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11 de nov. de 2018

RESUMO DO ENREDO DE “BOCA DO INFERNO”, DE ANA MIRANDA


RESUMO DO ENREDO DE “BOCA DO INFERNO”, DE ANA MIRANDA

Boca do Inferno foi o primeiro romance histórico de Ana Miranda, cuja trama se passa na Bahia no século XVII. No primeiro capítulo, “A Cidade”, a autora apresenta a cidade da Bahia, seus habitantes e seus costumes, dando um panorama do cotidiano do lugar. “Numa suave região cortada por rios límpidos, de céu sempre azul, terras férteis, florestas de árvores frondosas, a cidade parecia ser a imagem do Paraíso. Era, no entanto, onde os demônios aliciavam almas para povoar o inferno.”.  Essa descrição da cidade anuncia o contexto turbulento, corrupto e ambíguo que configurava a Colônia. Um caldeirão de interesses, culturas, vivências e aparências. “Não havia grandes assaltantes na Bahia, diziam, mas quase todos furtavam um pouquinho”.  Becos e vielas tortuosas cobertas de lixo em contraste com a natureza exuberante. Para o leitor, é como se o retrato da cidade se configurasse numa metáfora de seus habitantes. No texto, é Gregório de Mattos quem observa a cidade para assim descrevê-la:
Ah, aquela desgraçada cidade, notável desventura de um povo néscio e sandeu. (...) Sofria  ao ver os maus modos de obrar da governança, porém reconhecia que não apenas aos governantes, mas a toda a cidade o demo se expunha. Não era difícil assinalar os vícios em que alguns moradores se depravavam. Pegou sua pena e começou a anotar. O fidalgo do solar ao lado tinha vergonha de pedir dinheiro emprestado e preferia furtar para manter a aparência honrada. (...) um mercador avarento, tirava duzentos por cento no que comprava e no que vendia.
Morrera num assalto e deixara uma viúva. Porém, apesar dos grandes lucros, o mercador  dissipara todo seu dinheiro com mulheres de alcouce e deixara a viúva sem um vintém e com a casa empenhada. A mulher recebia a fradalhada que ali ia para manter a honra da casa. E ela gemia, gritava e ardia em brasa. Ele mesmo o poeta esperava sua vez de aproximar-se da viúva, apesar de não ter grande gratidão pela branca e seus doces objetos. Mas uma mulher era sempre uma mulher. Um dos padres que visitava a viúva era o abade do convento. Dele se dizia que roubava as rendas da instituição para acudir ao sustento das prostitutas; para manter sua honra, livrava-se das suspeitas subornando com as rendas roubadas.
O segundo capítulo, “O Crime”, é dedicado ao episódio do assassinato do alcaide-mor Francisco Teles de Menezes, que pertencia à facção política do governador Antônio de Souza Menezes, também conhecido como “Braço de prata”. Pela manhã, como de costume, ao sair da casa da prostituta Cipriana, Teles de Menezes se viu encurralado por oito homens encapuzados, que após se livrarem de sua escolta cercaram a liteira do alcaide; um deles era Antônio de Brito, a quem Teles de Menezes há pouco tempo tentara matar. Teles atirou contra Antônio de Brito acertando-lhe o ombro; um dos conspiradores decepou-lhe a mão direita com um golpe de alfanje. Ele tentou reagir, mas antes que pudesse, teve a garganta cortada. Antônio de Brito foi quem deferiu o golpe. Os conspiradores fugiram levando a mão decepada do alcaide enquanto ele ainda agonizava.
Logo que o governador foi comunicado sobre o atentado pediu detalhes sobre o crime, mas só sabiam dizer que Antônio de Brito estava entre os conspiradores. Sabia-se também que todos estavam refugiados no colégio dos jesuítas. O governador pensou logo que a conspiração havia sido arquitetada por seus inimigos políticos - os Vieira Ravasco - liderada pelo secretário de Estado Bernardo Vieira Ravasco, irmão do Padre Antônio Vieira e amigo de Gregório de Mattos. Estavam envolvidos no crime também o filho de Bernardo Ravasco, Gonçalo, que já estava  refugiado no colégio por conta de uma ordem de degredo, e Moura Rolim, primo de Gregório de Mattos.
Esse é o capítulo mais extenso do livro e conforme vai se especulando sobre o crime, outras personagens vão aparecendo. Bernardo Ravasco tinha também uma filha, a jovem Bernardina Ravasco, que ficara viúva muito cedo e tinha saúde frágil. Maria Berco era sua dama de companhia. A criada era uma mulher simples e pobre, casada com um homem velho, cego e avarento. João Berco a havia tirado da Misericórdia e, apesar da brutalidade do esposo, a jovem sentia-se grata por ter sido escolhida entre as órfãs. “Foste abandonada pelo teu pai. Eu te comprei no orfanato. Em troca de milho e de refugo. Eras magra como uma ratazana faminta. Aqui pelo menos tens a mim que te dou abrigo. (...) Pelo menos aqui não sofres tormentos”.85 Seu marido era um homem frágil que aspirava cuidados. Maria trabalhava, esperando o dia em que ele morresse e assim sobrasse a ela alguns tostões para comprar um lugar na frota para Lisboa.
