Sobre
o autor: Machado de Assis [1839 -
1908] foi um dos mais geniais escritores. Prolífico, produziu crônica, poesia, contos, romances, crítica e peças de teatro. Seu estilo é marcado pela ironia,
pela digressão, linguagem e profunda análise psicológica, mergulhando na alma
humana e revelando seus segredos mais obscuros e ocultos.
Destacou-se principalmente como
contista e romancista. Entre seus mais famosos romances destacamos Memórias
Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, D. Casmurro. Entre os livros de contos,
vale citar Papéis Avulsos, Histórias sem Data, Várias Histórias e Relíquias da
Casa Velha.
INTRODUÇÃO
Publicado em 1904, Esaú e Jacó foi de
modo geral considerado um romance de menor importância, se comparado aos três
romances machadianos da fase realista: Memórias Póstumas de Brás Cubas [1881],
Quincas Borba [1891] e Dom Casmurro [1899].
Julgava-se que em relação a estes,
Machado de Assis nele teria suavizado seu realismo, tornando-o menos explícito
e contundente, abrandando seu humor ácido e sua crítica mordaz à sociedade de
seu tempo e ao homem burguês. Chegou-se mesmo a classificá-lo como um simples
'romance de costumes'...
Hoje, porém, cada vez mais se descarta
essa visão simplista e já se admite que Esaú e Jacó seja um dos romances
esteticamente mais elaborados de Machado de Assis e, possivelmente, o de mais
difícil compreensão e interpretação.
Vamos, então, destacar alguns pontos
cruciais dessa obra, procurando compreendê-la um pouco em sua complexidade.
O ESPAÇO E O TEMPO DA NARRATIVA: como quase todas as narrativas
machadianas o espaço onde se ambienta a história é o centro urbano carioca.
Temos um tempo histórico cronológico bem definido, segunda metade do século XIX
até o início da República, com o governo de Floriano Peixoto.
O TÍTULO
O
título ESAÚ E JACÓ é uma alusão aos gêmeos bíblicos filhos de
Isaac, que brigam no ventre da mãe antes do nascimento, e que, segundo consulta
que a mãe fizera a Deus, seriam pai de duas grandes nações inimigas,
representadas hoje pelos judeus e palestinos. Os gêmeos do romance chamam-se Paulo
e Pedro, nome dado pela tia Perpétua, em homenagem aos dois maiores apóstolos
do cristianismo. Assim como aqueles foram grandes homens, esses também hão de
ser.
NARRADOR
A primeira grande questão é exatamente
esta: quem é o narrador em Esaú e Jacó?
Machado de Assis, antes do primeiro capítulo, escreveu uma advertência, na qual esclareça que 'Quando o Conselheiro Aires
faleceu, acharam-se-lhe na secretária sete cadernos manuscritos [...].'
Os seis primeiros formavam um volume,
que se transformaria no romance Memorial
de Aires [que será publicado em 1908], e o sétimo, intitulado Último, constituía uma narrativa à
parte, que ele, Machado de Assis, estava agora publicando com outro título
também proposto pelo próprio Aires, qual seja: Esaú e Jacó.
Portanto, Machado de Assis
considerava-se apenas um editor do romance, cujo verdadeiro autor / narrador
seria o Conselheiro Aires. Devemos, porém, nos lembrar que isto nada mais é do
que uma estratégia narrativa de Machado
de Assis, já que esse diplomata aposentado é obviamente uma criatura
ficcional, ou seja, um ser imaginário inventado pelo escritor.
O Conselheiro Aires é também personagem
de história, contada em Esaú e Jacó, cuja atuação começa a partir do capítulo
XI.
No entanto, embora Aires seja ao mesmo
tempo narrador e personagem, observa-se que a narrativa não é contada em
primeira pessoa, como seria de se esperar nesse caso.
A esse respeito é muito importante o capítulo XII, intitulado 'Esse Aires', e que inicia assim: 'Esse Aires que aí aparece [referência ao cap. XI] conserva ainda agora algumas das virtudes daquele tempo, e quase nenhum vício. [...] Não me demoro em descrevê-lo.' E a seguir o narrador traça um preciso perfil físico e psicomoral do diplomata aposentado.
Ora, quem é esse autor? Notamos então
que a narrativa vem sendo feita [e será toda feita] por um narrador externo à
história, ou seja, que não atua como personagem, e que, embora usando às vezes
a forma da primeira pessoa, caracteriza-se como um típico narrador de terceira
pessoa, onisciente - ou seja, que sabe tudo sobre a vida externa e interna das
personagens e que, de cima, tem a visão global da sociedade e da geografia nas
quais eles se movem.
