultura brasileira, logo
angariam a amizade de Eduardo e o amor de Carlotinha.
Azevedo:é
o oposto de Alfredo e Eduardo. Homem rico, excessivamente frívolo e afrancesado
nos modos, é avesso ao amor e despreza as mulheres e tudo o que diz respeito ao
Brasil. Sua função na peça é a de despertar a antipatia do público.
Henriqueta:amiga
de Carlotinha e apaixonada por Eduardo. Os obstáculos que a separam do amado
são as artimanhas de Pedro e as dívidas do pai com o moço Azevedo. Não tem o
brilhantismo das mocinhas românticas.
Vasconcelos:pai
de Henriqueta. Sua situação financeira instável o leva a negociar o casamento
da filha como forma de quitação das dívidas. Insinua desejo de casar-se com D.
Maria.
ESPAÇO
O
registro espacial do drama de Alencar reproduz a preocupação central da peça,
que é a de destacar a vida familiar.
Assim,
todos os atos se passam na “casa de Eduardo”.
Cenário: Ambientada em casa de Eduardo
·Ato Primeiro: Gabinete de estudo ( cena primeira a
XV )
·Ato Segundo: Jardim ( cena primeira a IX )
·Ato Terceiro: Sala interior ( cena primeira a XVIII
)
·Ato Quarto: Sala de visitas ( cena primeira a XVII )
Vida
urbana: Passeio Público, Rio de Janeiro.
Os
espaços externos aparecem apenas indiretamente.
Temos
referências à rua do Catete , aos hábitos urbanos, como o teatro, as lojas da
moda, e outros recantos mundanos da cidade.
TEMPO
Os três
primeiros atos da peça ocorrem em um único dia. O quarto ato ocorre um mês após
os acontecimentos do final do terceiro ato.
LINGUAGEM
A
linguagem do texto, especialmente na voz de Eduardo, é marcada pela
grandiloquência, o didatismo pouco sutil, a expressão declamatória e a
reprodução da sintaxe lusitana:
“(...)
O coração que ama de longe, que concentra o seu amor por não poder exprimi-lo,
que vive se parado pela distância, irrita-se com os obstáculos, e procura
vencê-los para aproximar-se. Nessa luta da paixão cega todos os meios são bons:
o afeto puro muitas vezes degenera em desejo insensato e recorre a esses ardis
de que um homem calmo se envergonharia; corrompe os nossos escravos, introduz a
imoralidade no seio das famílias, devassa o interior da nossa casa, que deve
ser sagrada como um templo, por que realmente é o templo da felicidade
doméstica.”
·A
coloquialidade e as gírias de Pedro quebram esse discurso de Eduardo.
·Uso
de onomatopeias: “Pedro puxou as rédeas;
chicote estalou; tá, tá, tá; cavalo, toc, toc, toc; carro trrr”.
·O
uso de pronome pessoal do caso reto como objeto direto (quando vê ele passar”,
“a moça só espiando ele”).
Ainda o tratamento de intimidade que Pedro
dedica aos amos ao chamar Carlotinha de “nhanhã”, é a manifestação linguística
da familiaridade com que o demônio é recebido na casa.
·O
aspecto linguístico da personagem
Azevedo, que tem no uso e no abuso de estrangeirismos, principalmente de
origem francesa, um dos símbolos da afetação que o caracteriza.
·Uso do ditado popular: Pedro – Moça é como
carrapato, quanto mais a gente machuca, mais ela se agarra.
·Uso da metalinguagem: Pedro – Quando é esta coisa
que se chama prosa, escreve-se o papel todo; quando é verso, é só no meio,
aquelas carreirinhas.
·Uso de Intertexto: Pedro – É isso mesmo. Esse
barbeiro, Sr. Fígaro, homem fino mesmo, faz tanta cousa que arranja casamento
de sinhá Rosinha com nhonhôLindório.
·Uso de Figuras de Linguagem: Eduardo – A mulher não
é, nem deve ser, um objeto de ostentação que se traga como um alfinete de
brilhante ou uma jóia qualquer para chamar a atenção!
Ironias antirromânticas
·A
maneira como desfaz a imagem da mulher idealizada , comprova que Azevedo
encarna o ceticismo antirromântico:
“(.,.)
Um círculo de adoradores cerca imediata mente a senhora elegante, espirituosa,
que fez a sua aparição nos salões de uma maneira deslumbrante! Os elogios, a
admiração, a consideração social acompanharão na sua ascensão esse astro
luminoso, cuja cauda é urna crinolina, e cujo brilho vem da casa do Valais ou
da Berat, à custa de alguns contos de réis!”
Apologia da arte nacional
·Chama
a atenção, no texto, uma discussão qual Alfredo e Azevedo discutem a existência
ou não de uma genuína arte brasileira:
Azevedo:“A nossa Academia de Belas-Artes’? Pois
temos isto aqui no Rio?(...) Uma caricatura, naturalmente,., Não há arte em
nosso país.
Alfredo: A arte existe, Sr. Azevedo, o que não existe
é o amor dela.
Azevedo: Sim, faltam os artistas.
Alfredo: Faltar,, os homens que os compreendam; e
sobram aqueles que só acreditam e estimam o que vem do estrangeiro.
Azevedo: (com desdém) Já foi a Paris, Sr. Alfredo?
Alfredo: Não, senhor; desejo, e ao mesmo tempo receio
ir.
Azevedo:Porque razão?
Alfredo: Porque tenho medo de, na volta, desprezar o
meu país, ao invés de amar nele o que há de bom e procurar corrigir o que é
mau.
·As
posições estão aí estabelecidas sem sutilezas, com maniqueísmo bem demarcado:
Alfredo, um dos heróis, por ser um dos sustentáculos da moral da peça, defende
a arte brasileira, enquanto Azevedo, seu antagonista imediato na disputa do
amor de Carlotinha, e um representante do amoralismo, ataca esta arte.
CONCLUSÃO
Nota-se
que José de Alencar, na obra em questão, mostrou alguns comportamentos cariocas
do século XIX: o rico influenciado pela
cultura europeia e vivendo em função dela ( Azevedo ), o falso rico ( Sr.
Vasconcelos ), o casamento por interesse financeiro ou social ( Vasconcelos e
Azevedo ), a moça virginal e sonhadora ( Carlotinha ), o serviçal negro e
fofoqueiro ( Pedro ), a viúva e mãe exemplar ( Dª Maria ), o verdadeiro amor (
Eduardo e Henriqueta ), e o jovem humilde e nacionalista ( Alfredo ).
A
trama é leve, a linguagem é objetiva, mesclando termos da língua francesa e da
língua portuguesa.
O
objetivo da comédia é provocar riso no público e de forma graciosa mostrar os
comportamentos ridículos de uma sociedade.