O governador iniciou uma perseguição aos conspiradores. Não descansaria até prendê-los, pois a falta do alcaide desestruturava seu governo e ameaçava a sustentação política e econômica que Teles de Menezes e os desembargadores Palma e Gois exerciam na Colônia. Os conspiradores liderados por Bernardo Ravasco trataram de se precaver e proteger suas famílias. Bernardo Ravasco encarregou-se de dar fim à mais nítida prova do crime, a mão decepada da vítima.
A criada dos Ravasco, Maria Berco, recebeu a missão de ocultar a prova do crime. “Dá um fim nisto. Mas não sejas curiosa como uma coruja ou um gato. Apenas joga isto, esta noite, num lugar onde ninguém jamais possa encontrar. Depois vai ter comigo na Igreja do colégio para dar notícia do sucesso.” Enquanto a polícia fazia ronda procurando os conspiradores, Maria Berco caminhava pelas ruas escuras buscando um lugar seguro para livrar-se da trouxa. Mas a curiosidade a perseguia. Ao ver do que se tratava, sentiu-se ainda mais insegura. Jogou a mão do alcaide no lixo. Em seguida, arrependeu-se; pegou-a de volta e perambulou por mais algum tempo até chegar à praia; estava decidida a jogar o pacote na água; pagou um barqueiro por uma volta. O marinheiro a observava e logo pensou no conteúdo do pacote que a moça segurava contra o peito. Seria um feto? Era comum carregar moças pra que abandonassem fetos e crianças mortas no mar. Logo descartou a possibilidade, pois Maria não aparentava ser aborteira; mas a maneira como agia sugeria algo errado. Tomou o pacote das mãos da jovem. Examinou a mão fétida e se surpreendeu com o belo anel e seu dedo; retirou o anel de esmeralda que se encontrava no dedo anular e jogou a mão na água. Maria insistiu para que ele jogasse a joia no mar; voltaram para a praia e ao chegar perto da margem avistaram-se alguns soldados. Preocupado com a abordagem, o marujo entregou o anel para Maria. Mandou que o escondesse, ameaçando-a para que ela não fugisse. Os soldados os interpelaram com tom ameaçador; prenderam Maria e o marujo. A jovem passou a noite na cadeia. Pela manhã, um oficial veio a seu encontro; deu-lhe alguns conselhos; acreditava que se tratava de uma prostituta; mandou-a embora. Maria lembrou-se do encontro com Bernardo Ravasco e correu para encontrar seu senhor. Quando chegou à igreja, foi informada de que o secretário havia partido. A jovem logo pensou no anel que carregava consigo: o que fazer com ele? Ajoelhou-se e rezou; saiu da igreja e vagou pelas ruas durante um tempo; pensou no marido, na corte, nos nobres e ao olhar para seus pés sujos de lama pensou na pobreza. Depois de muito vagar e pensar parou na casa do joalheiro; hesitou por alguns instantes e depois entrou; muitos ali penhoravam joias, relógios, panos de damasco. Maria logo foi atendida. O homem perguntou-lhe: vender ou penhorar? Maria disse: “penhorar”. Analisou a pedra e ofereceu um preço irrisório; Maria aceitou sem reclamar. Após receber o dinheiro, saiu dali apressada, sem conferir o valor. Entrou numa taberna, pediu um pastel; o taberneiro ofereceu-lhe outros produtos. Maria acabou comprando meias de seda, sapatos, roupas, um chapéu para o marido, tabaco e outras ninharias. Ao chegar em casa com tantas mercadorias e a ainda uma quantia em dinheiro muito além do que se pagaria a uma criada, o homem perguntou: “Roubaste? Tens um amante?” A jovem irritada respondeu que nunca seria meretriz; pensou em contar-lhe a história do anel, mas sentiu vergonha, decidiu não revelar nada. Era questão de tempo e todos esqueceriam a morte do alcaide. Então, resgataria o anel e o devolveria a Bernardo Ravasco, pensou. João Berco continuou esbravejando enquanto Maria recolhia as moedas que o marido acabara de contar.
O tempo passava e o assassinato do alcaide ia sendo desvendado. O vereador Luís Bonicho e o mestre de esgrima Donato Serotino (também aliados ao grupo que atacou o alcaide) planejaram um ataque ao governador Antônio de Souza durante sua aula de esgrima; o mestre executou o plano, atacou o governador, mas apenas teve tempo de feri-lo até a chegada dos guardas. Donato conseguiu escapar.