Quem é esse narrador? É o Conselheiro
Aires, que se disfarça e se duplica, falando de si mesmo em terceira pessoa,
num processo de distanciamento e pretensa objetividade? Ou é o próprio Machado
de Assis que, editor fictício, apropria-se da narrativa e torna-se narrador,
transformando-se também num ser ficcional - ou seja, invenção de si mesmo?
Muitos estudiosos consideram o
Conselheiro Aires um alterego de Machado de Assis, isto é , um seu dublê, um
porta-voz de suas opiniões, senão sempre, ao menos em muitas situações.
Nesse caso, o narrador de Esaú e Jacó
não seria um terceiro elemento, um híbrido, um narrador - síntese que integra
Machado de Assis [autor real, implícito] e o Conselheiro Aires [autor fictício
e personagem]?
Vemos por aí o quanto Machado de Assis
problematizou um dos elementos mais importantes da narrativa: o narrador. Esse
procedimento constitui uma novidade para seu tempo e caracteriza-se como um
traço de sua modernidade.
A esta altura é importante também
observar que: 'A narrativa do romance de Esaú e Jacó se submete à visão de
mundo do Conselheiro Aires. Os fatos falam através do seu ponto de vista. [...]
Aires representa alguém que ironicamente possui a verdade, ou sobre ela
reflete. É a sua posição ideológica que fundamenta a narrativa [...]. ele é
quem opina sobre a significação da matéria narrada, mesmo que não possa
esclarecer todos os enigmas.' [Dirce Cortes Riedel - Um romance 'histórico'?]
REALISMO?
Embora Machado de Assis, após o romance
Memórias Póstumas de Brás Cubas, seja
classificado dentro do Realismo, a verdade é que se torna difícil e inadequado
confirmar sua obra nos limites estritos de escolas e movimentos literários.
O enredo de Esaú e Jacó, por exemplo,
gira ao redor da permanente rivalidade entre os gêmeos Pedro a Paulo. Já
começaram brigando no ventre materno e continuam se desentendendo vida afora.
Pedro, mais dissimulado; Paulo, mais agressivo. Pedro, conservador; Paulo,
agitado. Pedro, monarquista; Paulo, republicano [variadas situações serão
criadas ao redor dessa polarização]; Pedro, médico, no Rio de Janeiro; Paulo,
advogado, em São Paulo; ambos eleitos deputados, mas por partidos contrários...
Essa oposição sistemática só é
interrompida duas vezes pela trégua momentânea motivada pela morte das duas
figuras femininas que capitalizam o afeto dos gêmeos: Flora [a indecisa amada
dos ambos] e Natividade [a mãe].
Ora, o leitor logo percebe o quanto de
inverossímil, de artificial, de forçado mesmo, existe nessa oposição
sistemática entre os gêmeos. O irrealismo dessa situação só se compara ao irrealismo de Flora, personagem vaga,
sem outra substância que não seja vivenciar, na indecisão, o conflito do amor
duplo de que é alvo por parte dos gêmeos. Conflito e indecisão que, de certo
modo, levarão à morte.
Verdade que o próprio narrador, às
vezes de forma ambígua, às vezes de forma irônica, reconhece a
inverossimilhança e o irrealismo dessas situações... Portanto, não se trata de
um realismo do tipo 'espelho fiel e exato' da vida real. Apesar disso, porém,
identificamos no romance uma dimensão realista no sentido de que nele ocorre
momentos e cenas de forma verossímil, plausíveis, representam [imitam]
situações da vida real, parecendo, portanto, um típico 'romance de costumes'.
ROMANCE POLÍTICO?
É do ponto de vista da história
política, no entanto, que o romance parece ancorar-se mais solidamente no
Realismo. Historicamente a narrativa se passa no período da transição do
Império para a República, e esse acontecimento é referido diversas vezes e sob
diversos aspectos.
Há estudiosos que chegam mesmo a
considerar Esaú e Jacó um romance histórico ou político, centrado exatamente
nesse conflito: República X Império; conflito do qual os gêmeos seriam
simbolicamente a personificação.
