Numa linha que se inicia
em 1859 com o romance Úrsula, de Maria Firmina dos
Reis e passa por Cruz e Souza, Lima Barreto, Ruth Guimarães, Carolina Maria de
Jesus desaguando em autores contemporâneos, tais como Oswaldo de Camargo, Geni
Guimarães, Conceição Evaristo e tantos outros, a obra afro-descendente tem por
tendência mesclar história não-oficial, memória individual e coletiva com
invenção literária, na busca por traçar o painel da memória coletiva de uma
raça tão excluída desde a sociedade colonial até dias atuais.
Características
da obra:
O romance Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, publicado em
2003, traz de maneira madura e competente toda essa linha traçada anteriormente
sobre o romance afro-brasileiro de raiz afro-descendente. Suas principais
marcas podem ser assim sintetizadas:
-Romance de
formação, de construção da identidade da protagonista e da identidade de um
povo, de uma raça
-Forte diálogo
entre o presente e o passado, que é fio condutor do romance, criando a memória
coletiva de um povo, de uma raça e o conhecimento da protagonista em relação
aos seus.
-Romance de fortes
denúncias sociais e raciais, tais como:
-Crueldade do
cotidiano dos excluídos: pobreza, desamparo, injustiça
-Condição
pós-escravidão do negro
-Coronelismo
-Exploração na
zona rural, regime de semi escravidão
-Migração do campo
para a cidade
-Vida nas favelas
-Violência
doméstica e violência social
-Analfabetismo e a
importância da alfabetização
-Mas talvez a
maior das críticas seja em relação a uma situação interrelacional, ou seja,
todas as formas de opressão contra o negro (racismo) devem ser somadas pela
condição de classe (pobres, favelados, excluídos) em que essa raça aqui é
retratada e, devem ainda, serem amplificadas pela questão do gênero, ou seja, a
protagonista da obra é uma mulher. Daí se configura a situação de uma mulher
negra e pobre e todas as formas de opressão que condicionam sua vida.
ANÁLISE
DA MÚSICA “Pra não dizer que não falei das flores”
CONTEXTO
HISTÓRICO
O ano de 1968 foi palco de grandes
manifestações e marcos para a história, não só no Brasil, mas também na Europa,
nos Estados Unidos, Tchecoslováquia e México. Tudo acontecia quase que ao mesmo
tempo: a Guerra no Vietnã, a Primavera de Praga, o assassinato de Martin Luther
King e Robert Kennedy, o decreto do AI-5, a Tropicália, o Festival de Cinema de
Cannes, etc.
O
Tropicalismo
Depois do golpe
militar de 1964, o Brasil vê-se diante de 10 anos de censura, repressões,
torturas, exílios e passeatas, mas nenhum desses anos foi tão intenso quanto o
de 1968, depois da morte do estudante Edson Luís que foi assassinado por
policiais, os estudantes se revoltaram e
foram para as ruas pedir por mais liberdade, democracia, melhores condições de
estudo e principalmente pelo fim da ditadura. Entre as manifestações surgiu
um movimento chamado Tropicalismo,
que além de seus principais representantes Caetano Veloso e Gilberto Gil,
contavam também com artistas como: Gal Costa, Tom Zé, Mutantes, Nara Leão, etc.
Os tropicalistas mudaram o conceito de bossa nova e surgiram com uma nova
linguagem de MPB, incorporaram instrumentos nas composições e as letras das
músicas agora eram cheias de protestos, críticas e desabafos, misturaram
gêneros, cores, estilos e foram essenciais para caracterizar a história do País
daquela década. Infelizmente, o Tropicalismo não durou muito.
Depois da morte do
estudante Edson Luís, surgiram grandes manifestações ao decorrer do ano como é
o caso da Passeata dos Cem Mil, que reuniu aproximadamente 100 mil pessoas,
entre elas: artistas, padres, mães, intelectuais, estudantes. Mas no fim do
ano, quando os estudantes se reuniram em um congresso em Ibiúna – SP, os
policiais deram fim a tudo aquilo prendendo os grandes líderes estudantis,
ferindo vários estudantes e aliados. Logo depois, Caetano Veloso e Gilberto
Gil, também foram presos e logo se exilaram, era o fim do Tropicalismo, era o
começo do silêncio da UNE (que durante alguns anos, não teve grandes
manifestações) e também era o início de uma fase muito mais severa, do que a
que se vivia até o momento: foi decretado em dezembro de 1968 o Ato Institucional nº. 5, pelo presidente Costa e
Silva. Em 13 de dezembro de 1968, o governo militar edita o Ato
Institucional número 5 dando amplos poderes ao executivo, suspendendo o habeas
corpus para crimes políticos.
Entre tantas músicas,
que de uma forma ou de outra nos conta os longos 20 anos de ditadura, existe
uma em especial: “Pra não dizer que não falei das flores”. Composta por Geraldo
Vandré, um homem paraibano, que depois de 1968 sumiu e ficou durante anos em
silêncio, mas que deixou como herança para as novas gerações, uma composição
que por muitos é considerada um hino contra a ditadura, alguns ainda dizem que
é a Marselhesa brasileira. Marselhesa: canto
de guerra revolucionário que acompanhava a maior parte das manifestações
francesas, e em 1975 tornou-se hino nacional da França.