Enquanto isso, Gregório de Mattos também procurava refugiar-se, seria perseguido por sua ligação com os conspiradores. Arrumou algumas roupas e livros em um saco e saiu de casa; vagou pela cidade por algum tempo até chegar ao dique onde soldados conversavam e abraçavam-se com barregãs enquanto lavadeiras trabalhavam agachadas à beira da água. Esperou que os soldados se dispersassem; sentou-se à beira do dique, jogou pedras na água e com um graveto escreveu na areia: “...pretas carregadas com roupa, de que formam as barrelas. Não serão as mais belas, mas hão de ser por força as mais lavadas. Eu namorado desta e aqueloutra, de um a lavar me rende o torcer doutra”. O poeta lembrou-se de Anica de Melo, uma prostituta com quem teve um caso. Conheceram-se logo após sua volta de Portugal. “Era uma rapariga linda, mesmo. Sabia até escrever seu nome. Pena ser de alcouce. E branca.”  Gregório foi ao encontro de Anica de Melo. Na cama, os dois conversam sobre a vida do poeta. Rememorações da personagem misturam trechos de informações reais à ficção:
“Como conheceste os Ravasco?”, perguntou Anica de Melo. “Eu sempre ouvi falar sobre eles, minha família os conhecia. Um pequeno folheto publicado com sermões de Antônio Vieira, muitos anos atrás, em castelhano, chegou às minhas mãos. Eu era um menino sonhador e enchi-me de paixão pelas palavras do jesuíta.”
(...) Mas logo o menino ficou sabendo que aquela publicação em castelhano fora feita a revelia de Padre Vieira e continha “tantas imperfeições quanto asneiras” execradas por ele. Gregório de Mattos estudara com os Jesuítas no Brasil. Recebera instrução humanística e fora aprovado com louvor. (...) Já tinha mesmo cometido seus primeiros
versos nas sabatinas, para horror e pasmo de seu pai. “Como era teu pai?”, perguntou Anica de Melo. “Magro, costas recurvadas, olhos tristes.”
(...) “O velho tinha uma luneta, ficava olhando as estrelas. De dia, quando ele estava no trabalho, eu a usava pra ver as mulheres passando na rua ou às janelas”, disse acariciando as pernas de Anica de Melo.
Ao entrar para o colégio dos Jesuítas, Gregório de Mattos já se interessava pelas mulheres. Desde menino gostava de olhar nos livros imagens femininas: santas, rainhas desenhadas com benevolência e que sempre pareciam mais belas do que deviam ser, altivas condessas e até mesmo bruxas condenadas ao Santo Ofício. Na rua o menino ficava extasiado com as mulheres de carne e osso, com seus rostos e suas formas, alvas como jasmins, vermelhas, azeitonadas, ou escuras como a lascívia. As meninas eram lindas, as índias nuas pareciam-lhe deusas pagãs, as escravas lhe sugeriam estátuas de ferro pronto a incandescer. Sua irmã, um demoniozinho falante tinha um mistério que Gregório de Matos observava quase com fervor religioso. Sentia-se atraído por todas as mulheres. Encantava-se com qualquer gesto, qualquer rufar de saia, detalhes mínimos. Mesmo as feias tinham para ele um encanto qualquer: uma orelha bem-feita, um par de tornozelos sólidos, unhas saudáveis, cabelos abundantes, uma boa estrutura óssea, batatas das pernas grossas, nádegas redondas e fartas, um ar sonhador, timidez, brilho de inteligência ou um nariz que lembrasse uma jovem da dinastia lágida. Como ele gostava de dizer: “são feias, mas são mulheres.” “Ah, tu és um demônio”, disse Anica de Melo. “Não, não, somos bastante diferentes. Demônios sois vós mulheres.” Disse que lera nos livros serem as mulheres diabos disfarçados, circes encantadoras, tentações infernais, peçonhentas no coração e na boca, copuladoras vorazes; que possuir a parte traseira de uma mulher era o mesmo que fazer pacto com o diabo; as que tinham um rosto de anjo e maior donaire eram as mais perigosas. O corpo de uma mulher despertava-lhe  sentimentos penosos e demorados, algo como uma queda, um desar, uma febre maligna, um delírio destruidor.
 “Mas nos livros não havia só mulheres ”, lembrou o poeta. Gregório falou sobre sua formação, sobre a moral jesuíta e o estudo orientado pela Companhia que lhe permitiram tornar-se um homem letrado. Gregório ainda era um menino. Naquele tempo, os jesuítas instalavam-se em toda a Colônia, fortificada em igreja e missões, conquistavam territórios, criavam hospitais e seminários. Na Bahia, não era diferente e Gregório de Mattos almejava ser um deles, não pelo poder, mas pelo conhecimento que dominavam.
Quando via um padre jesuíta na rua era como se estivesse vendo um livro andando. Além  disso, naquele tempo Gregório de Mattos acreditava-se dono de uma grande vocação religiosa. Mas sua passagem pela vida eclesiástica seria dolorosa e breve. Após algum tempo concluíra que o saber dos jesuítas era insosso e atrelado a ideias religiosas e políticas. Depois que dominou a retórica, cansou-se dela e passou a procurar algo diferente. Foi nesse período que partiu para Portugal.
Numa breve descrição da viagem de Gregório para a Europa e do período em que viveu na corte, e ingressou na Universidade de Coimbra onde teve contato com as trovas burlescas, se mantém a estrutura de diálogos entre o poeta e Anica e trechos narrados. Os trechos narrados recuperam sua trajetória e dão fluidez ao diálogo dos personagens.