Numa perspectiva bem-humorada e
acidamente irônica, o conflito é salientado no famoso episódio da tabuleta do Custódio [cap. XLIX, LXII e LXIII]. Dono da
Confeitaria do Império, Custódio precisou trocar a tabuleta que já estava bem
velha, mandando pintar uma nova. Nesse meio tempo, porém, aconteceu a mudança
de regime, com a proclamação da República.
Custódio ficou temeroso do nome de sua confeitaria e achou prudente mudá-lo. Na dúvida, foi então consultar o Conselheiro Aires, na esperança de encontrar um novo nome para seu estabelecimento, o qual não fosse politicamente comprometedor e ao mesmo tempo lhe garantisse a fidelidade da freguesia.
Custódio ficou temeroso do nome de sua confeitaria e achou prudente mudá-lo. Na dúvida, foi então consultar o Conselheiro Aires, na esperança de encontrar um novo nome para seu estabelecimento, o qual não fosse politicamente comprometedor e ao mesmo tempo lhe garantisse a fidelidade da freguesia.
O episódio tem vários aspectos. A
referência irônica à República, porém, está principalmente em dois comentários
similares de Custódio diante das sugestões de Aires. O primeiro é quando o
Conselheiro lhe propõe trocar o nome para Confeitaria da República, e ele
pondera: '- Lembrou-me isso, em caminho, mas também me lembro que, se daqui a
um ou dois meses, houver nova reviravolta, fico no ponto em que estou hoje, e
perco outra vez o dinheiro.' E o segundo comentário, ao final do mesmo capítulo
LXIII, é quando Aires então sugere Confeitaria do Custódio, e o comerciante
considera: '- Sim, vou pensar, Excelentíssimo. Talvez convenha esperar um ou
dois dias, a ver em que param as modas [...].'
Percebe-se, por aí, a insinuação de que seria de pouca
seriedade e duração a República recém-proclamada. Esse ponto de vista
depreciativo, aliás, aparece em outros momentos do romance, reafirmando a
conhecida preferência do cidadão Machado de Assis pelo Império.
Várias vezes o escritor se manifestou a
esse respeito, opinando que, por razões históricas e culturais, o regime
imperial era o mais adequado à realidade brasileira. Por outro lado, Machado de
Assis também tinha consciência de que o Império apresentava rachaduras e estava
se desmoronando.
Flora, simbolicamente,
personifica essa perplexidade: não pode ficar só com Pedro [Monarquia] nem só
com Paulo [República]. Seu desejo é a fusão, a síntese do que de melhor houvesse
nos dois: ideal irrealizável!
A não-conciliação dos
gêmeos representaria, então, a impossibilidade de se chegar a um regime
político ideal, o que, nessa obra,
explica o já tão comentado pessimismo e
ceticismo machadiano.
Para
Machado, República foi apenas a troca de fachada
Coube a Machado de Assis (1839-1908), em seu penúltimo romance, "Esaú
e Jacó" (1904), transformar em ficção os acontecimentos que culminaram na
queda da monarquia no Brasil. Com o
olhar cético e a ironia de sempre, Machado tratou a proclamação como fez as
"Memórias Póstumas de Brás Cubas": com "a pena da galhofa e
tinta da melancolia".
O cerne do que pensava o escritor sobre a proclamação pode ser resumido em
uma passagem célebre, batizada pela crítica como o episódio da "tabuleta do Custódio". Dono da
"Confeitaria do Império" há mais de 30 anos, Custódio manda, depois
de muita relutância, reformar a tabuleta que leva o nome de sua loja.
"Estava rachada e comida de bichos. Pois cá de baixo não se via", diz
o doceiro. A alusão ao império é óbvia. Um regime comprometido e sem base de
sustentação que ruiu sem manifestação popular, "pois cá de baixo não se
via".
Às vésperas da inauguração da nova tabuleta, Custódio ouve rumores da
revolução e "vagamente da república". Manda um bilhete ao pintor com
o seguinte recado: "Pare no d.". Não sabia se era melhor concluir a
pintura com a palavra Império ou República. O bilhete chega tarde e Custódio,
"um simples fabricante e vendedor de doces e, principalmente, respeitador
da ordem pública", vai ao desespero. Além de perder dinheiro, ainda punha
em perigo "seus deliciosos pastéis de Santa Clara" e a própria vida.
Pensa em adotar a palavra república na tabuleta, mas volta atrás: "se
daqui um ou dois meses houver nova reviravolta, fico no ponto em que estou
hoje, e perco outra vez o dinheiro."
Machado de Assis arranca o riso do
leitor ao reduzir a proclamação da república a mera troca de tabuletas, questão
de enfeite mais do que de substância.
