BATE-PAPO PÓS-LEITURA
ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS
Em todos os
tempos, sempre surge uma voz que vai contra as convenções sociais. Essa voz
pode não falar explicitamente, mas ela está lá, ela existe. Eis o caso de Lewis
Carroll e de seu livro Alice no País das
Maravilhas.
Podemos realizar
uma leitura ingênua da obra de Lewis Carroll, atentando apenas para o enredo,
personagens... Ou uma análise crítica,
que vê na fuga de Alice para o mundo mágico uma forma de censurar a sociedade
opressora na qual vivemos.
Vamos à segunda
hipótese.
Uma menina
enfadada dá inicio a história de absurdos aparentes. Assim, temos uma série de fatos que serão
desencadeados por causa da garota Alice que, sentada juntamente com sua irmã,
começava a cansar-se por não ter nada (de interessante) para fazer.
Se considerarmos
Alice como um indivíduo pertencente à sociedade comum, o seu estado de tédio,
cansaço, aborrecimento, pode ser entendido como sendo causado pelo contexto
social. Esse mesmo tédio é quebrado pelo elemento mágico, introduzido pelo
Coelho Branco, que desperta em Alice a curiosidade e a vontade de ir atrás do
novo, do diferente, da aventura, isto é, ela sai da apatia, para o movimento,
para a mudança.
Ao ir atrás do
Coelho Branco, a menina entra na toca sem pensar como sairia dali ou quais
seriam as consequências de seus atos. Nessa atitude da menina temos uma
transgressão em relação ao que se espera do comportamento infantil: a
obediência e a conformidade.
Na Inglaterra
Vitoriana da época (século XIX), as crianças eram educadas para que se
comportassem como “miniadultos”. A sociedade acreditava que, para se
desenvolverem as virtudes no comportamento infantil, era necessário que as
crianças tivessem a plena consciência de que há a culpa e a aprovação. Assim, o
universo dos pequeninos era povoado por esses dois conceitos que, ao final,
eram regidos por um único: o medo da punição.
A personagem
Alice, porém, foge a esse padrão amedrontado. Ela se aventura, vai em busca da
diversão, do diferente, do prazer que a experiência poderia trazer, sem pensar
nas punições. Até aqui, você, leitor atento, já percebeu que a história realça,
entre outras coisas, o valor de ser livre, de viver sem censuras bobas, o
inconformismo com o que não nos faz feliz. Exemplo disso é que quando o mundo
mágico deixa de ser divertido, no capítulo final, no momento em que Alice está
em um tribunal sem regras e enfrenta a Rainha de Copas, ela acorda: o seu
percurso de diversão acaba no momento em que a aventura termina. Ela desperta
de seu sonho, voltando para a realidade.
Agora que
terminamos nossa leitura, vemos que Alice não é uma obra escrita com o
propósito de moralizar e manipular o leitor, levando-o a acreditar que determinado
padrão é sempre correto e aceitável, ou ainda que a “lógica” é o certo e a
falta dela é errado. Não! O contexto é que faz o sentido. E a falta, aparente,
dele pode ser o mais apropriado em certas situações. Lembram-se do NONSENSE? Prova do dito é que há uma série de inversões e
subversões na história, justamente para que pensemos em como as situações, a
vida e os poderes que a regem são relativos e podem (e devem) ser questionados
quando parecerem simples imposições que não trarão melhorias para ninguém.
Vale lembrar que
um dos questionamentos mais significativos do livro se refere à figura da
Rainha. O contexto ajuda a explicar: na época em que Lewis Carroll publicou o
seu livro Alice no país das maravilhas,
estava no trono a Rainha Vitória, importante figura, tanto social quanto
economicamente, para a Inglaterra do século XIX. Mas essa rainha, embora fosse
uma importante figura para a sociedade inglesa, tinha o poder político
limitado. A Rainha de Copas, invenção do autor, dentro do sistema maluco que é
o País das Maravilhas, quase não tem
poder de decisão, assim como a Rainha Vitória dentro da monarquia do período.
Os seres mágicos a temem, é verdade, mas as suas ordens de decapitação nunca
são cumpridas, como o personagem Grifo diz para Alice: “– Ora, ela é que é
engraçada – disse o Grifo. – Você sabe, isso tudo é fantasia dela: nunca
executam ninguém.” Ela é caracterizada irritadiça e autoritária, que vê nas
decapitações a solução para todos os problemas: “A Rainha só tinha um meio de
remover todas as dificuldades. – Cortem-lhe a cabeça! – gritou, sem voltar-se
sequer na direção apontada”. Alice enfrenta a autoridade da Rainha do País das Maravilhas, abertamente, pelo
menos duas vezes: quando ela encontra a Rainha pela primeira vez e no tribunal.
Enfrentar a
Rainha é uma maneira de se opor ao sistema, uma vez que ela é a representante
dele, ou seja, esse ato é a concretização da busca da libertação de uma
rigidez, que diz o que deve ser feito. Alice, uma criança, enfrenta a Rainha e
põe “em xeque” o seu poder e o seu julgamento.
Em uma obra que
pode ser lida como a representação da fuga da realidade para um mundo de
fantasia livre das regras sociais, um mundo que critica a realidade, enfrentar
o poder real e não ser punido é o ápice da libertação da rigidez e da opressão.
E Alice é a representante de tal desejo, concretizando-o no mundo da fantasia,
livre da punição que esse desrespeito com a autoridade da rainha traria.
Percebeu? Ler um
livro literário é um convite a descobrir sentidos: alguns estão facilmente
postos na superfície das linhas do texto, outros (os mais interessantes!)
aguardam um leitor atento, crítico e sensível, disposto a dialogar, questionar
e tornar a obra uma nova produção, porque o poder questionador faz o texto, por
fim, ser também de quem o lê.
Ler é mesmo um ato transformador!
Enfrentar a
Rainha é uma maneira de se opor ao sistema, uma vez que ela é a representante
dele, ou seja, esse ato é a concretização da busca da libertação de uma
rigidez, que diz o que deve ser feito. Alice, uma criança, enfrenta a Rainha e
põe “em xeque” o seu poder e o seu julgamento.