“Tens um bando delas correndo atrás de ti, todos os tipos de mulheres. Não pensas em casar?” (...) Sou viúvo. Aqui não encontrei nenhuma que me sirva. A única não me quis.”. Anica de Melo desejava que ele não fizesse distinção entre as mulheres para fornicar e as mulheres para casar.
                Enquanto isso, Maria Berco preparava a viagem de sua ama para o engenho onde ficaria escondida. O companheiro de viagem seria o poeta Gregório de Mattos. “Sei bem que é desembargador, vai tomar ordens sacras, mas tem uma fama... (...) loquaz sedutor, um letrado que agora está ajoelhado diante da Virgem Maria e em seguida afundado no colo das meretrizes. O poeta foi ao encontro de dona Bernardina, conforme havia combinado com Bernardo Ravasco; ele a levaria em segurança para o engenho. Ao atender a porta, Maria Berco sentiu o coração acelerado, mas logo tratou de anunciá-lo à sua senhora. Ao saber que o pai havia sido capturado, a dama logo se recusou a partir; Gregório tentou acalmá-la, pois Padre Vieira logo tomaria providências; disse também que Gonçalo Ravasco partiria para relatar ao príncipe os desmandos do governo na Colônia. Depois declamou poesias. Maria Berco sentia-se atraída pelo poeta.
Ao anoitecer daquele dia, Gonçalo Ravasco e Donato Serotino (o mestre de esgrima), que estavam refugiados no colégio dos jesuítas, saíram disfarçados de padres e encapuzados e foram ao encontro de Gregório de Matos, que se escondera na casa da prostituta Anica de Melo. Gregório contou a Gonçalo que Bernardina recusara-se a ir para o engenho; ele lamentou e contou ao poeta sobre o ataque frustrado de Donato ao governador. Além disso, o governador havia se apoderado dos escritos de Bernardo Ravasco. “Mas o que há de mal nisso? Escritos vão e vêm. São feitos para o vento e para o fogo”, disse Gregório de Mattos.  Gonçalo explicou que o pai ficaria muito triste em perder os escritos, pois pretendia publicá-los em Portugal ou Holanda. Depois de recuperar os escritos do pai, Gonçalo partiria para o reino e iria tentar intervir pessoalmente junto ao príncipe para livrar o pai da cadeia. O poeta conseguiu credenciais para que Gonçalo se infiltrasse na reunião de desembargadores no paço, para a qual foram convidados os ministros do Tribunal e da Relação Eclesiástica. Gonçalo iria disfarçado na comitiva Eclesiástica.
Enquanto isso, o governador Antônio de Souza, acabara de ouvir as sátiras de Gregório, que o desembargador Mata havia capturado, dizia: “As sátiras são inteligentes. Se não fossem contra mim até mesmo teriam me divertido. Muito me serviria se ele voltasse sua mordacidade contra as pessoas certas”. O governador alimentava seu ódio contra os Ravasco e seus aliados, mas principalmente contra Padre Vieira. O governador contou ao arcebispo que frequentemente sonhava com Vieira. Ele odiava o jesuíta e planejava invadir o colégio. Gregório de Mattos sabia que, se o arcebispo apoiasse a invasão sua situação se complicaria, e ele seria afastado da Sé. “Pouco me importa ficar na Sé. Aquele lugar é um presépio de bestas, se não for uma estrebaria (...) Tinha os mesmos sentimentos para escrever sobre a mulata, o amor, o muleiro, o papagaio, o governador, el Rei ou Deus”. O governador invadiu o colégio à procura dos envolvidos no crime contra o alcaide. Capturaram Antônio de Brito, João de Couros, Francisco Dias do Amaral, Barros de França, Antônio Rolin, alguns jesuítas e estudantes. Gonçalo Ravasco escapou, pois no momento da invasão, ele e Gregório de Mattos estavam na casa da barregã Anica de Melo planejando sua entrada no palácio para recuperar os escritos de Bernardo Ravasco.
Na hora da reunião dos desembargadores, Gonçalo compareceu com hábito de padre e capuz encobrindo o rosto; estava na comitiva do arcebispo. Observava os desembargadores; aproximou-se de um grupo; conversavam sobre a morte do alcaide, sobre os salários dos magistrados, decisões chegadas da Coroa e outros assuntos do mesmo teor. Ele precisava agir rápido ou seria reconhecido e preso. Tratou de encontrar o cofre onde estavam alguns documentos, entre eles, as cartas do governador dirigidas às autoridades da Coroa, relatando o crime contra o alcaide e acusando Padre Vieira de ser o mandante. Além de outros documentos de teor político, Gonçalo foi surpreendido ao ver, entre a papelada, escritos de sátiras de Gregório de Mattos sobre o Braço de Prata. No fundo do cofre, junto a documentos pessoais do governador, encontrou os escritos de Bernardo Ravasco; contente, o jovem guardou- os dentro da camisa e tratou de sair dali, seguindo o plano que havia traçado junto ao poeta.
O poeta iria para encontrar Gonçalo e juntos iriam falar com o arcebispo sobre a invasão do colégio; queria certificar-se de que a notícia da invasão chegasse corretamente às autoridades religiosas da Europa. Disse à Anica de Melo que precisavam informar não só sobre o governador, mas também sobre a situação da Colônia: “E o que vais falar sobre a Colônia? Que de dois efes se compõe essa cidade, a meu ver: um furtar e o outro foder”.
