Descanso ao “operário das ruínas”
Por
Daniele Ribeiro
O momento da
morte é marcado pela dor. Em face do fim, os homens, comumente, refletem quanto
ao sentido do ser e sobre como fazer da continuidade da existência um tempo
valoroso. É por esse motivo que a doação de órgãos poderia ser o instante de
oferecer vida àqueles que estão nas longas filas de espera por transplantes. A
irreversibilidade da morte encefálica, tão comum, dado os elevados índices de
óbitos no cotidiano do Brasil, não se converte em doações devido,
especialmente, à negativa familiar e à, ainda, ineficiente gestão de saúde para
que o processo seja rápido e de sucesso.
Verme – “operário
das ruínas”. É com essa definição que o poeta incluso no rol dos
pré-modernistas, Augusto dos Anjos, define o que estará em ação após a morte.
No entanto, essa realidade pode ser amenizada já que alguns órgãos podem
continuar a viver em outras pessoas. Contudo, o luto associado à falta de
informação e mitos – quanto ao tráfico de órgãos e também a fé religiosa –
impedem que as famílias façam a opção por doar. A ausência de altruísmo e a
postura individualista da sociedade atual, características preditas por Bauman,
definem, muitas vezes, a negativa, uma vez que a dor do momento, potencializada
pela parca informação sobre a realidade das tristes filas de espera por uma
esperança de vida, não dão espaço para que os corpos daqueles que faleceram cerebralmente tenham um destino diferente da ação do
“operário” descrito pelo “poeta do mau gosto”.
Além disso, mesmo
sendo o Brasil reconhecido pelo sucesso nos transplantes que realiza, o país
desperdiça parte dos órgãos que poderiam ser transplantados. Uma vez
diagnosticada a morte encefálica, o que deve ser feito por um médico
neurologista – profissional nem sempre presente, pelo menos de modo constante, nos
hospitais públicos brasileiros -, o processo deve ser rápido e atendendo à
vasta extensão territorial do país. Assim, as unidades hospitalares precisam
ser ágeis na comunicação à Central de Captação de Órgãos, o que nem sempre
acontece. Além disso, o corpo morto deve ser mantido em leitos, sob condições
adequadas para que o transplante ocorra, atenção que, em um sistema público
superlotado, nem sempre é prioridade, uma vez que esses leitos acabam sendo
destinados a quem clinicamente tem condições de viver. Todos esses fatores
frustram a esperança de que o corpo morto seja mais que “carne dada aos vermes”
e formam um embaraço à vida de quem almeja um órgão.
“Não é da
morte que temos medo, mas de pensar nela.” A constatação de Sêneca, filósofo
romano, ajuda a ilustrar o quanto a falta de diálogo – social e familiar –
colabora para a perpetuação do não aproveitamento dos órgãos no Brasil. Essa
realidade pode ser atenuada por meio de propagandas constantes nos grandes
canais de mídia sobre o assunto. Ademais, quanto ao aspecto técnico e
estrutural, cabe ao Ministério da Saúde destinar verbas para a contratação de mais
profissionais neurologistas para realizar, sem adiamentos ou demoras, a
constatação precisa da “causa-mortis”. À tal Ministério, associado ao Ministério
da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, compete desenvolver um
sistema integrado e ágil de modo a possibilitar comunicação e procedimentos mais
velozes. As informações quanto a isso devem ser de conhecimento público, acessíveis
em portais eletrônicos, a fim de que a população acompanhe o comprometimento
das equipes de saúde, denuncie negligências e possa conhecer o destino dos
órgãos doados, já que a aproximação entre as famílias também é um fator
relevante para suscitar maior solidariedade entre os brasileiros.