A VISÃO DE MUNDO ROMÂNTICA EM “A
PATA DA GAZELA”, DE JOSÉ DE ALENCAR
SOBRE O AUTOR:O romancista e político brasileiro, José Martiniano de Alencar nasceu no dia 01 de Maio de 1829, em Messajana, no
Ceará. Filho “ilegítimo” do então padre José Martiniano Pereira de Alencar com
uma prima, a D. Ana Josefina de Alencar, o autor de Lucíola se mudou em 1830 com a família para o Rio de Janeiro, a
capital do Império, onde o pai iria assumir o cargo de deputado. Em 1844
ingressa na Faculdade de Direito, na cidade de São Paulo, onde estabelece
profícuo contato com os intelectuais e artistas que contribuíram para a difusão
do Romantismo no Brasil, entre eles, o poeta Álvares de Azevedo (1831 – 1852).
Nos anos 50 inicia sua carreira literária com a narrativa Cinco Minutos (1856), texto que segue a linha do chamado romance urbano. Sua consagração veio um
ano depois com a publicação – primeiro em folhetim e depois em livro – do
romance histórico-indigenista O Guarani.
Em sua prosa Alencar tratou da vida na Corte, de amores conflituosos, exaltou a
figura heroica do índio, idealizou com intenso lirismo as paisagens
brasileiras, além de ter tematizado o interior do país e o nosso passado
colonial. Entre a produção de romances e peças teatrais, a advocacia e a
política, José de Alencar atuou como deputado do Partido Conservador e ministro
da Justiça, durante o Segundo Império, tendo colecionado diversas polêmicas com
o Imperado D. Pedro II, que o chamou, certa feita, de um “homenzinho teimoso”.
Em 1864 casou-se com Georgina Cochrane com quem teve seis filhos, entre eles, o
também escritor Mário de Alencar. José de Alencar faleceu em 12 de Dezembro de
1877. Principais Obras: O Guarani (1857), Lucíola (1862), Iracema
(1865), O Sertanejo (1870), Senhora (1875).
SOBRE A OBRA: romance urbano publicado em
1870, expressa a vida da burguesia, seus hábitos e costumes, valorizando a
honra, o desprendimento da vida de aparências e o desapego ao dinheiro. A
história construída por Alencar dialoga com o conto “Cinderela”, de Perrault, e
a fábula “O leão amoroso”, de La Fontaine. É uma obra leve e divertida que
trata do amor à primeira vista com doses de suspense e um final feliz. A Pata da Gazela foi considerada “A Cinderela
da literatura brasileira”. Alencar como Machado de Assis também se especializou
na análise psicológica de suas personagens femininas, revelando seus conflitos
interiores. Essa análise de caráter mais psicológico do interior das
personagens remete sua obra a características peculiares dos romances
realistas.
A PATA DA GAZELA E O ROMANCE
URBANO: Alencar
produz, ao redor da história de um triângulo amoroso entre Amélia, Horácio e
Leopoldo, uma reflexão sobre algumas dimensões das práticas culturais da burguesia carioca de meados do século XIX,
contrapondo posturas dos segmentos abastados dessa sociedade com aquelas das
gentes modestas, pois, para o romântico, a pureza e o ideal de homem está no
popular. Traz da alta sociedade do Rio
de Janeiro seus espaços de reunião, personagens e costumes, para o centro
da trama romanesca, seguindo o intuito de implementar um romance brasileiro,
tecendo algumas apreciações críticas às práticas sociais dos elegantes, sobretudo seu
fetichismo erótico e materialista, que Horácio simboliza. Em oposição a tais
aspectos, desenvolve um discurso de
elogio ao amor puro, verdadeiro e
imaterial, assim como à espiritualidade elevada, por meio de Leopoldo.
Nessa discussão, emergem imagens da mulher e do homem românticos que se opõem
àquelas de homens e mulheres do mundo burguês, tal como ainda as noções de
amor, de casamento, de beleza e espiritualidade românticos contra aquelas convencionais.
Em 16 de junho de
1927, filho de Cássia e João Suassuna, nascia Ariano Vilar Suassuna, em Nossa Senhora
das Neves, atual João Pessoa, capital da Paraíba. No ano seguinte, seu pai
deixa o governo e a família passa a morar no sertão, na fazenda Acauhan,
experiência que serviria para, anos depois, iniciar o jovem no mundo
interiorano que serviria de cenário para toda a sua obra. Depois do assassinato
de seu pai por motivos políticos no Rio de Janeiro, sua família mudou-se para
Taperoá, onde morou de 1933 a
1937. Nessa cidade, Ariano fez seus primeiros estudos e assistiu pela primeira
vez a uma peça de mamulengos e a um desafio de viola, cujo caráter de
“improvisação” seria uma das marcas
registradas também da sua produção teatral, desse modo, mais aspectos da
cultura nordestina seriam incutidos em sua formação. Em 1942, passou a viver em
Recife, onde terminou em 1945, os estudos secundários no Ginásio Pernambucano e
no Colégio Osvaldo Cruz. No ano seguinte, iniciou a faculdade de Direito onde
conheceu Hermílio Borba Filho e junto com ele fundou o Teatro do Estudante de
Pernambuco. Uma mulher vestida de sol,
sua primeira peça, escrita em 1947, no ano seguinte a peça Cantam as Harpas de Sião ou Desertor
da Princesa, foi montada pelo Teatro do Estudante de Pernambuco. Em 1950,
forma-se na Faculdade de Direito, mesmo ano em que recebe o Prêmio Martins Pena
pelo Auto de João da Cruz. Para se
curar de uma doença pulmonar, viu-se obrigado a se mudar novamente para
Taperoá, onde escreve e monta a peça Torturas
de um coração. Em 1956, volta para Recife se dedica à advocacia e continua
a escrever peças: O castigo da soberba
(1953), O rico avarento (1954) e o Auto da Compadecida (1955). Em 1957,
abandona a advocacia e se torna professor de Estética na Universidade Federal
de Pernambuco, escreve em 1957
a peça O Casamento
suspeitoso e O santo e a porca. Suas comédias são de gosto popular,
fortemente influenciadas pelo teatro grego, o teatro ibérico do século XVI e
pela Comédia Del’Arte, mesclando influências da cultura nordestina, como as
parlendas, o cordel e o repentismo.