Gonçalo Ravasco contou ao poeta que o governador guardava suas sátiras no cofre. “Verdade? Se as leu estou em perigo”. Os dois continuaram ali conversando e bebendo, enquanto o poeta declamava versos. Viram Maria Berco passar carregando o marido cego; o poeta lamentou a condição e o destino da moça. Gonçalo e o poeta caminharam demoradamente até o palácio do arcebispo, enquanto falavam de Maria Berco e das mulheres:
“Se me deixassem uma noite, uma noite só, apenas umazinha com essa potranca envernizada, eu dava um jeito nela”, disse Gregório de Mattos. “As mulheres devem cumprir sua parte.” “Fornicar, fornicar, dia e noite fornicar.” “Nada disso. Que sejam todas alegres e recatadas. Não se deve permitir que a mulher se torne uma igual. Devem ser conservadas sempre a uma discreta distancia, tratadas com severidade, alimentadas com um regime escasso de carícias temperado com ameaças, de acordo com o manual de Tiraqueau”. “Sou um escravo das mulheres, sufoco-me de vê-las passar”. “Mas só lhes permites a volúpia” “E o que mais elas querem? E não é bem o que dizes, tenho meus amores líricos. Ah! Coração louco, suspirai, dai vento ao vento! Não vedes que o suspiro diminui o sentimento?”
Gregório gostava de conversar com seu amigo, porque Gonçalo sabia contestar suas observações, levando o assunto para temas mais leves, ou para a política, ou para a poesia; no entanto, não se recusava a levar adiante uma conversa depravada. Gonçalo não é corrompido pela hipocrisia inaciana, pensava Gregório. Enquanto caminhavam,
Gregório falou mal de Antônio Vieira, dissertou sobre os perigos da sífilis, que ele mesmo corria, falou da maravilha de Gomorra, da impertinência da menstruação (contou que havia épocas em que não podia fornicar, pois todas as mulheres estavam menstruadas ao mesmo tempo numa conspiração universal contra os homens), da devassidão dos padres; falou de um frei que apelidara de Foderibus Mulieribus, dos meirinhos mesquinhos, de um capitão toleirão. Nada escapou, como sempre, à sua verve. E em meio a essas variedades sustentava o assunto sempre de maneira cáustica e atraente. Não era atoa que tantos homens e mulheres fossem seus inimigos.
O arcebispo João da Madre de Deus recebeu o poeta e o jovem Gonçalo Ravasco. "Creio que o ilustríssimo não ignora o vendaval que arrasa a cidade”, disse o poeta. O arcebispo afirmou que sabia das disputas entre as facções Menezes e Ravasco. O arcebispo perguntou então, como havia começado a desavença entre as duas facções.
“O alcaide Francisco Teles de Menezes, após comprar o cargo, passou a prevaricar e a atacar com sua língua viperina importantes cidadãos que estranhavam seus excessos, inclusive os Ravasco. Quando Chegou Antônio de Souza para governar, no ano passado, sentindo-se protegido o alcaide, iniciou uma campanha de vingança contra seus opositores. Todos os que tinham ligações com esses homens ficaram ameaçados pelos Menezes. Os perseguidores foram obrigados a se homiziar, muitos no colégio dos jesuítas. Na véspera de Natal, padre Vieira  visitou o governador numa tentativa de reconciliação. Antônio de Souza expulsou-o com palavras ofensivas. A briga prosseguiu pelas ruas. Um jovem sobrinho do alcaide Francisco Teles de Menezes emboscou os irmãos Antônio e André de Brito pelas bandas do Carmo, na descida do Pelourinho. De uma casa, o moço e alguns companheiros atiraram de bacamarte contra os irmãos Brito, quase matando Antônio. Uns covardes. O provedor André de Brito, vendo o irmão caído no chão, sozinho entrou no valhacouto e pôs em fuga os agressores, que escaparam saltando a cerca do colégio dos padres. O resto o ilustríssimo já sabe.”
Os homens lamentaram a situação da Bahia e da Colônia, mas o arcebispo asseverou que os Ravasco poderiam se defender, pois eram muito influentes. João da Madre de Deus lembrou também a influência de Padre Vieira em Portugal. O poeta rebateu falando da inescrupulência dos desembargadores Palma e Gois e da corrupção no governo com compra de cargos e apadrinhamentos, além da perseguição e tirania contra seus opositores. O arcebispo afirmou que havia dito publicamente ao governador que não concordava com a invasão ao colégio e lembrou o poeta que pouco podia fazer, pois estava a serviço da Igreja e não do governo. O poeta contou-lhe sobre as acusações contra o Padre Viera deixando o arcebispo preocupado. O poeta queria que o arcebispo enviasse uma ordem ao governador para que se retirasse o cerco do colégio e se libertasse todos que haviam sido presos durante a invasão. O arcebispo disse que iria pensar antes de tomar qualquer decisão, o que fez com que o poeta insistisse. João da Madre de Deus dispensou os visitantes e afirmou que não viera para a Colônia para pelejar, já havia conversado com outros desembargadores e nem todos pensavam como Gregório. O poeta saiu dali irritado e esbravejando contra o arcebispo e os padres que o acompanhavam.