Diferente
da crença de que os demônios são causadores do mal, Pedro, o serviçal, age de
maneira pensada, desejando o bem para
ele e para os demais; quando percebe que causou algum mal ele volta e repara. O
personagem está mais para anjo do que para diabo. É ele quem dá o tom de humor
à narrativa através de uma série de confusões.
Nota-se,
também, que era totalmente improvável o criado Pedro ser tratado como membro da
família de Dª Maria, visto que era escravo.
As
mulheres da época, superficiais e artificiais eram bonecas enfeitadas a fim de
laçarem um marido o mais rapidamente possível e domesticá-los
Sem
dúvida alguma, a peça O Demônio Familiar é abolicionista, vendo sobretudo a
questão pelo lado do senhor ( o escravo Pedro introduz na casa de Eduardo a
mentira, a fofoca e a intriga ), então, cabe à família, alforriá-lo ( punição )
pelo mau comportamento do negro escravo.
Alienista: nome dado, antigamente, ao profissional dedicado ao estudo da loucura.
Uma espécie de psiquiatra.
“O alienista” ajuda a inaugurar a
fase realista de Machado de Assis e apresenta diversas características que a
obra desse escritor apresentará a partir de então, tais como a análise psicológica e a crítica social.
Devido a sua extensão e outras características, alguns críticos afirmam
tratar-se de uma novela; mas como este texto não apresenta as principais
características de uma novela (uma maior preocupação com o enredo,
superficialidade psicológica das personagens, etc), “O Alienista” é mais
comumente classificado como um conto.
Com o narrador onisciente em terceira pessoa, Machado de Assis consegue
mostrar e explorar o comportamento humano além das aparências, expondo com
grande ironia toda a vaidade e egoísmo do homem.
Machado de Assis coloca em questão nesse conto as fronteiras entre o que é normal e o que é anormal através de um
médico que se esforça em tentar entender os distúrbios psicológicos da
população. Dessa forma, pode-se dizer que há uma proximidade entre a personagem
do Dr. Simão Bacamarte com o próprio Machado de Assis, uma vez que o autor
também está interessado em analisar as atitudes das pessoas e suas relações
sociais.
Em torno da figura quase mítica do Dr. Bacamarte, que segue com rigidez e
frieza suas teorias científicas, Machado de Assis dispõe outras personagens
ricas em detalhes. Dentre toda espécie de tipos sociais, aparece D. Evarista,
esposa dedicada, que ama e admira o marido. Porém, por mais que ela respeite
todo o conhecimento e sabedoria do alienista, ela não segue suas recomendações
médicas e tem ciúmes da dedicação que ele tem aos estudos em detrimento dela.
Em contrapartida, temos Crispim Soares, que é o botânico da cidade. Ele admira,
respeita e segue tudo o que o Dr. Bacamarte diz, porém, apenas por interesses
próprios, de forma a conseguir vantagens através do alienista. Além dessas duas
personagens, temos o barbeiro Porfírio, homem que representa o político
preocupado somente em obter vantagens pessoais.
Estrutura da obra
Trata-se de um conto um tanto
longo, estruturado em treze capítulos. Quanto à montagem, é interessante
observar que Machado de Assis se fundamenta em possíveis "crônicas".
Observe que, com alguma freqüência, ele se refere aos "cronistas" e
às "crônicas da vila de Itaguaí" como, aliás, tem inícioO
Alienista:"As
crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo
médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos
do Brasil, de Portugal e das Espanhas.".
Também o fecho do conto
apresenta a mesma referência:"Dizem os cronistas que ele
morreu dali a dezessete meses, no mesmo estado em que entrou, sem ter podido
alcançar nada".
Foco narrativo
O narrador é em 3ª pessoa,
portanto, onisciente. A intenção do narrador é a análise do comportamento
humano: vai além das aparências e procura atingir os motivos essenciais da
conduta humana, descobrindo, no homem, o egoísmo e a vaidade. A
intencionalidade crítica do narrador não se reflete somente ao ser humano de
forma geral. Ele critica, também, a postura do cientista e do extremo
cientificismo do final do século XIX. Conseqüentemente, o narrador termina por
criticar a Escola Naturalista.
Características de
Machado de Assis encontradas no contoO Alienista
1.Frases Curtas.
2.Linguagem correta
3.Conversa com o Leitor.
4.Análise psicológica das personagens
Casa de Orates -"Casa de Loucos". E,
aparentemente, ele deseja servir à ciência. Porém, por trás dos atos
aparentemente bons, surpreende-se a intenção verdadeira de Bacamarte:atingir a
glória e ser a pessoa mais importante de Itaguaí. É Machado desmascarando a
hipocrisia humana.
O objetivo de Simão
Bacamarte -Conhecer
as fronteiras entre a razão e a loucura. Na realidade, ele pretendia buscara
glória, através de um estudo da patologia cerebral.Obs.: através de Bacamarte,
Machado de Assis critica os cientistas da época, que, para ele, não tinham os
conhecimentos suficientes e necessários. Esse conhecimento era bazófia (da boca
para fora).
Simão Bacamarte e o
sanatório- A
aprovação cessa quando Simão Bacamarte recolhe, na Casa Verde, pessoas em cuja
loucura a população não acredita. Para Simão Bacamarte, o homem é considerado
um caso que deve ser analisado cientificamente.Obs.: Machado de Assis critica a
postura cientificista que não vê o ser humano na sua integridade corpo x alma.
As teorias de Simão
Bacamarte
Teoria 1:são loucos aqueles que apresentarem um
comportamento anormal de acordo com o conhecimento da maioria.
Teoria 2:ampliou o território da loucura:"A
razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades, fora daí, insânia,
insânia e só insânia."
Teoria 3:os loucos agora são os leais, os justos, os
honestos e imparciais. Dizia que se devia admitir como normal o desequilíbrio
das faculdades e como patológico,o seu equilíbrio.
Teoria 4:o único ser perfeito de Itaguaí era o
próprio Simão Bacamarte. Logo, somente ele deveria ir para a Casa Verde.
Tempo / Ação
Percebe-se que toda a história
se passa no passado, havendo o uso do flashback: "As crônicas da Vila de
Itaguaí dizem que, em tempos remotos, vivera ali um certo médico: o Dr. Sr.
Bacamarte.
"O tempos remotos" a
que se referem as crônicas, pelas indicações dadas, se remontam à primeira
metade do século XVIII (= reinado de D. João V).
A ação transcorre, como já se
viu, em Itaguaí, "cidadezinha do Estado do Rio de Janeiro, comarca de
Iguaçu", conforme declara o crítico Massaud Moisés em nota de pé-de-página
da edição que estamos consultando.
O conto
1.Aspectos de crítica sócio-política: Na
figura do Porfírio, analisa-se o político sempre buscando vantagens pessoais.