Clarice
Lispector nasceu em 10 de dezembro de 1920 em Tchetchelnik, Ucrânia. Quando
tinha cerca de dois meses de idade, seus pais migraram para o Brasil, terra que
considerava como sua verdadeira pátria. Em 1924, a família mudou-se para o
Recife, onde iniciou seus estudos. Por volta dos oito anos, Clarice perdeu sua
mãe. Três anos depois, a família muda-se para o Rio de Janeiro.
Ingressa
em 1939 na Faculdade de Direito e, no ano seguinte, publica seu primeiro conto,
Triunfo, em uma revista. Forma-se em
1943 e se casa no mesmo ano com o diplomata Maury Gurgel Valente, com quem teve
dois filhos. Durante seus anos de casada, mora em diversos países pela Europa e
nos Estados Unidos.
Em 1944,
publica seu primeiro romance, Perto do
coração selvagem, vindo a ganhar o Prêmio Graça Aranha, da Academia
Brasileira de Letras, no ano seguinte. Separa-se de seu marido em 1959 e volta
para o Rio de Janeiro com seus dois filhos. No ano seguinte, publica seu
primeiro livro de contos, Laços de
família.
Em 1967,
um cigarro provoca um grande incêndio em sua casa e Clarice fica gravemente
ferida, correndo risco inclusive de ter sua mão direita amputada. Porém, após
se recuperar, continua com sua carreira literária publicando diversos livros.
Publica
em 1977 seu último livro A hora da
estrela, vindo a ser internada pouco tempo depois com câncer. A escritora
vem a falecer no dia 9 de dezembro do mesmo ano, véspera de seu aniversário de
57 anos.
Suas
principais obras são:
"Perto do coração selvagem" (1944), "Laços de família"
(1960), "A maçã no escuro" (1961), "A legião estrangeira"
(1964), "A paixão segundo G.H." (1964), "Felicidade
clandestina" (1971), "Água viva" (1973) e "A hora da
estrela" (1977).
Felicidade
clandestina:
Considerações
sobre o conto e a escrita clariceana
O
conceito de crueldade, quando aplicado a uma criança, sempre choca
e provoca mal estar. É como se julgássemos impossível que alguém muito jovem
estivesse corrompido e apresentasse comportamento iníquo.Crianças trazem sempre
aos nossos olhos a imagem da inocência, da credulidade, e imaginá-las sendo
maldosas fere profundamente nossa crença no ser humano, no mundo e na
racionalidade.
Com parte dos contos rememorando sua meninice em Recife, a leitura de Felicidade
Clandestina, no livro homônimo de Clarice Lispector, nos fere um pouco, ao
mesmo tempo em que nos obriga a rever conceitos eexpectativas sobre a infância.
Clarice mostra-se hábil artesã, tece um enredo que delicia ao mesmo tempo em que
machuca: a história da menina pobre, que não pode comprar livros, e sua
completa submissão à impiedade da outra criança, que se compraz com seu desejo
expresso de ler um determinado livro, comove e revolta.
A paixão revelada, e por isso
mesmo escravizadora e humilhante, já foi vivida por todos em algum momento da
vida. O sentimento de estar disponível para outrem, sujeitado ao seu poder, e,
principalmente, o fato de ser exatamente uma criança exercendo tal poder sobre outra, com certeza nos remete à infância, a
alguns momentos da vida em que cada um de nós sentiu e sofreu a situação de um
lado, ou, o que até mesmo pode ser pior, de outro.
Oestudo e análise do ser humano: conhecer-se para ser
Através de um mergulho no
universo interior das personagens, Clarice traz à tona temas existencialistas e
as contradições, dúvidas, inquietudes do ser humano. É importante ressaltar que
a autora conduz o sujeito (as personagens) para um inevitável isolamento.
Assim, em toda a obra de Clarice Lispector teremos personagens desconfiadas, inadaptadas ao meio em que vivem, com temores
e inquietações.Como a preocupação de Clarice é com a personagem em si e sua
viagem ao interior do ser humano, o cenário físico ao redor é muitas vezes
deixado de lado. A não ser que o cenário interfira diretamente ou ativamente na
história. Por isso, dificilmente encontramos passagem descritiva nos contos de
Clarice. Além disso, a escritora utiliza uma linguagem subjetiva, abusando de
adjetivos, metáforas e comparações. Do ponto de vista formal, a narrativa
utiliza o estilo circular, que consiste na repetição sistemática de palavras,
expressões ou frases, para conseguir um efeito enfático.