No capítulo intitulado “A vingança”, Antônio de Brito é torturado e acaba entregando os envolvidos. Entre eles, Bernardo Ravasco. O governador planejava prender alguém da família Ravasco para forçar a captura de Gonçalo. Antônio de Souza, que buscava a todo custo proceder à devassa contra os Ravasco, mandou perseguir e interrogar todos os que tinham ligação com a família.
O governador mandou chamar Bernardina Ravasco, com o intuito de usá-la para chegar a Gonçalo. Bernardo já estava preso; Maria Berco temia ser presa por ter penhorado o anel do alcaide, pois o joalheiro havia sido preso com a joia e entregou Maria. A ordem era prender e torturar Gonçalo e arrancar dele uma confissão. Braço de Prata mandou que perseguissem também o poeta e desembargador da Sé, Gregório de Mattos. “Acossa-o. Escorraça-o e, se não educar a língua, mete-o também na enxovia, degreda-o para Angola, São Tomé, para qualquer lugar bem longe daqui. Não fará nenhuma falta. Já temos letrados demais na Colônia, como disse sua Majestade.”
Iniciaram-se os interrogatórios, Bernardo Ravasco foi interrogado por Antônio Teles, irmão do alcaide morto. Enquanto isso, Dona Bernardina era interrogada pelo governador, ele prometera que, se Gonçalo se entregasse, o secretário Bernardo Ravasco seria solto. Bernardina foi ao encontro do padre Vieira e contou sobre o ocorrido. Irritado, o jesuíta disse que era ele quem ameaçava o Braço de Prata.
Bernardina enviou Maria Berco para falar com o poeta e avisar da perseguição contra o irmão. A jovem perguntou sobre Gonçalo e o poeta disse que não sabia de seu paradeiro. Mesmo que soubesse não diria, ele afirmou, pois sabia das intenções de Dona Bernardina de entregar o irmão em troca do pai. Gregório foi ao encontro do amigo e o alertou.
Na manhã seguinte, Maria Berco acordou com fortes batidas na porta de sua casa, os soldados tinham uma ordem de prisão contra ela. João Berco esbravejou, mas Maria foi levada para a prisão. Não demorou muito para que Bernardina Ravasco também fosse levada para a enxovia. Maria estava numa situação mais complicada, seria enforcada pelo roubo do anel. Luís Bonicho e Gonçalo Ravasco já haviam partido para
Portugal. Anica de Melo tentava convencer o poeta a fazer o mesmo; há dias ele se escondia dos soldados do Governador, pois não tinha mais imunidades nem emprego. Os escritos do secretário Bernardo Ravasco haviam sido entregues ao judeu Samuel da Fonseca, para que ele os guardasse.
O governador não estava satisfeito, pois nem todos os envolvidos estavam presos; alguns estavam refugiados e o alcaide havia assassinado Donato Serotino, o que não ajudava em nada os planos do governador de incriminar os Ravasco e ainda piorava sua situação. Além disso, o govenador não tinha nenhuma prova contra a facção oponente.
No capítulo intitulado “A Devassa” o desembargador Rocha Pita assume as investigações do crime. Faz alguns interrogatórios, mas não consegue chegar a um desfecho aceitável.
Metido em seu gabinete, Rocha Pita passara a noite folheando os depoimentos, anotando pontos de interesse. Relera várias vezes o processo da morte do alcaide-mor, observando falhas: incoerências, mentiras evidentes, obscuridades e ambiguidades que permitiriam impressões diversas; frequentemente contradições, sonegações de indícios, provas duvidosas. Não teria percebido aqueles grosseiros erros o famoso jurista colonial Palma?
Todos os envolvidos foram libertados por falta de provas. Sabendo dos benefícios da posição dos Ravasco e sua própria, o poeta Gregório decidiu interceder por Maria Berco. Após analisar o processo de Maria Berco, foi falar com Rocha Pita. Gregório de Matos conseguiu inscrever Maria Berco no livro de fianças e livrá-la da forca. Depois disso, o poeta decidiu procurar o esposo da jovem, na tentativa de convencê-lo a pagar sua fiança; o marido apenas concordou em testemunhar a favor da esposa. O poeta procurou então o judeu Samuel da Fonseca para pedir- lhe os recursos. O poeta não descansou até conseguir libertar a jovem; depois disso, Maria Berco foi levada para o engenho de Samuel da Fonseca, no Recôncavo.
No último capítulo do livro, intitulado “A Queda”, a autora relata a destituição do Braço de Prata do cargo de Governador e a restituição do cargo de secretário a Bernardo Ravasco. O édito dizia:
A Antônio de Souza Menezes. Eu, el rei, vos envio muito saudar. Atendendo aos vossos anos, e aos muitos que tendes de serviço desta Coroa, parecendo-me que desejais ver-vos fora do Brasil, para vir descansar ao reino, fui servido nomear ao Marques de Minas que vos houvesse de ir suceder. De que vos mando avisar para que o tenhais entendido. Escrita em Lisboa a 9 de março de 1684. Rei.