República e Império se equivalem e são rótulos de fachada porque, na
verdade, o "buraco" do país era mais embaixo. Se a monarquia era uma
vergonha, o ideal republicano parecia postiço no Brasil. Machado capta esse
mal-estar congênito da vida nacional, com o qual republicanos e monarquistas se
debatiam e não raro quebravam a cara. São as ideias fora do lugar.
INTERTEXTUALIDADE
E POLIFONIA
O texto literário realiza-se como um
espaço no qual se cruzam diversas linguagens, variadas vozes, diferentes
discursos. O procedimento pelo qual se estabelece esse múltiplo diálogo é a
intertextualidade. Ora, as vozes que se cruzam nesse espaço intertextual são
vozes diferentes e às vezes opostas - caracterizando-se portanto o fenômeno da
polifonia.
O romance Esaú e Jacó é rico nesses
dois procedimentos. Sirva de modelo o capítulo I. Natividade e sua irmã
Perpétua sobem o Morro do Castelo para consultar Bárbara, a cabocla vidente.
Essa motivação e a cena da entrevista com a adivinha caracterizam o discurso
mítico, a esfera da religiosidade e da crendice. Nesse caso, relacionado a um
contexto popular. Mas o narrador faz referência a Ésquilo, considerado o
criador da tragédia grega, a sua peça As eumênides e à personagem Pítia,
sacerdotisa do templo de Apolo que pronunciava oráculos. Temos aqui novamente o
discurso mítico, só que agora no contexto da antiguidade clássica, ambientado
na sofisticada Grécia.
A referência ao teatro, por sua vez,
remete a uma outra linguagem, e temos então a voz narrativa do romance
dialogando com a voz da personagem teatral.
Observe-se, ainda, que durante a
consulta, lá fora o pai da advinha tocava viola e cantarolava 'uma cantiga do
sertão do Norte' - portanto, outra voz / outro discurso se cruzando com os
demais: a música e a poesia sertaneja.
E assim vamos encontrar
ao longo do romance inúmeras referências, alusões, citações [inclusive em
francês e latim], situações... - relacionadas com a Bíblia, com personagens
famosos do mundo da política, da literatura, do teatro, da filosofia, da
mitologia.
É bom salientar que um dos
procedimentos intertextuais mais curiosos é o fato de, com certa frequência, o
narrador transcreve trechos do romance Memorial de Aires - uma espécie de
diário do diplomata aposentado, e que ainda não havia sido publicado!
LINGUAGEM E LUDISMO
A linguagem é um procedimento pelo qual
o narrador, em certos momentos, interrompe o fluxo narrativo para fazer
reflexões e comentários sobre a própria narrativa, sobre o ato de narrar, a
técnica, o estilo, a construção do enredo das personagens, etc. Ou seja, o ato
de escrever torna-se objetivo de análise de própria escrita.
A Advertência
que Machado de Assis colocou já antes do primeiro capítulo tem esse caráter metalinguistico,
pois se trata de um 'esclarecimento' sobre um dos elementos-chave da narrativa:
o autor [fictício] da história.
Há várias estratégias através das quais
esse procedimento se realiza ao longo da obra. A mais evidente, conhecida por
todos os que leem Machado de Assis, é o capítulo XXVII - De uma reflexão
intempestiva, em que o narrador finge zangar-se contra o possível comentário de
uma leitora, que estaria querendo adiantar-se aos fatos. O narrador é explícito:
'Francamente, eu não gosto de gente que venha adivinhando e compondo um livro
que está sendo escrito com método.'
O capítulo XII - A epígrafe é, a esse
respeito, um dos mais elucidativos. O processo de elaboração e desenvolvimento
do romance é comparado ao desenrolar de uma partida de xadrez, durante o qual,
'por uma lei de solidariedade', o leitor e os próprios personagens colaboram
com o autor / narrador [o enxadrista].
Já no final do romance, a metáfora
lingüística usada é a da viagem - o percurso da escrita e da leitura se compara
ao transcorrer de uma viagem.
Observar que nos dois casos fica também
evidenciado o caráter lúdico da escrita e da leitura: é como se fosse um jogo,
uma brincadeira, uma diversão, um lazer.
AS
PERSONAGENS
São
personagens tipos. Cada uma representa um tipo social: os jovens estudantes
abastados, o banqueiro, o político, o diplomata, a velha viúva, a mãe
cuidadosa, a moça, a esposa avarenta, o irmão das almas que se torna um rico
capitalista, de modo meio obscuro.