Clarice Lispector
emprega o processo narrativo do fluxo da
consciência, que é o rompimento dos
limites de espaço e de tempo. O pensamento fica solto. Pequenos fatos
exteriores provocam uma longa viagem abstrata das ideias, sem se basear numa
estrutura sequencial da narração.
Ela faz os
personagens viverem o processo chamado de “epifania”,
ou seja, revelação. Em outras palavras, de repente, diante de ocorrências
mínimas, o personagem se descobre e vê revelada uma realidade mais profunda.
Muitas vezes, ele mesmo não consegue perceber com clareza que realidade é essa,
porém sua vida ou sua visão mudam.A menina que se torna “amante” do livro é um
exemplo dessa situação epifânica.A condição de mulher faz Clarice muito
sensível aos problemas das pessoas carentes. A marca registrada de seus
personagens é serem tipos desprezados aos olhos da sociedade (meninas, velhas,
adolescentes), mas ricos em sua interioridade.
Ainda integra a
característica de mulher-autora a visão
do nascimento da mulher na menina. São numerosas as personagens-meninas
que, de uma forma ou de outra, se tornam adultas a partir de experiências
aparentemente corriqueiras.
Toda essa exaustiva
pesquisa do interior do ser humano – a subjetividade procurando se orientar
envolvida pela objetividade – pode passar despercebida ao leitor desatento.
Isso porque os textos são muito pobres de fatos, aliás, propositalmente pobres.
Cenas comuns, desenhadas sem rebuscamentos, mas com bastante precisão de
detalhes, podem esconder a profundidade do conteúdo analítico. As palavras não
são raras, os aspectos descritos e narrados parecem irrelevantes, a sintaxe não
se complica. O campo da linguagem fica livre para o leitor acompanhar os
pensamentos que movem as intenções dos personagens à procura de se ajustarem
com eles mesmos.
Análise do conto
O conto Felicidade Clandestina da autora Clarice
Lispector narra a história de uma menina que tem como objeto de sua felicidade
a posse de um livro. Como não possui recursos financeiros para tal aquisição, a
menina vive a intensa espera do livro, prometido por outra, que aproveita da
situação para subjugar a menina. Até o dia em que a espera chega ao fim, graças
à descoberta da mãe da possuidora do livro que entrega sem prazo de volta o objeto
tão ansiado. A menina, que esperançosamenteaguardava, descobre então a
felicidade ao possuir o livro em mãos, saboreando lentamente o prazer de tê-lo.
As personagens do livro não são nomeadas, o que
permite o processo da catarse e a
identificação do leitor que se envolve com o enredo do conto. Para facilitar a
identificação das personagens, neste estudo será usado como referência
personagem 1 para a filha do dono da livraria, possuidora do livro; e
personagem 2, para a narradora- personagem, que está à espera do livro.
A temática
principal do conto está expressa no título: Felicidade Clandestina. A
felicidade para a personagem 2 está contida no simples prazer de possuir o
livro. Apesar de ser uma felicidade passageira ou ilegal, a busca por essa
felicidade caracteriza o motivo da narração. Segundo as palavras dessa
personagem: “A felicidade sempre iria ser clandestina para mim” (Lispector,
1971). Ela descreve a felicidade como clandestina devido à emoção que sente ao
receber um objeto que, de fato, nunca seria seu, mas que lhe “embriagava” a
alma.
O conto, segundo alguns estudiosos, é um texto
autobiográfico de Clarice Lispector. A autora transpõe para a personagem 2 a
paixão pela leitura e, por outro lado, mostra a desvalorização, praticada pela
personagem 1 que, mesmo tendo fácil acesso à literatura, não desfruta desse
sentimento. Percebe-se claramente essa situação no seguinte trecho: “Mas
possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava” (Lispector, 1971). Observa-se também uma alusão a Monteiro
Lobato, que escreveu e estimulou a literatura infantil. O livro citado no conto
e tão cobiçado pela personagem 2 é um livro de sua autoria: As Reinações de
Narizinho.
A estrutura do
conto
Felicidade Clandestina caracteriza-se por tratar de
uma narrativa ficcional curta, com espaço, tempo e personagens reduzidos.
Clarice é uma autora que muito ousou em relação à
narração. Sua narrativa normalmente não possui início, meio e fim sendo
centrada na imaginação da personagem aliada ao fluxo de consciência e/ou epifania. Observamos o fluxo de
consciência na personagem 2 com a utilização do discurso indireto livre logo no início do conto, exemplificado no
seguinte trecho: “Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era
puravingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos
odiar” (Lispector, 1971). Notamos que o
pensamento da menina é descrito sem que haja uma referência clara no texto, podendo
passar despercebida na ausência de uma leitura mais atenta.
A complicação
da narrativa se dá no momento em que a personagem 1 decide emprestar o
livro à personagem 2. Exercendo a partir daí uma “tortura chinesa” (Lispector,
1971) sobre a menina. O clímax da
narrativa, momento de maior tensão no conto, ocorre quando a mãe da personagem
1 aparece na história, causando a mudança de rumo da narrativa, ela interfere
na história proporcionando a felicidade da personagem 2 e interrompendo a
vingança da personagem 1.