Contudo, não foram só notícias contra o governador que chegaram da metrópole. El Rei mandara execuções secretas para o padre Vieira, destituindo-o de todos os privilégios que não fossem eclesiásticos. O fato é que durante a sindicância contra o governador, testemunhas falsas depuseram contra a facção dos Ravasco. O sindicante partiu para Portugal com muitas cartas de aprovação a Antônio de Souza e a imagem do governador em Portugal era bem diferente da que se via na Colônia.
Por fim, numa espécie de posfácio, a autora relata o destino das personagens. Gregório de Mattos permaneceu um tempo no Recôncavo, esqueceu-se de Maria Berco; durante o governo do Marquês de Minas, voltou a advogar e casou-se com Maria dos Povos. Após o casamento, voltou à vida descuidada, teve novas contendas com o poder e foi degredado para Angola por continuar suas sátiras contra o governo. Um tempo depois retorna ao Brasil, mas, desta vez, se estabelece em Pernambuco, onde viveu até sua morte, em 1695.
Após ser libertada, Maria Berco ficara viúva e recebera uma boa herança, bens ocultados pelo marido avarento até sua morte. Esses recursos lhe permitiram retornar a Portugal; entretanto, seu fim é trágico, pois embora tenha recebido muitas propostas de casamento acabara sozinha e condenada por heresia. Sob suspeita de práticas judaizantes, foi excomungada por dizer a vizinhos que os judeus no Brasil eram pessoas boas, palavras que “ofendiam muito as orelhas dos cristãos.”A pena, no entanto, foi relativamente branda para os padrões inquisitoriais: perdeu todos os seus bens e foi abjurada com hábito penitencial perpétuo; degredada para São Tomé por dois anos e proibida de retornar a Portugal, Maria Berco morreu pobre e sozinha em São Tomé.
Antônio Vieira prosseguiu com seus sermões, envolveu-se em diversas intrigas contra o governo do Brasil. Já em idade avançada assumiu o cargo de Visitador Geral das Missões. Defendeu mais de uma vez a liberdade dos índios. Comunicava-se frequentemente com amigos de Portugal. Morreu em 1697.
Bernardo Ravasco morreu dois dias depois do irmão. Doente, não soube da morte de Vieira. Dez anos antes de morrer, recebeu, juntamente com o irmão jesuíta, a sentença sobre a morte do alcaide - foram ambos inocentados. Bernardo Ravasco deixou numerosa obra poética em português e castelhano.
Antônio de Souza jamais esqueceu o ódio pelos Ravasco.
Anica de Melo continuou na Bahia até o degredo de Gregório de Mattos, quando partiu para Angola na esperança de reencontrá-lo. Mas sua embarcação naufragou perto da costa da África, num ataque de corsários holandeses. Anica morreu a poucas léguas do amado; mas o poeta nunca soube como ocorreu sua morte. A cidade da Bahia cresceu e modificou-se, continuava a ser cenário de prazer e pecado, encantando a todos que ali viviam ou visitavam, mas jamais deixaria de ser a cidade onde viveu o “Boca do inferno.






15 de nov. de 2016

Análise literária "Olhos d'água", de Conceição Evaristo

ANÁLISE LITERÁRIA"Olhos d’água", de Conceição Evaristo:
a violência e a miséria que vitimam os afro-brasileiros



Nos quinze contos que enfeixam Olhos d’água, de Conceição Evaristo, a temática está relacionada às agruras diárias pelas quais passam os afro-brasileiros numa sociedade excludente como a nossa. Nessas pungentes narrativas, ainda que existam alguns protagonistas masculinos, a ênfase centra-se em personagens femininas, muitas delas figurando parcial ou totalmente nos nomes de alguns dos contos.
Indubitavelmente, questões étnicas e sociais são assuntos recorrentes na obra dessa escritora, visto que ela está envolvida com questões ligadas à igualdade racial desde a década de 1980.
No prefácio da obra, Heloisa Toller Gomes observa que muitas personagens femininas dos contos são “todas a mesma mulher, captada e recriada no caleidoscópio da literatura”. Essa mesma mulher repete os dilemas vividos pela Ponciá do romance, encarnando a face de cada um dos desvalidos da sociedade brasileira, às voltas com a miséria e a violência urbana. Na realidade, essa mulher única em várias outras atua nas narrativas como resposta à indagação que o leitor encontra no poético Olhos d’água, primeiro conto do volume: “De que cor eram os olhos de minha mãe?”. A pergunta obriga a narradora a fazer o caminho de volta para o lar e resgatar sua própria história, sua identidade. E dessa consciência de sofrimento, de “lágrimas e lágrimas”, há a possibilidade de a mulher que narra apreender que ela própria, a mãe, a filha, as tias, “todas as mulheres de minha família” compõem fragmentos de uma mesma mulher que sofre.
O olhar da escritora recai sobretudo na existência difícil de personagens femininas afrodescendentes, que tentam se equilibrar no fio tênue de um cotidiano marcado por humilhação, opressão e preconceito.