1. Os Gêmeos: são personagens mais
alegóricas, não há nenhuma profundidade na análise dessas personagens. Suas
complexidades se dão mais quando comparados um ao outro: fisicamente iguais
ideologicamente diferentes. Pedro será conservador, defendendo a monarquia,
Paulo, liberal, defendendo a república; mais tarde, quando já implantada a
república, Pedro, o conservador monarquista, aceita o novo regime, Paulo, que
antes defendia, vai fazer-lhe oposição. Paulo torna-se advogado, Pedro, médico.
Por fim os dois tornam-se deputados de por partidos que se opõem. A
narrativa termina com os dois brigados, sem que o narrador saiba nos dizer o
motivo. São essas as palavras do conselheiro Aires “_Mudar? Não mudaram
nada; são os mesmos”. O conflito é algo natural entre eles.
Parece um fado, um determinismo ao qual não podem escapar. Nasceram para serem
rivais, não importa o motivo da rivalidade, o importante é estarem em contenda,
cada um se achando o único e vendo no irmão algo a ser desprezado, não no
físico, por serem semelhantes, mas nas convicções. Em nenhum momento há
sofrimento em qualquer um deles por causa disso. São, portanto, personagens
planas, sem conflitos. Se por um lado Flora agonia-se sem ter como decidir
entre um e outro a qual entregar o seu amor, nenhum deles se dispõe em ceder um
milímetro que seja ao outro.
2. Flora: Objeto de amor e disputa
entre os gêmeos, acaba alucinada por não decidir entre um e outro. Flora é uma
personagem complexa. É o que conselheiro Aires chama de “uma moça
inexplicável”. Ela é assim apresentada no capítulo XXXI:
“Tinham uma filha única, que era tudo o contrário
deles. Nem a paixão de D. Claudia, nem o aspecto governamental de Batista
distinguia a alma ou a figura da jovem Flora. Quem a conhecesse, por esses
dias, poderia compará-la a um vaso quebradiço ou à flor de uma só manhã, e
teria matéria para uma doce elegia.”
Mais adiante, no capítulo LIX, Aires faz-lhe essa
descrição:
“acho-lhe um sabor particular
naquele contraste de uma pessoa assim, tão humana e tão fora do mundo,tão
etérea e tão ambiciosa, ao mesmo tempo, de uma ambição recôndita...”
Para em seguida desabafar: “Que
o diabo a entenda, se puder; eu, que sou menos que ele, não acerto de a
entender nunca.”
Ama igualmente aos dois irmãos,
sente igualmente a falta tanto de um quanto de outro, tem prazer na presença de
ambos. Apesar de dividida por esse amor, o narrador lança sobre ela a suspeita
de um amor confuso, quase, penso eu, querendo deixar transparecer nela atração
homossexual pela mãe dos gêmeos a baronesa Natividade. Veja esse trecho: “Pai
nem mãe podia entendê-la, os rapazes também não, e talvez Santos e Natividade
menos que ninguém. Tu, mestra de amores ou aluna, deles, tu, que escutas a
diversos, concluís que ela era...” É assim mesmo que termina com o uso
das reticências. Mais na frente diz “Pitangueira não dá manga. Não,
Flora não dava para namorados.” O verbo dar, aqui,
está no sentido de “levar jeito”. Alguém pode interpretar da seguinte forma: Flora
não namoraria mais de um rapaz, ou ainda, Flora não tem jeito para
ter namorados, (cap. LXX). No capítulo CV quando Flora está convalescendo,
e Natividade lhe faz companhia há esse trecho:
“Veio visitar a moça, e, a pedido
desta, ficou alguns dias. _ Só a senhora me pode curar, disse Flora; não creio
nos remédios que me dão. As suas palavras e que são boas, e os seus
carinhos...”
Veja novamente o uso das
reticências, isso é muito significativo. No capítulo LXXXIV, lê-se:
“Flora cada vez gostava mais de
Natividade. Queria-lhe como se ela fosse
sua mãe, duplamente mãe, uma vez que não escolhera ainda nenhum dos filhos. A
causa podia ser que as duas índoles se ajustassem melhor que entre Flora e D.
Claudia. A princípio, sentiu não sei que inveja amiga, antes desejo,
quando via que as formas da outra, embora arruinadas pelo tempo, ainda
conservavam alguma linha da escultura antiga.”