O desenlace
narrativo é representado pelo alcance da felicidade da personagem 2, quando
ela consegue, finalmente, receber o livro e por tempo indeterminado que é, para
ela, “tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer”
(Lispector, 1971). A passagem expressa o
amor e a importância da atividade literária na vida de uma menina. Era esta
a porta de entrada para um mundo de fantasias e maravilhas que não eram
conhecidas no seu dia a dia. O conto termina com uma frase que representa uma
alegoria da felicidade clandestina para a menina: “Não era mais uma menina com um
livro: era uma mulher com o seu amante” (Lispector, 1971). Essa frase sintetiza
o paradoxo do desejo pela busca do prazer e o medo do oculto que envolve uma
paixão.
1- O tempo e o espaço na narrativa
O tempo e o espaço na
narrativa são influenciados pelo fluxo de consciência da personagem,
característica comum à autora. O tempo obedece às lembranças sucessivas da narradora, em alguns momentos ela
antecipa fatos que revelam o que se desenvolverá ao longo da narrativa.
Observa-se a presença de termos que indicam as marcas temporais, por exemplo:
no dia seguinte, diariamente, até que um dia. No entanto, a narradora não
consegue mensurar durante quanto tempo a personagem 1 consegue exercer sua
vingança. A impressão deixada é que se transcorre um longo período, pois para a
narradora cada segundo longe do objeto desejado seria uma eternidade. Em dado
momento ela cita: “dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira”
(Lispector, 1971) relatando hiperbolicamente sua espera. Porém, o fato dessas
marcas temporais se referirem a dias, revela-nos que essa espera foi relativamente
curta, de no máximo, algumas semanas. A sensaçãoimensurável de tempo aparece
também quando a menina recebe o livro, ela não percebe o tempo passar entre a
casa da menina e a sua, pois agora pode ficar o tempo que desejar com o livro.
No final do conto a menina se transfigura em uma mulher, remetendo a passagem
de tempo com o amadurecimento da personagem. Esta passagem de tempo configura-se
por perduração, que é a passagem de tempo psicológica, não pode ser demarcada
no texto, pois é algo subjetivo.
O espaço físico é a cidade de Recife, o que é detectado logo no
início da narrativa, lugar onde a autora Clarice Lispector foi criada na infância:
“Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que
vistas” (Lispector, 1971). O ambiente, que alude ao espaço carregado de
significados ou espaço social, é percebido no discurso da narradora ao
mencionar que a personagem 1 morava numa casa e não em um sobrado, que era um
tipo de residência popular bastante comum no início da urbanização, ela também
não autoriza a entrada da personagem 2 em sua casa, por esta ser pobre. A
narradora cita que vai literalmente correndo à casa da outra personagem, o que
mostra-nos a proximidade entre as residências das personagens: “No dia seguinte
fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e
sim numa casa. Não me mandou entrar” (Lispector, 1971).
2- As personagens na ficção
As personagens do século XX
avançam bastante em relação aos modelos propostos por Aristóteles e Horácio. As
personagens seguiam paradigmas pré-estabelecidos limitando-se a reprodução do
ser humano, traziam consigo situações características arrematadas no final por
um preceito de cunho moral. Com o decorrer do tempo as personagens ganham foco
nas narrativas. Apresenta-se ao leitor o universo psicológico, social,
político, de diferentes tipos de personagens dentro do verossímil, mas exibindo
toda a complexidade do ser humano. As narrativas de Clarice Lispector seguem a
linha de autores como Virgínia Woolf, Franz Kafka e James Joyce, que muito
inovaram em suas obras, adentrando no universo psicológico das personagens. As
características físicas são um elo para alcançar as características
psicológicas das personagens.
O conto Felicidade
Clandestina é iniciado com a descrição física da personagem 1 e apresentação de
sua personalidade. Percebe-se o contraste físico e social entre as personagens,
sendo a primeira marcada por ser “gorda, baixa e de cabelos excessivamente
crespos, meio arruivados” (Lispector, 1971) e de condições financeiras mais
elevadas. A personagem 2 é inserida inicialmente dentro de um grupo de garotas,
pois refere-se a “nós” na apresentação da narrativa. O que indica que havia um
vínculo de amizade entre essas personagens que, provavelmente, se conheciam da
escola ou moravam no mesmo bairro. Essas são descritas como: “imperdoavelmente
bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres” (Lispector, 1971), motivo do
ódio e das maldades da personagem 1.
No conto são apresentadas
três personagens. As personagens principais participam ativamente do enredo da
narrativa, presentes no desenvolvimento da trama. Há ainda uma personagem
secundária, sem tanta participação, mas que exerce um papel decisivo. A
personagem protagonista é a menina que narra o conto e está à espera do livro.
É uma espécie de heroína do enredo, está em primeiro plano e é através dela que
conhecemos os elementos da narrativa. A menina que concebe a vingança e a
“tortura” psicológica na protagonista é a antagonista. Ela representa uma vilã
do conto, criando obstáculos para a realização da felicidade da protagonista.
Estas representam as personagens principais do conto. A personagem secundária
aparece uma só vez, mas desempenha um papel significativo; é a personagem
auxiliar ou árbitro. Ela é a mãe da antagonista e aparece no conto para
resolução da narrativa.