No povo da cidade de Itaguaí, percebe-se a submissão, a fácil manipulação,
bastando, para isso, conhecimento ou liderança.
2.Humor amargo de Machado de Assis - visão
irônica e amarga que enfatiza aspectos negativos denunciadores da frustração
humana: o autor utiliza o humor para criticar a hipocrisia humana, provocada
por um sistema social regido pela falta de valores. O homem, para Machado, é
acima de tudo, ganancioso e movido pela intenção de poder. 3."Simão
Bacamarte aparece como símbolo de um saber duvidoso, pois não se revela senão
em estado de pânico em que põe o universo, quando ele procura determinar uma
norma geral de conduta para o comportamento humano,igualando, rasteiramente, todos
os indivíduos"."É a deformação do
"cientista" que toma como verdade absoluta os pressupostos da ciência
e comete, em seu nome, equívocos sucessivos sem dar pelo absurdo de suas
pretensões". Machado de Assis chama a atenção para a
relatividade da ciência. Observe-se que, a cada teoria que ele cria, ele pensa
estar diante de uma verdade absoluta para, em seguida, perceber que isso não é
verdade.
4.EmO Alienista, Machado de
Assis revela uma visão satírica e irônica da mentalidade cientificista que
marca o século XIX - O Naturalismo. O Realismo aproveita, também, nos seus
romances, algumas características filosófico-científicas da época. Porém,
condena os excessos do Naturalismo.
Personagens
Dr. Simão Bacamarte- é o protagonista da estória. A
ciência era o seu universo – o seu "emprego único", como diz.
"Homem de Ciência, e só de Ciência, nada o consternava fora da
Ciência" (p. 189). Representa bem a caricatura do depotismo cientificista
do século XIX (como está no próprio sobrenome). Acabou se tornando vítima de
suas próprias idéias, recolhendo-se à Casa Verde por se considerar o único
cérebro bem organizado de Itaguaí.
D. Evarista -é a eleita do Dr. Bacamarte para
consorte de suas glórias científicas. Embora não fosse "bonita nem
simpática", o doutor a escolheu para esposa porque ela"reuni
condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem", estando apta para
dar-lhes filhos robustos, são e inteligentes". Chegou a ser
recolhida à Casa Verde, certa vez, por manifestar algum desequilíbrio mental.
Crispim Soares -era o boticário. Muito amigo do Dr.
Bacamarte e grande admirador de sua obra humanitária. Também passou pela Casa
Verde, pois não soube "ser prudente em tempos de revolução",
aderindo, momentaneamente, à causa do barbeiro.
Padre Lopes -era o vigário local. Homem de muitas
virtudes, foi recolhido também à Casa Verde por isso mesmo. Depois foi posto em
liberdade porque sua reverendíssima se saiu muito bem numa tradução de grego e
hebraico, embora não soubesse nada dessas línguas. Foi considerado normal
apesar da aureola de santo.
Porfírio, o barbeiro -sua participação no conto é das mais
importantes, posto que representa a caricatura política na satírica machadiana.
Representa bem a ambição de poder, quando lidera a rebelião que depôs o governo
legal. Foi preso na Casa Verde duas vezes; primeiro, por Ter liderado a
rebelião; segundo, porque se negou a participar de uma Segunda revolução:
"preso por Ter cão, preso por não Ter cão" (pg 229).
Outros figurantes aparecem no
conto. Cada um representando anomalias e possíveis virtudes do ser humano. Há
loucos de todos os tipos no livro. Daí a presença de tanta gente...
Enredo
O protagonista, depois de títulos e feitos conquistados na Europa (apesar de
suas ações aparentemente disparatadas, a personagem é alguém amplamente aceito
pelo Estado, estabelece-se em Itaguaí com a ideia de criar um manicômio (Casa
Verde), que lhe seria um meio de estudar os limites entre razão e loucura. No
entanto, sua metodologia de estudo é que o diferenciará radicalmente de Machado
de Assis. Em sua frieza analítica, Simão assumirá um tom tão rígido que acabará
se tornando caricaturesco, falho e absurdo (parece haver aqui critica ao rigor
analítico do determinismo cientificista que andava em moda na literatura da
época de Machado de Assis, principalmente a de aspecto naturalista). O problema
é que o especialista vem investido do apoio oficial de todo o aparelho do
Estado, o que faz alguns críticos enxergarem nessa obra não uma preocupação com
a abordagem psicológica, mas uma crítica de alcance político. O conto seria,
portanto, uma forma de questionamento contra o autoritarismo massacrante do
sistema.
Os primeiros internados no hospício
foram casos notórios e perfeitamente aceitos pela sociedade de Itaguaí. Mas
começa a haver uma sequência de escolhas que surpreendem os cidadãos da pequena
cidade. O primeiro é o Costa, que havia torrado sua herança em empréstimos que
se tornaram fundo perdido. O pior é que se sentia envergonhado de cobrar seus
devedores, passando a ser até maltratado por estes. Depois foi a prima do
mão-aberta, que tinha ido defender seu parente com uma mirabolante história de
que a decrepitude financeira se devia a uma maldição (o mais hilário é que essa
mulher fora ao hospício para defender o primo e, após contar tal história,
acaba sendo na hora internada. Aumenta, aqui, o terror sobre uma figura tão
déspota e traiçoeira como Simão Bacamarte, pelo menos na visão do povo de
Itaguaí).
Após esses, é internado o barbeiro
Mateus (profissional que faz albardas, ou seja, selas para bestas de carga. É
uma profissão bastante humilde, tanto que a palavra albarda também
significa humilhação. Há, portanto, uma
carga negativa associada a essa profissão. Ter isso em mente ajuda na
interpretação do episódio), que se deliciava em ficar horas admirando o luxo de
sua enorme casa, ainda mais quando notava que estava sendo observado. Essa
personagem serve para que reflitamos questões como a valorização exagerada do
status e até mesmo uma análise do preconceito, pois a maioria da cidade não
aceitava um homem de origem e trabalho humilde possuir e ostentar tanta
riqueza.
Apenas esses atos já foram
suficientes para deixar a cidade em polvorosa. Assim, todos anseiam pela volta
de D. Evarista, esposa de Simão Bacamarte, que havia ido para o Rio de Janeiro
como maneira de compensar a ausência do marido, tão mergulhado que estava em
seus estudos (é interessante lembrar a relação que o casal estabelece. Ela é
extremamente apaixonada, algumas vezes dramática (se bem que o narrador deixa
um tom de descrédito ao sempre afirmar que essa caracterização é baseada nos
cronistas da época). Ele é frio, unindo-se a uma mulher não preocupado com sua
beleza, mas com aspectos práticos, como a capacidade, o vigor para reprodução.