Sofreria a menina Flora apenas de
carência materna ou quis maldosamente o narrador deixá-la sob suspeita como
Bentinho deixou Capitu em Dom Casmurro, sendo essa de adultério e
aquela de lesbianismo?
Assim termina a personagem mais
complexa da história:
“A morte não tardou. Veio mais
depressa do que se receava agora. Todas e o pai acudiram a rodear o leito, onde
os sinais da agonia se precipitavam. Flora acabou como uma dessas tardes
rápidas, não tanto que não façam ir doendo as saudades do dia; acabou tão
serenamente que a expressão do rosto, quando lhe fecharam os olhos, era menos
de defunta que escultura. As janelas, escancaradas, deixavam entrar o sol e o
céu.”
A morte de Flora no capítulo CVI,
não põe fim a disputa entre os irmão que continuam a disputar quem a visita
mais cedo ao cemitério, quem se demora mais na visita.
3. Natividade: é a personagem tipo
mãe protetora. A preocupação com os filhos é tão grande que a faz procurar a
vidente para saber-lhe o futuro e fia-se nas palavras vagas como se fosse uma
profecia divina a ser cumprida: “coisas futuras”, “serão grandes”. No penúltimo
capítulo da narrativa, “vai morta a velha Natividade”, “morreu de tifo”. Poucas
semanas antes de sua morte, Natividade participa da posse dos filhos as
cadeiras de deputados, o narrador fez a seguinte ponderação:
“Natividade não quis confessar qje a ciência não
bastava. AA glória cientifica parecia-lhe comparativamente obscura; era calada,
de gabinete, entendida de poucos. Política, não. Quisera só a política, mas que
não brigassem, que se amassem, que subissem de mão dadas... Assim ia pensando
consigo, enquanto Aires, abrindo mão da ciência, acabou declarando que, sem
amor não se faria nada.”
A vida de Natividade vai ser
movida por esses dois objetivos: unir os filhos e vê-los grandes homens.
4. O Conselheiro Aires: a mais
intelectual e experiente de todas as personagens da narrativa. Diplomata
aposentado, elegante e inteligente. Observa, e, em certo ponto, manipula as
pessoas que o cerca. Toma nota de tudo o que acontece no dia a dia de seu ciclo
de amizade, escrevendo o seu Memorial. Não gosta, no entanto, de se
meter em discussão, por isso prefere sempre concordar com o que as pessoas
dizem. Isso pode ser considerado um ato de desprezo, como se nada tivesse com o
que acontece com o outro, como se fora apenas um observador de tudo, um deus
transcendental e não um ser humano imanente. Não tem conflito, chega até a ter
consciência de sua missão cumprida na vida, já velho, aposentado, prepara-se
para deixar a vida sem nenhum desespero nisso.
5. Santos: é o típico capitalista,
bancário, preocupa-se apenas em obter lucros e status. Assim consegue o título
de barão. É o pai provedor de tudo que a família precisa. Espírita, prefere os
conselhos do mestre Plácido as palavras da vidente. Fica meio apagado do meio
para o fim da história. Personagem plana sem conflitos.
6. Os Batistas: são os
país de Flora, essa é a importância deles na narrativa. São apresentados a
partir do capítulo XXIX. “Batista, o pai da donzela, era homem de
quarenta e tantos anos, advogado do cível, ex-presidente de província e membro
do partido conservador”. É um político desarticulado que tenta a
indicação a qualquer custo, motivado pela mulher, D. Cláudia, a indicação para
presidência de uma província. Mais tarde, quando os liberais assumem o poder,
seguindo aos conselhos de D. Cláudia, declara-se liberal. Na iminência que
receber uma indicação para uma província do norte, é proclamada a república e
muda todo o quadro político. Ele e a esposa vão lamentar os fatos. Não há
conflito de consciência entre eles.
7. As demais personagens que aparecem são mais
para completar o quadro que se emoldura em torno dessas personagens
principais. Todavia, entre essas personagens menores, há o Nóbrega, no
princípio da história, o irmão das almas, que mendigava moedas para missas das
almas. E que após receber de Natividade uma doação de 2 mil-réis, prefere
embolsar essa quantia a entregá-la ao sacristão. Daí desparece da narrativa,
vindo aparecer como um rico capitalista, já no final da história e se propõe a
casar com Flora quando essa está na casa da irmã do conselheiro. Como veio a
transformar a doação feita pela Baronesa em fortuna não fica claro na história
narrada.
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