Quanto às ações que
praticam na narrativa, as personagens principais podem ser divididas em planas
e esféricas, ou redondas, segundo a definição de Forster. A antagonista é
definida sob o critério de personagem plana, desde o início da narrativa é
descrito seu caráter de vilã, que não evolui ao longo do conto. Enquanto a
protagonista é uma personagem esférica. Ela aparece timidamente no início do
conto como uma personagem passiva que sofrerá gradativamente os efeitos da
vingança, aceitando a humilhação pela qual é submetida na esperança de receber
o livro. A personagem reacenderá na narrativa ao ter a posse do livro. O
sentimento de felicidade expande a personagem evoluindo na narrativa e
adquirindo outra conotação, ela agora é mais que uma menina com um livro, ela é
uma mulher com seu amante.
3- O foco narrativo
O narrador
cumpre importante função na narrativa. Pode aparecer em 1° pessoa e participar
como observador ou personagem. É uma criação do autor e depende do foco que o
autor decide empregar a sua narrativa. Por isso pode aparecer tipos diversos de
narrador.
No conto é
apresentada a narrativa em primeira pessoa pelo ponto de vista da protagonista.
A menina que aguarda o livro nos conta a história oferecendo primeiro a
descrição da personagem 1, para permitir ao leitor formar uma opinião da
personagem. Essa descrição física e psicológica da antagonista pode influenciar
o leitor na sua interpretação, pois o ponto de vista oferecido é de apenas uma
personagem e esta enfatiza as características físicas e morais que atribuem uma
carga negativa à antagonista.
A protagonista
dialoga com o leitor através da utilização de interrogações e respostas para
situar o leitor no enredo do conto, por exemplo:“Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo
tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode
ter a ousadia de querer. Como contar o que se seguiu?”(Lispector, 1971).
De certa forma,
a protagonista incita o leitor a participar do conto e seguir o rumo da
narrativa.O foco da narrativa encontra-se na felicidade da protagonista. Toda a
trama se desenvolve em torno da busca dessa felicidade, apesar dos obstáculos
que a personagem encontra no caminho. O encontro com a felicidade para a menina
se torna algo clandestino porque o sentimento de felicidade não lhe é próprio,
a instabilidade da posse do objeto lhe enche de felicidade, mas pode
desaparecer a qualquer momento. A protagonista desfruta delicadamente de cada
momento com o livro, pois como ela descreve: “era um livro para se ficar
vivendo com ele, comendo- o, dormindo-o” (Lispector, 1971).
4- A felicidade clandestina
O conto de Clarice
Lispector nos traz a perspectiva da felicidade vivida por uma menina: a
clandestinidade. Essa característica de ilegalidade representa uma oposição ao
que é o sentimento de felicidade, mas no conto alia-se a todas as dualidades
pela qual vive a protagonista.
Em Felicidade Clandestina
observa-se a reificação do livro para uma menina: o livro era mais que um
simples objeto, era a realização de sua felicidade. Antes mesmo de receber em
mãos o livro, a possibilidade de tê-lo proporcionava verdadeiros momentos de
êxtase à protagonista. Sua esperança era tão intensa que mesmo diante da recusa
da personagem 1, ela permanecia impávida. Mas a dificuldade em recebê-lo começa
aos poucos a desanimar e entristecer a personagem 2. Seu cansaço é percebido
nas olheiras que se formam, provavelmente devido às noites sem dormir na ânsia
de receber o livro. Quando finalmente a protagonista consegue ter em mãos
aquele que seria o motivo de sua felicidade, e por tempo indeterminado,
conseguimos perceber como se expressa essa felicidade clandestina.
A felicidade não era um
sentimento presente facilmente na vida da protagonista, que era uma menina
pobre e convivia com as dificuldades de uma vida simples. O fato de não poder
comprar o livro demonstra essa situação, por isso a protagonista aceita a
humilhação em busca do objeto desejado.
Ser feliz para a
protagonista era algo ilegal e oculto. O sentimento de felicidade se misturava
ao perigo, à ambição, ao desejo pelo proibido e até à humilhação pela qual se
submetia. Após receber o livro, ela cria diversas dificuldades para
“surpreender-se” com o sentimento de felicidade. Em certo momento narra: “Eu
vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim.” (Lispector, 1971). Esse orgulho
era a realização do sentimento, motivado pelo objeto possuído e o pudor estava
presente porque a menina sentia “vergonha” de estar feliz com algo que não era
seu, essa felicidade podia acabar a qualquer instante.
O conto termina com uma
frase que conota o valor clandestino
da felicidade para a protagonista: “era uma mulher com seu amante”, demonstra
também a permanência da clandestinidade em sua vida, que como ela já havia
presumido, a felicidade sempre estaria presente de modo ilegal em sua vida, em
pequenas “doses” de perigo. É a metáfora do perigo causado pela imensidão de
desejo. O sentimento é vivido ocultamente, às escondidas, mas causa um êxtase
de prazer. Torna-se um ciclo vicioso para a personagem, por mais que ela tente
escapar, está cada vez mais envolvida nessa trama.
É assim que Clarice nos
apresenta a felicidade. A trama do conto nos deixa fascinados, inclusive por
expressar a paixão pela atividade literária na vida de uma criança. Essa
felicidade clandestina aparece para nósleitores de Clarice. A autora consegue
nos fazer experimentar a felicidade de ler e se envolver com o enredo de suas
histórias, o que nos deixa “em êxtase puríssimo” (Lispector, 1971) e a
clandestinidade por saber que aquilo não é real, é apenas fruto de uma autora
espetacular que consegue penetrar profundamente nas estranhezas do ser humano.