Chega até a bendizer o fato de ela não ser bonita, pois seria menos dor de
cabeça). Para os cidadãos, ela era a esperança de salvação daquele terror
constante e aparentemente arbitrário. Por isso, a maneira festiva com que foi
recebida.
No entanto, em meio a um jantar
em homenagem à salvadora senhora, Martim Brito, um jovem dotado de exibicionismo
de linguagem, faz um elogio um tanto exagerado: Deus queria superar a Si mesmo
quando da concepção de D. Evarista. Dias depois, o janota estava internado.
Logo após, Gil Bernardes, que
adorava cumprimentar todos, até mesmo crianças, de maneira até espalhafatosa, é
confinado. Depois Coelho, que falava tanto a ponto de alguns fugirem de sua presença.
Pasma diante de aparente falta
de critério, Itaguaí acaba tornando-se um barril de pólvora prestes a explodir.
Aproveitando-se dessa situação, o barbeiro Porfírio, que há muito queria fazer
parte da estrutura de poder, mas sempre tinha sido rejeitado, arma um protesto
com intenções revolucionárias (note que a questão é pessoal: Coelho tinha
negócios importantes com Porfírio que tinha sido interrompidos com a
internação, sem mencionar o sonho por poder da personagem é disfarçada em
preocupações altruístas). Bem machadiano esse aspecto dilemático da realidade).
Depois de ter seu requerimento
desprezado pela Câmara de Vereadores, une-se a vários outros descontentes. Há
um esmorecimento quando se descobre que Simão havia pedido para não receber mais
pelos internos da Casa Verde. Configura-se a ideia de que as inúmeras reclusões
não eram movidas por corruptos interesses econômicos.
No entanto, Porfírio consegue fôlego e institui uma insurreição, que recebe até
o seu apelido: Revolta dos Canjicas. Vão até a casa do alienista, mas este os
recebe, de sua sacada, de forma equilibrada e sem a mínima disposição em se
demover de sua metodologia científica. A fúria, que tinha sido momentaneamente
aplacada pela frieza do oponente, é instigada quando este lhes dá as costas e
volta aos seus estudos.
Providencialmente, a polícia da
época (dragões) surge com a intenção de sufocar o levante. O mais espantoso é
que, justo nesse momento em que o jogo parecia perdido para Porfírio, tudo se
volta a seu favor: os componentes da guarda, provavelmente enxergando injustiça
na ditadura científica, passam para o lado dos revoltosos. Era tudo o que o
líder mais queria – poder absoluto.
Surpreendentemente (ou não),
fortalecido, Porfírio esquece a Casa Verde e se dirige para a Câmara dos
Vereadores para destituí-la. Senhor supremo, no dia seguinte encontra-se com o
alienista, que já friamente (como de costume) esperava ser demitido.
Impressionantemente, o novo governante afirma que não vai meter-se em questões
científicas.
Configura-se aqui uma crítica a
tantas revoluções que ocorreram na História e que estão por ocorrer. Entende-se
que elas são na realidade movidas por interesses coletivos autênticos, mas que
acabam sendo manipuladas e servindo de trampolim para que determinadas pessoas
subam ao poder por outros motivos, mais egoístas.
Provavelmente todas essas ideias
passaram na mente de Simão no momento em que Porfírio veio expressar-lhe apoio
em seu trabalho sanitário. Tanto que pergunta quantos pessoas haviam morrido na
revolução. São os dois casos que descobre como matéria de estudo. O primeiro é
o fato de gente ter perdido a vida por um levante que tinha a intenção de
derrubar a Casa Verde e agora tudo ficar esquecido. O segundo é o Porfírio
antes se levantar ferozmente contra Porfírio e agora considerá-lo de extrema
utilidade para o seu novo governo. O que virá daí já se sabe.
Dias depois, 50 apoiadores da revolução são internados. Porfírio ficou
desnorteado, mais ainda porque um seu opositor, o barbeiro João Pina, levanta-se
contra. Na realidade, este não estava interessado em questões sociais, mas
tinha uma rixa pessoal com o outro barbeiro. Conseqüência: arma uma balbúrdia
tamanha que acaba derrubando o Canjica.
Mas o novo poder não destitui a
Casa Verde. Fortalece-a. Mais gente é confinada. Crispim, assistente e
bajulador do alienista, que apóia Porfírio no momento que pensava que Simão
havia caído. Depois o Presidente da Câmara dos Vereadores. O clímax deu-se
quando a própria esposa do alienista, extremamente preocupada com jóias e
vestidos, a ponto de não conseguir dormir por não saber como iria numa festa,
acaba sendo internada. Ao mesmo tempo que era a prova de que Bacamarte não
tinha intenções egoístas, pois até a própria consorte tinha se tornado vítima,
tornava também patente a arbitrariedade a que Itaguaí estava submetida.
Certo tempo depois, como num
feito rocambólico, a cidade recebe a notícia de que Simão determinou a soltura
de todos os “loucos” da Casa Verde. Na verdade, o cientista havia notado que
75% dos moradores estavam confinados. Estatisticamente, portanto, sua teoria
estava errada, merecendo ser refeita.
Esse recuo, além de demonstrar
um rigor científico louvável, pois demonstra que o protagonista não está
preocupado com vaidade, tanto que reconhece que erra, exibe mais elementos
interessantes para a interpretação do conto. Pode-se dizer que exibe uma
questão polêmica: quem é normal? O que segue a maioria? Se 75% apresentam
desvios de personalidade, desvios do padrão (era essa, finalmente revelada, a
regra que determinava quem era e quem não era são), então o normal seria não
seguir um padrão. Fora essa questão polêmica, deve-se perceber a força que o
Estado, por meio da Casa Verde (tanto é que mudavam os poderosos, mas o sistema
continuava o mesmo), assumia em determinar quem estava na linha e quem não
estava. Todos tinham de se encaixar a uma norma.
Enfim, dentro da nova teoria
(louco era quem mantinha regularidade, firmeza de caráter), o terror recomeça.
O vereador Galvão é o primeiro a ser internado, porque havia protestado contra
uma emenda da Câmara que instituía que somente os vereadores é que não poderiam
ser reclusos. Sua alegação era a de que os edis não podiam legislar em causa
própria. A esposa dedicada de Crispim é também alocada na Casa Verde. O
barbeiro fica louco. Um inimigo de Simão se vê na obrigação de avisar o
alienista do risco de vida que o cientista corria. Por tal desprendimento, na
hora acaba sendo confinado. Até Porfírio, volta a ser preso, pois, conclamado a
preparar outra revolta, recusa-se, pois se tocou que gente havia perdido a vida
na Revolta dos Canjicas para o resultado ser infrutífero. Ao ser preso, resumiu
bem sua situação: preso por ter cão, preso por não ter cão.
Alguns casos são interessantes.
Pessoas que se demonstram firmes em sua personalidade são consideradas curadas
quando exibem algum desvio de caráter. Assim foi com um advogado de conduta
exemplar que só não foi internado porque havia forçado um testamento a ter a
partilha do jeito que queria. Ou então quando a esposa do Crispim xinga-o ao
descobrir o verdadeiro caráter do marido.
Porém, fora esses casos, Simão
vai percebendo que seu segundo método era falho, pois ninguém naturalmente
tinha uma personalidade reta, perfeita. Com exceção dele próprio. É por isso
que, após muita reflexão e muita conversa com pessoas notórias da cidade,
principalmente o padre (que já havia sido internado), conclui que o único
anormal era ele próprio. A despeito dos protestos de muitos, inclusive de D.
Evarista, decide, pois, soltar todos mais uma vez e encerrar-se sozinho na Casa
Verde para o resto de sua vida.
Sobre
o autor: Machado de Assis [1839 -
1908] foi um dos mais geniais escritores. Prolífico, produziu crônica, poesia, contos, romances, crítica e peças de teatro. Seu estilo é marcado pela ironia,
pela digressão, linguagem e profunda análise psicológica, mergulhando na alma
humana e revelando seus segredos mais obscuros e ocultos.
Destacou-se principalmente como
contista e romancista. Entre seus mais famosos romances destacamos Memórias
Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, D. Casmurro. Entre os livros de contos,
vale citar Papéis Avulsos, Histórias sem Data, Várias Histórias e Relíquias da
Casa Velha.
INTRODUÇÃO
Publicado em 1904, Esaú e Jacó foi de
modo geral considerado um romance de menor importância, se comparado aos três
romances machadianos da fase realista: Memórias Póstumas de Brás Cubas [1881],
Quincas Borba [1891] e Dom Casmurro [1899].
Julgava-se que em relação a estes,
Machado de Assis nele teria suavizado seu realismo, tornando-o menos explícito
e contundente, abrandando seu humor ácido e sua crítica mordaz à sociedade de
seu tempo e ao homem burguês. Chegou-se mesmo a classificá-lo como um simples
'romance de costumes'...
Hoje, porém, cada vez mais se descarta
essa visão simplista e já se admite que Esaú e Jacó seja um dos romances
esteticamente mais elaborados de Machado de Assis e, possivelmente, o de mais
difícil compreensão e interpretação.
Vamos, então, destacar alguns pontos
cruciais dessa obra, procurando compreendê-la um pouco em sua complexidade.
O ESPAÇO E O TEMPO DA NARRATIVA: como quase todas as narrativas
machadianas o espaço onde se ambienta a história é o centro urbano carioca.
Temos um tempo histórico cronológico bem definido, segunda metade do século XIX
até o início da República, com o governo de Floriano Peixoto.
O TÍTULO
O
título ESAÚ E JACÓ é uma alusão aos gêmeos bíblicos filhos de
Isaac, que brigam no ventre da mãe antes do nascimento, e que, segundo consulta
que a mãe fizera a Deus, seriam pai de duas grandes nações inimigas,
representadas hoje pelos judeus e palestinos. Os gêmeos do romance chamam-se Paulo
e Pedro, nome dado pela tia Perpétua, em homenagem aos dois maiores apóstolos
do cristianismo. Assim como aqueles foram grandes homens, esses também hão de
ser.
NARRADOR
A primeira grande questão é exatamente
esta: quem é o narrador em Esaú e Jacó?
Machado de Assis, antes do primeiro capítulo, escreveu uma advertência, na qual esclareça que 'Quando o Conselheiro Aires
faleceu, acharam-se-lhe na secretária sete cadernos manuscritos [...].'
Os seis primeiros formavam um volume,
que se transformaria no romance Memorial
de Aires [que será publicado em 1908], e o sétimo, intitulado Último, constituía uma narrativa à
parte, que ele, Machado de Assis, estava agora publicando com outro título
também proposto pelo próprio Aires, qual seja: Esaú e Jacó.
Portanto, Machado de Assis
considerava-se apenas um editor do romance, cujo verdadeiro autor / narrador
seria o Conselheiro Aires. Devemos, porém, nos lembrar que isto nada mais é do
que uma estratégia narrativa de Machado
de Assis, já que esse diplomata aposentado é obviamente uma criatura
ficcional, ou seja, um ser imaginário inventado pelo escritor.
O Conselheiro Aires é também personagem
de história, contada em Esaú e Jacó, cuja atuação começa a partir do capítulo
XI.
No entanto, embora Aires seja ao mesmo
tempo narrador e personagem, observa-se que a narrativa não é contada em
primeira pessoa, como seria de se esperar nesse caso.
A esse respeito é muito importante o capítulo XII, intitulado 'Esse Aires', e
que inicia assim: 'Esse Aires que aí aparece [referência ao cap. XI] conserva
ainda agora algumas das virtudes daquele tempo, e quase nenhum vício. [...] Não
me demoro em descrevê-lo.' E a seguir o narrador traça um preciso perfil físico
e psicomoral do diplomata aposentado.
Ora, quem é esse autor? Notamos então
que a narrativa vem sendo feita [e será toda feita] por um narrador externo à
história, ou seja, que não atua como personagem, e que, embora usando às vezes
a forma da primeira pessoa, caracteriza-se como um típico narrador de terceira
pessoa, onisciente - ou seja, que sabe tudo sobre a vida externa e interna das
personagens e que, de cima, tem a visão global da sociedade e da geografia nas
quais eles se movem.
Quem é esse narrador? É o Conselheiro
Aires, que se disfarça e se duplica, falando de si mesmo em terceira pessoa,
num processo de distanciamento e pretensa objetividade? Ou é o próprio Machado
de Assis que, editor fictício, apropria-se da narrativa e torna-se narrador,
transformando-se também num ser ficcional - ou seja, invenção de si mesmo?
Muitos estudiosos consideram o
Conselheiro Aires um alterego de Machado de Assis, isto é , um seu dublê, um
porta-voz de suas opiniões, senão sempre, ao menos em muitas situações.
Nesse caso, o narrador de Esaú e Jacó
não seria um terceiro elemento, um híbrido, um narrador - síntese que integra
Machado de Assis [autor real, implícito] e o Conselheiro Aires [autor fictício
e personagem]?
Vemos por aí o quanto Machado de Assis
problematizou um dos elementos mais importantes da narrativa: o narrador. Esse
procedimento constitui uma novidade para seu tempo e caracteriza-se como um
traço de sua modernidade.
A esta altura é importante também
observar que: 'A narrativa do romance de Esaú e Jacó se submete à visão de
mundo do Conselheiro Aires. Os fatos falam através do seu ponto de vista. [...]