Clarice tem a capacidade de
nos deixar assim: como uma mulher com seu amante ou uma criança descobrindo o
mundo. Na verdade, somos todos personagens seus em busca de nossa felicidade
clandestina.
Iracema, de
José de Alencar, conta a trágica história da bela índia tabajara apaixonada
pelo guerreiro branco. Considerado por muitos 'um poema em prosa', tem o ritmo
e a força de imagens próprios da poesia.
Em Iracema, José de Alencar construiu uma alegoria perfeita
do processo de colonização do Brasil e de toda a América pelos invasores
portugueses e europeus em geral. O nome Iracema é um anagrama da palavra
"América". O nome de seu amado Martim remete a Marte, o deus romano
da Guerra e da Destruição. Já a partir do título, o autor demonstra um evidente
trabalho de construção de uma linguagem e de um estilo que possam representar
melhor "a singeleza primitiva da língua bárbara", com "termos e
frases que pareçam naturais na boca do selvagem". O livro foi publicado em
1865 e, em pouco tempo, agradou aos leitores e aos críticos literários, a começar
pelo jovem Machado de Assis, então com 27 anos, que escreveu sobre Iracema no Diário do Rio de
Janeiro em 1866:
"Tal é o livro do Sr. José de
Alencar, fruto do estudo e da meditação, escrito com sentimento e
consciência... Há de viver este livro, tem em si as forças que resistem ao
tempo, e dão plena fiança do futuro... Espera-se dele outros poemas em prosa.
Poema lhe chamamos a este, sem curar de saber se é antes uma lenda, se um
romance: o futuro chamar-lhe-á obra-prima."
A lenda e a história
Iracema, subintitulado Lenda do Ceará, conta a triste história de amor entre a índia
tabajara Iracema, a virgem dos lábios de mel, e Martim, o primeiro colonizador
português do Ceará. Além disso, como resume Machado de Assis, o assunto do
livro é também a história da fundação do Ceará e do ódio de duas nações
inimigas – tabajaras e pitiguaras. Os pitiguaras habitavam o litoral cearense e
eram amigos dos portugueses. Os tabajaras
viviam no interior e eram aliados dos franceses.
Para lembrar
José de Alencar recorreu a
circunstâncias históricas, como a rixa entre os índios tabajaras e
pitiguaras, e utilizou personagens reais, como Martim Soares Moreno e o
índio Poti, que depois viria a adotar o nome cristão de Antônio Felipe
Camarão. Mas cercou-os de uma fértil imaginação e de um lirismo próprios da
poesia romântica.
A heroína idealizada
Filha de Araquém, pajé da tribo tabajara, Iracema
deve manter-se virgem porque "guarda o segredo da jurema e o mistério do
sonho. Sua mão fabrica para o Pajé a bebida de Tupã". Um dia, Iracema
encontra na floresta Martim, que se perdera de Poti, amigo e guerreiro
pitiguara com quem havia saído para caçar e agora andava errante pelo
território dos inimigos tabajaras. Iracema leva Martim para a cabana de
Araquém, que abriga o estrangeiro: para os indígenas, o hóspede é sagrado. O
momento em que Martim encontra Iracema revela a idealização romântica em seu
grau mais elevado:
"Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte,
nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos
mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira. O
favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque
como seu hálito perfumado. Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem
corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da
grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde
pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas. Um dia, ao pino do sol,
ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a sombra da
oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre
esparziam flores sobre os úmidos cabelos. Escondidos na folhagem os pássaros
ameigavam o canto. Iracema saiu do banho: o aljôfar d'água ainda a roreja,
como à doce mangaba que corou em manhã de chuva. Enquanto repousa, empluma
das penas do gará as flechas de seu arco, e concerta com o sabiá da mata,
pousado no galho próximo, o canto agreste. [...]
Diante dela e todo a contemplá-la,
está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da
floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o
azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o
corpo.
O narrador, seguidas vezes, compara Iracema à natureza exuberante do Brasil. E
a virgem leva sempre vantagem. Seus cabelos são mais negros e mais longos; seu
sorriso, mais doce; seu hálito, mais perfumado; seus pés, mais rápidos.
Anote!
Iracema é
descrita por um narrador que, embora se apresente na terceira pessoa, é
claramente emotivo e apaixonado. Retrata-a, portanto, como a síntese
perfeita das maravilhas da natureza cearense, brasileira e americana.
Iracema é muito mais do que uma mulher. A heroína é o próprio espírito
harmonioso da floresta virgem.
Para lembrar
José de Alencar retrata o
processo de estranhamento e fascínio mútuo que dominou o encontro dos dois
povos. Começavam a se conhecer, sem sequer suspeitar as trágicas
consequências que dele adviriam para os indígenas.
A sedução
Enquanto
esperam a volta de Caubi, o irmão de Iracema que reconduziria o guerreiro
branco às terras pitiguaras, Iracema apaixona-se por Martim, mas não pode
entregar-se a ele, pois, como afirma o Pajé, "se a virgem abandonou ao
guerreiro branco a flor de seu corpo, ela morrerá...". Uma noite, Martim
pede a Iracema o vinho de Tupã, já que não consegue resistir aos encantos da
virgem. O vinho, que provoca alucinações, permitiria que ele, em sua
imaginação, possuísse a jovem índia como se fosse realidade. Iracema lhe dá a
bebida e, enquanto ele imagina estar sonhando, Iracema "torna-se sua
esposa". É muito importante notar o valor alegórico dessa passagem. Ao
"possuir" Iracema, Martim está inconsciente, completamente seduzido e
inebriado. Esse gesto provocará a destruição
da virgem, assim como a invasão do Brasil pelos portugueses provocará a
destruição da floresta virgem.