Aires representa alguém que ironicamente possui a verdade, ou sobre ela
reflete. É a sua posição ideológica que fundamenta a narrativa [...]. ele é
quem opina sobre a significação da matéria narrada, mesmo que não possa
esclarecer todos os enigmas.' [Dirce Cortes Riedel - Um romance 'histórico'?]
REALISMO?
Embora Machado de Assis, após o romance
Memórias Póstumas de Brás Cubas, seja
classificado dentro do Realismo, a verdade é que se torna difícil e inadequado
confirmar sua obra nos limites estritos de escolas e movimentos literários.
O enredo de Esaú e Jacó, por exemplo,
gira ao redor da permanente rivalidade entre os gêmeos Pedro a Paulo. Já
começaram brigando no ventre materno e continuam se desentendendo vida afora.
Pedro, mais dissimulado; Paulo, mais agressivo. Pedro, conservador; Paulo,
agitado. Pedro, monarquista; Paulo, republicano [variadas situações serão
criadas ao redor dessa polarização]; Pedro, médico, no Rio de Janeiro; Paulo,
advogado, em São Paulo; ambos eleitos deputados, mas por partidos contrários...
Essa oposição sistemática só é
interrompida duas vezes pela trégua momentânea motivada pela morte das duas
figuras femininas que capitalizam o afeto dos gêmeos: Flora [a indecisa amada
dos ambos] e Natividade [a mãe].
Ora, o leitor logo percebe o quanto de
inverossímil, de artificial, de forçado mesmo, existe nessa oposição
sistemática entre os gêmeos. O irrealismo dessa situação só se compara ao irrealismo de Flora, personagem vaga,
sem outra substância que não seja vivenciar, na indecisão, o conflito do amor
duplo de que é alvo por parte dos gêmeos. Conflito e indecisão que, de certo
modo, levarão à morte.
Verdade que o próprio narrador, às
vezes de forma ambígua, às vezes de forma irônica, reconhece a
inverossimilhança e o irrealismo dessas situações... Portanto, não se trata de
um realismo do tipo 'espelho fiel e exato' da vida real. Apesar disso, porém,
identificamos no romance uma dimensão realista no sentido de que nele ocorre
momentos e cenas de forma verossímil, plausíveis, representam [imitam]
situações da vida real, parecendo, portanto, um típico 'romance de costumes'.
ROMANCE POLÍTICO?
É do ponto de vista da história
política, no entanto, que o romance parece ancorar-se mais solidamente no
Realismo. Historicamente a narrativa se passa no período da transição do
Império para a República, e esse acontecimento é referido diversas vezes e sob
diversos aspectos.
Há estudiosos que chegam mesmo a
considerar Esaú e Jacó um romance histórico ou político, centrado exatamente
nesse conflito: República X Império; conflito do qual os gêmeos seriam
simbolicamente a personificação.
Numa perspectiva bem-humorada e
acidamente irônica, o conflito é salientado no famoso episódio da tabuleta do Custódio [cap. XLIX, LXII e LXIII]. Dono da
Confeitaria do Império, Custódio precisou trocar a tabuleta que já estava bem
velha, mandando pintar uma nova. Nesse meio tempo, porém, aconteceu a mudança
de regime, com a proclamação da República.
Custódio ficou temeroso do nome de sua confeitaria e achou prudente mudá-lo. Na
dúvida, foi então consultar o Conselheiro Aires, na esperança de encontrar um
novo nome para seu estabelecimento, o qual não fosse politicamente
comprometedor e ao mesmo tempo lhe garantisse a fidelidade da freguesia.
O episódio tem vários aspectos. A
referência irônica à República, porém, está principalmente em dois comentários
similares de Custódio diante das sugestões de Aires. O primeiro é quando o
Conselheiro lhe propõe trocar o nome para Confeitaria da República, e ele
pondera: '- Lembrou-me isso, em caminho, mas também me lembro que, se daqui a
um ou dois meses, houver nova reviravolta, fico no ponto em que estou hoje, e
perco outra vez o dinheiro.' E o segundo comentário, ao final do mesmo capítulo
LXIII, é quando Aires então sugere Confeitaria do Custódio, e o comerciante
considera: '- Sim, vou pensar, Excelentíssimo. Talvez convenha esperar um ou
dois dias, a ver em que param as modas [...].'
Percebe-se, por aí, a insinuação de que seria de pouca
seriedade e duração a República recém-proclamada. Esse ponto de vista
depreciativo, aliás, aparece em outros momentos do romance, reafirmando a
conhecida preferência do cidadão Machado de Assis pelo Império.
Várias vezes o escritor se manifestou a
esse respeito, opinando que, por razões históricas e culturais, o regime
imperial era o mais adequado à realidade brasileira. Por outro lado, Machado de
Assis também tinha consciência de que o Império apresentava rachaduras e estava
se desmoronando.
Flora, simbolicamente,
personifica essa perplexidade: não pode ficar só com Pedro [Monarquia] nem só
com Paulo [República]. Seu desejo é a fusão, a síntese do que de melhor houvesse
nos dois: ideal irrealizável!
A não-conciliação dos
gêmeos representaria, então, a impossibilidade de se chegar a um regime
político ideal, o que, nessa obra,
explica o já tão comentado pessimismo e
ceticismo machadiano.
Para
Machado, República foi apenas a troca de fachada
Coube a Machado de Assis (1839-1908), em seu penúltimo romance, "Esaú
e Jacó" (1904), transformar em ficção os acontecimentos que culminaram na
queda da monarquia no Brasil. Com o
olhar cético e a ironia de sempre, Machado tratou a proclamação como fez as
"Memórias Póstumas de Brás Cubas": com "a pena da galhofa e
tinta da melancolia".
O cerne do que pensava o escritor sobre a proclamação pode ser resumido em
uma passagem célebre, batizada pela crítica como o episódio da "tabuleta do Custódio". Dono da
"Confeitaria do Império" há mais de 30 anos, Custódio manda, depois
de muita relutância, reformar a tabuleta que leva o nome de sua loja.
"Estava rachada e comida de bichos. Pois cá de baixo não se via", diz
o doceiro. A alusão ao império é óbvia. Um regime comprometido e sem base de
sustentação que ruiu sem manifestação popular, "pois cá de baixo não se
via".
Às vésperas da inauguração da nova tabuleta, Custódio ouve rumores da
revolução e "vagamente da república". Manda um bilhete ao pintor com
o seguinte recado: "Pare no d.". Não sabia se era melhor concluir a
pintura com a palavra Império ou República. O bilhete chega tarde e Custódio,
"um simples fabricante e vendedor de doces e, principalmente, respeitador
da ordem pública", vai ao desespero. Além de perder dinheiro, ainda punha
em perigo "seus deliciosos pastéis de Santa Clara" e a própria vida.