Anote!
Assim como Martim não tinha
qualquer intenção de provocar a morte de sua amada – fazendo-o por paixão
–, os destruidores da natureza brasileira o fizeram de forma inconsciente e
inconsequente. A consciência ecológica de Alencar vai muito além da ingênua
defesa das nossas matas: percebe com clareza o seu processo de destruição.
O conflito
Martim
é ameaçado pelo chefe guerreiro Irapuã que, enciumado, quer invadir a cabana de
Araquém e matá-lo. Apesar da advertência de Araquém de que Tupã puniria quem
machucasse seu hóspede, os guerreiros de Irapuã cercam a cabana, que é
protegida por Caubi. Iracema encontra Poti, que está próximo à aldeia dos
tabajaras e deseja salvar o amigo. Planejam, então, a fuga de Martim. Durante a
preparação dos guerreiros tabajaras para a guerra com os pitiguaras, Iracema
serve-lhes o vinho da jurema e, enquanto os guerreiros deliram, ela leva Martim
e Poti para longe da aldeia. Quando já estão em terras pitiguaras, Iracema
revela a Martim que ela agora é sua esposa e deve acompanhá-lo. Mas os
tabajaras descobrem que Iracema traíra "o segredo da jurema" e
perseguem os fugitivos. Os pitiguaras, avisados da invasão dos tabajaras,
juntam-se aos fugitivos e é travado um sangrento combate. Iracema luta ao lado
de Martim contra a sua tribo. Os pitiguaras ganham a luta e Iracema se
entristece pela morte dos seus irmãos tabajaras.
O exílio
Iracema
acompanha Martim e Poti e passa a morar com eles no litoral. Durante algum
tempo, todos são muito felizes e a alegria completa-se com a gravidez de
Iracema. Porém, Martim acaba por "saturar-se de felicidade" e seu
interesse pela esposa e pela vida ao seu lado começa a esfriar. Iracema
ressente-se da frieza do marido e sofre. Martim ausenta-se com frequência em
caçadas e batalhas contra os inimigos dos pitiguaras. Enquanto guerreia, nasce
seu filho, que a índia
chama
Moacir, que significa "nascido do meu sofrimento, da minha
dor".
Para lembrar
Iracema dá ao filho o nome
indígena correspondente ao nome hebraico Benoni, que também significa
"filho de minha dor". Este é o nome dado por Raquel, mulher do
patriarca bíblico Jacó, ao seu último filho. Raquel morre depois de dar à
luz. Mas Jacó muda o nome do menino para Benjamim.
Os filhos de Jacó dão origem
às tribos que formarão a nação Israel, assim como o filho de Iracema
representa o início de uma nação.
Solitária e saudosa,
Iracema tem dificuldade para amamentar o filho e quase não come. Desfalece de
tristeza. Martim fica longe dela durante oito luas (oito meses) e, quando
volta, encontra Iracema à beira da morte. Ela entrega o filho a Martim,
deita-se na rede e morre, consumida pela dor. Poti e Martim enterram-na ao pé
do coqueiro, à beira do rio. Segundo Poti: "Quando o vento do mar soprar
nas folhas, Iracema pensará que é tua voz que fala entre seus cabelos". O
lugar onde viveram e o rio em que nasceu o coqueiro viriam a ser chamados, um
dia, pelo nome de Ceará.
Anote!
Martim partiu das praias do
Ceará levando o filho. Alencar comenta: "O primeiro cearense, ainda no
berço, emigrava da terra da pátria. Havia aí a predestinação de uma
raça?".
O guerreiro branco
volta alguns anos depois, acompanhado de outros brancos, inclusive um sacerdote
"para plantar a cruz na terra selvagem". Começa a colonização e a
narrativa termina: "Tudo passa sobre a terra".
O narrador
O romance é narrado
na terceira pessoa, mas o narrador está longe de se manter neutro e ser um mero
observador. Multiplicam-se os adjetivos reveladores de admiração,
principalmente em referência à natureza brasileira (Iracema). Em alguns
momentos, o narrador arrebatado chega a revelar-se na primeira pessoa: "O
sentimento que ele pôs nos olhos e no rosto, não o sei eu".
Anote!
Tais arroubos do narrador
justificam-se pela afirmação, no início da obra, de que essa é "Uma
história que me contaram nas lindas várzeas onde nasci". Assim,
Alencar justifica a intromissão da voz na primeira pessoa em uma obra narrada
na terceira.
O indianismoO índio começou a ser adotado como tema
literário no Brasil pelos árcades, principalmente Basílio da Gama – que via o
índio como "homem natural" – e Santa Rita Durão – para quem o índio
era apenas o "comedor de carne humana, que só o Cristianismo
salvaria".
A busca de uma
"poesia americana"
Já no Romantismo, o
culto do passado e o nacionalismo literário permitiram aos escritores
cultivarem a chamada "poesia americana". Esta valia-se da natureza,
da História, de cenas e de costumes nacionais, fórmula a que o indianismo se
encaixava perfeitamente.