Pensa em adotar a palavra república na tabuleta, mas volta atrás: "se
daqui um ou dois meses houver nova reviravolta, fico no ponto em que estou
hoje, e perco outra vez o dinheiro."
Machado de Assis arranca o riso do
leitor ao reduzir a proclamação da república a mera troca de tabuletas, questão
de enfeite mais do que de substância.
República e Império se equivalem e são rótulos de fachada porque, na
verdade, o "buraco" do país era mais embaixo. Se a monarquia era uma
vergonha, o ideal republicano parecia postiço no Brasil. Machado capta esse
mal-estar congênito da vida nacional, com o qual republicanos e monarquistas se
debatiam e não raro quebravam a cara. São as ideias fora do lugar.
INTERTEXTUALIDADE
E POLIFONIA
O texto literário realiza-se como um
espaço no qual se cruzam diversas linguagens, variadas vozes, diferentes
discursos. O procedimento pelo qual se estabelece esse múltiplo diálogo é a
intertextualidade. Ora, as vozes que se cruzam nesse espaço intertextual são
vozes diferentes e às vezes opostas - caracterizando-se portanto o fenômeno da
polifonia.
O romance Esaú e Jacó é rico nesses
dois procedimentos. Sirva de modelo o capítulo I. Natividade e sua irmã
Perpétua sobem o Morro do Castelo para consultar Bárbara, a cabocla vidente.
Essa motivação e a cena da entrevista com a adivinha caracterizam o discurso
mítico, a esfera da religiosidade e da crendice. Nesse caso, relacionado a um
contexto popular. Mas o narrador faz referência a Ésquilo, considerado o
criador da tragédia grega, a sua peça As eumênides e à personagem Pítia,
sacerdotisa do templo de Apolo que pronunciava oráculos. Temos aqui novamente o
discurso mítico, só que agora no contexto da antiguidade clássica, ambientado
na sofisticada Grécia.
A referência ao teatro, por sua vez,
remete a uma outra linguagem, e temos então a voz narrativa do romance
dialogando com a voz da personagem teatral.
Observe-se, ainda, que durante a
consulta, lá fora o pai da advinha tocava viola e cantarolava 'uma cantiga do
sertão do Norte' - portanto, outra voz / outro discurso se cruzando com os
demais: a música e a poesia sertaneja.
E assim vamos encontrar
ao longo do romance inúmeras referências, alusões, citações [inclusive em
francês e latim], situações... - relacionadas com a Bíblia, com personagens
famosos do mundo da política, da literatura, do teatro, da filosofia, da
mitologia.
É bom salientar que um dos
procedimentos intertextuais mais curiosos é o fato de, com certa frequência, o
narrador transcreve trechos do romance Memorial de Aires - uma espécie de
diário do diplomata aposentado, e que ainda não havia sido publicado!
LINGUAGEM E LUDISMO
A linguagem é um procedimento pelo qual
o narrador, em certos momentos, interrompe o fluxo narrativo para fazer
reflexões e comentários sobre a própria narrativa, sobre o ato de narrar, a
técnica, o estilo, a construção do enredo das personagens, etc. Ou seja, o ato
de escrever torna-se objetivo de análise de própria escrita.
A Advertência
que Machado de Assis colocou já antes do primeiro capítulo tem esse caráter metalinguistico,
pois se trata de um 'esclarecimento' sobre um dos elementos-chave da narrativa:
o autor [fictício] da história.
Há várias estratégias através das quais
esse procedimento se realiza ao longo da obra. A mais evidente, conhecida por
todos os que leem Machado de Assis, é o capítulo XXVII - De uma reflexão
intempestiva, em que o narrador finge zangar-se contra o possível comentário de
uma leitora, que estaria querendo adiantar-se aos fatos. O narrador é explícito:
'Francamente, eu não gosto de gente que venha adivinhando e compondo um livro
que está sendo escrito com método.'
O capítulo XII - A epígrafe é, a esse
respeito, um dos mais elucidativos. O processo de elaboração e desenvolvimento
do romance é comparado ao desenrolar de uma partida de xadrez, durante o qual,
'por uma lei de solidariedade', o leitor e os próprios personagens colaboram
com o autor / narrador [o enxadrista].
Já no final do romance, a metáfora
lingüística usada é a da viagem - o percurso da escrita e da leitura se compara
ao transcorrer de uma viagem.
Observar que nos dois casos fica também
evidenciado o caráter lúdico da escrita e da leitura: é como se fosse um jogo,
uma brincadeira, uma diversão, um lazer.
AS
PERSONAGENS
São
personagens tipos. Cada uma representa um tipo social: os jovens estudantes
abastados, o banqueiro, o político, o diplomata, a velha viúva, a mãe
cuidadosa, a moça, a esposa avarenta, o irmão das almas que se torna um rico
capitalista, de modo meio obscuro.
1.Os Gêmeos: são personagens mais
alegóricas, não há nenhuma profundidade na análise dessas personagens. Suas
complexidades se dão mais quando comparados um ao outro: fisicamente iguais
ideologicamente diferentes. Pedro será conservador, defendendo a monarquia,
Paulo, liberal, defendendo a república; mais tarde, quando já implantada a
república, Pedro, o conservador monarquista, aceita o novo regime, Paulo, que
antes defendia, vai fazer-lhe oposição. Paulo torna-se advogado, Pedro, médico.
Por fim os dois tornam-se deputados de por partidos que se opõem. A
narrativa termina com os dois brigados, sem que o narrador saiba nos dizer o
motivo. São essas as palavras do conselheiro Aires “_Mudar? Não mudaram
nada; são os mesmos”. O conflito é algo natural entre eles.
Parece um fado, um determinismo ao qual não podem escapar. Nasceram para serem
rivais, não importa o motivo da rivalidade, o importante é estarem em contenda,
cada um se achando o único e vendo no irmão algo a ser desprezado, não no
físico, por serem semelhantes, mas nas convicções. Em nenhum momento há
sofrimento em qualquer um deles por causa disso. São, portanto, personagens
planas, sem conflitos. Se por um lado Flora agonia-se sem ter como decidir
entre um e outro a qual entregar o seu amor, nenhum deles se dispõe em ceder um
milímetro que seja ao outro.
2.Flora: Objeto de amor e disputa
entre os gêmeos, acaba alucinada por não decidir entre um e outro. Flora é uma
personagem complexa. É o que conselheiro Aires chama de “uma moça
inexplicável”. Ela é assim apresentada no capítulo XXXI:
“Tinham uma filha única, que era tudo o contrário
deles. Nem a paixão de D. Claudia, nem o aspecto governamental de Batista
distinguia a alma ou a figura da jovem Flora. Quem a conhecesse, por esses
dias, poderia compará-la a um vaso quebradiço ou à flor de uma só manhã, e
teria matéria para uma doce elegia.”
Mais adiante, no capítulo LIX, Aires faz-lhe essa
descrição:
“acho-lhe um sabor particular
naquele contraste de uma pessoa assim, tão humana e tão fora do mundo,tão
etérea e tão ambiciosa, ao mesmo tempo, de uma ambição recôndita...”
Para em seguida desabafar: “Que
o diabo a entenda, se puder; eu, que sou menos que ele, não acerto de a
entender nunca.”
Ama igualmente aos dois irmãos,
sente igualmente a falta tanto de um quanto de outro, tem prazer na presença de
ambos. Apesar de dividida por esse amor, o narrador lança sobre ela a suspeita
de um amor confuso, quase, penso eu, querendo deixar transparecer nela atração
homossexual pela mãe dos gêmeos a baronesa Natividade. Veja esse trecho: “Pai
nem mãe podia entendê-la, os rapazes também não, e talvez Santos e Natividade
menos que ninguém. Tu, mestra de amores ou aluna, deles, tu, que escutas a
diversos, concluís que ela era...” É assim mesmo que termina com o uso
das reticências. Mais na frente diz “Pitangueira não dá manga. Não,
Flora não dava para namorados.” O verbo dar, aqui,
está no sentido de “levar jeito”. Alguém pode interpretar da seguinte forma: Flora
não namoraria mais de um rapaz, ou ainda, Flora não tem jeito para
ter namorados, (cap. LXX). No capítulo CV quando Flora está convalescendo,
e Natividade lhe faz companhia há esse trecho:
“Veio visitar a moça, e, a pedido
desta, ficou alguns dias. _ Só a senhora me pode curar, disse Flora; não creio
nos remédios que me dão. As suas palavras e que são boas, e os seus
carinhos...”
Veja novamente o uso das
reticências, isso é muito significativo. No capítulo LXXXIV, lê-se:
“Flora cada vez gostava mais de
Natividade. Queria-lhe como se ela fosse
sua mãe, duplamente mãe, uma vez que não escolhera ainda nenhum dos filhos. A
causa podia ser que as duas índoles se ajustassem melhor que entre Flora e D.
Claudia. A princípio, sentiu não sei que inveja amiga, antes desejo,
quando via que as formas da outra, embora arruinadas pelo tempo, ainda
conservavam alguma linha da escultura antiga.”
Sofreria a menina Flora apenas de
carência materna ou quis maldosamente o narrador deixá-la sob suspeita como
Bentinho deixou Capitu em Dom Casmurro, sendo essa de adultério e
aquela de lesbianismo?
Assim termina a personagem mais
complexa da história:
“A morte não tardou. Veio mais
depressa do que se receava agora. Todas e o pai acudiram a rodear o leito, onde
os sinais da agonia se precipitavam. Flora acabou como uma dessas tardes
rápidas, não tanto que não façam ir doendo as saudades do dia; acabou tão
serenamente que a expressão do rosto, quando lhe fecharam os olhos, era menos
de defunta que escultura. As janelas, escancaradas, deixavam entrar o sol e o
céu.”
A morte de Flora no capítulo CVI,
não põe fim a disputa entre os irmão que continuam a disputar quem a visita
mais cedo ao cemitério, quem se demora mais na visita.
3.Natividade: é a personagem tipo
mãe protetora. A preocupação com os filhos é tão grande que a faz procurar a
vidente para saber-lhe o futuro e fia-se nas palavras vagas como se fosse uma
profecia divina a ser cumprida: “coisas futuras”, “serão grandes”. No penúltimo
capítulo da narrativa, “vai morta a velha Natividade”, “morreu de tifo”. Poucas
semanas antes de sua morte, Natividade participa da posse dos filhos as
cadeiras de deputados, o narrador fez a seguinte ponderação:
“Natividade não quis confessar qje a ciência não
bastava. AA glória cientifica parecia-lhe comparativamente obscura; era calada,
de gabinete, entendida de poucos. Política, não. Quisera só a política, mas que
não brigassem, que se amassem, que subissem de mão dadas... Assim ia pensando
consigo, enquanto Aires, abrindo mão da ciência, acabou declarando que, sem
amor não se faria nada.”
A vida de Natividade vai ser
movida por esses dois objetivos: unir os filhos e vê-los grandes homens.
4. O Conselheiro Aires: a mais
intelectual e experiente de todas as personagens da narrativa. Diplomata
aposentado, elegante e inteligente. Observa, e, em certo ponto, manipula as
pessoas que o cerca. Toma nota de tudo o que acontece no dia a dia de seu ciclo
de amizade, escrevendo o seu Memorial. Não gosta, no entanto, de se
meter em discussão, por isso prefere sempre concordar com o que as pessoas
dizem. Isso pode ser considerado um ato de desprezo, como se nada tivesse com o
que acontece com o outro, como se fora apenas um observador de tudo, um deus
transcendental e não um ser humano imanente. Não tem conflito, chega até a ter
consciência de sua missão cumprida na vida, já velho, aposentado, prepara-se
para deixar a vida sem nenhum desespero nisso.
5.Santos: é o típico capitalista,
bancário, preocupa-se apenas em obter lucros e status. Assim consegue o título
de barão. É o pai provedor de tudo que a família precisa. Espírita, prefere os
conselhos do mestre Plácido as palavras da vidente. Fica meio apagado do meio
para o fim da história. Personagem plana sem conflitos.
6.Os Batistas: são os
país de Flora, essa é a importância deles na narrativa. São apresentados a
partir do capítulo XXIX. “Batista, o pai da donzela, era homem de
quarenta e tantos anos, advogado do cível, ex-presidente de província e membro
do partido conservador”. É um político desarticulado que tenta a
indicação a qualquer custo, motivado pela mulher, D. Cláudia, a indicação para
presidência de uma província. Mais tarde, quando os liberais assumem o poder,
seguindo aos conselhos de D. Cláudia, declara-se liberal. Na iminência que
receber uma indicação para uma província do norte, é proclamada a república e
muda todo o quadro político. Ele e a esposa vão lamentar os fatos. Não há
conflito de consciência entre eles.
7. As demais personagens que aparecem são mais
para completar o quadro que se emoldura em torno dessas personagens
principais. Todavia, entre essas personagens menores, há o Nóbrega, no
princípio da história, o irmão das almas, que mendigava moedas para missas das
almas. E que após receber de Natividade uma doação de 2 mil-réis, prefere
embolsar essa quantia a entregá-la ao sacristão. Daí desparece da narrativa,
vindo aparecer como um rico capitalista, já no final da história e se propõe a
casar com Flora quando essa está na casa da irmã do conselheiro. Como veio a
transformar a doação feita pela Baronesa em fortuna não fica claro na história
narrada.