As personagens que figuram em cada narrativa pertencem ao universo dos excluídos de nossa sociedade, isto é, são crianças de rua, prostitutas, mulheres pobres e humilhadas, homens que roubam, matam e são capazes de amar. Se a condição social por si só comprova que são pessoas discriminadas, mais ainda o são por serem afrodescendentes.
Sobre a autora: Conceição Evaristo Maria da Conceição Evaristo de Brito
Nasceu em 1946, numa favela de Belo Horizonte (MG). Foi para o Rio de Janeiro em 1973. Ali, atuou no magistério e ingressou na Faculdade de Letras da UFRJ. Fez Mestrado em Literatura na PUC-Rio e Doutorado em Literatura Comparada na UFF. Na década de 1980, estabeleceu contato com o grupo Quilombhoje. Em 1990, os Cadernos negros publicaram alguns de seus poemas. Com o romance Ponciá Vicêncio, de 2003, Conceição Evaristo obteve a merecida consagração literária. Em 2006, lançou o livro Becos da memória e, em 2008, Poemas da recordação e outros movimentos.
 Características da obra: temporalmente os contos abordam o presente, mas não deixam afastar o passado e sempre interrogam o futuro.
A escrita: há uso freqüente do recurso de escrita que se baseia na hifenização, a qual passo a denominar, neste caso específico, palavras siamesas (cuja lista a seguir, aviso, pode estar incompleta): "lava-lava" e "passa-passa" (p. 16); "peitos- maçãs" (p. 22); "gozo-pranto" (p. 23); o nome de uma de suas mais contundentesde sua galeria de personagens, "Duzu-Querença" (p. 31); "florcriança" (p. 46); "borboleta-menina" e "dedos-desejos" (p. 51); "ave-mãe" (p. 55); "corpo-coração", "gozo-dor" e "jorro-d'água" (p. 60); "barrigas-luas", "águaslágrimas", "dança-amor" e "buraco- perna" (p. 61); "alma-menina" (p. 63); "figurinhaflor" (p. 74); "quarto-marquise" (p. 76); "coragem-desespero" (p. 80); "beija- beija" (p. 82); "verdades-mentiras" e "peito-coração" (p. 83); "Deus- menino", "imagem-mulher" e "imagem-homem" (p. 84); "rio-mar" (p. 99); "fumacinha-menina" e "contra-contra" (p. 101); "mar-amor" e "mundo-canal" (p. 104); "mar-amar" e "mar-morrente" (p. 107).
NOMES DOS PERSONAGENS: Os nomes escolhidos para seus personagens são criados a partir da aglutinação de palavras - "Luamanda" - exemplo formado pelo substantivo lua e o verbo "mandar" (conjugado no presente do indicativo, terceira pessoal do singular) - "Dorvi" - novamente utilizando um substantivo "dor", aliado ao verbo "ver" (conjugado na primeira pessoa do pretérito perfeito). Outras fontes preciosas para a denominação de personagens são as culturas Banto e lorubá. E não são utilizadas apenas para este fim, pois as referências às narrativas míticas africanas se apresentam ora como poderosas metáforas, ora como alegorias que podem se referir, direta e/ou Indiretamente, à diáspora africana no passado brasileiro e seus desdobramentos em nosso "presente-cotidiano".
RESUMO DOS CONTOS:  OLHOS D’ÁGUA Verifica-se que, desde o título, a autora utiliza-se da imagem dos olhos para fixar um centro de poeticidade e significação para o conto. É por meio dessa imagem que se desperta, na narradora, as lembranças que remontam sua infância como um belo e doloroso quebra-cabeças. Assim, emerge a necessidade de se reencontrar com a sua mãe, logo, com as suas origens.
Utilizando-se da imagem dos olhos, Conceição Evaristo traz à tona questões de ordem social, cultural e religiosa, relacionadas à miséria em que a narradora se encontra na infância e pensando em sua relação com os orixás e com as Yabás ainda em África. Dessa forma, a autora insere voz autoral, temática e ponto de vista sem abrir mão do trabalho estético em seu texto, fugindo do teor "panfletário". Ao se lembrar e narrar suas lembranças, a narradora-personagem de "Olhos d'água" evoca as experiências que marcaram sua infância e, neste jogo de recordações, acaba por (con)fundir suas próprias memórias com as lembranças de sua mãe:
[...] Às vezes, as histórias da infância de minha mâe confundiam-se com as de minha própria infância. Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da panela subia cheiro algum. Era como se cozinhasse, ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento (EVARISTO, 2010, p. 172).
No fragmento acima, memórias se fundem e um tema presente na vida da narradora vem à tona: a fome. Assumir essa fusão de lembranças é como aceitar uma carga hereditária. Recorrente na prosa de Conceição Evaristo , a hereditariedade que ecoa na geração seguinte revela-se um traço forte no que diz respeito à ancestralidade, como um elo estabelecido entre passado e futuro que se concretizará no desfecho do conto, quando em frente à filha, a narradora brinca de buscar, uma na outra, a verdadeira cor de seus olhos: Justifica-se esta afirmação, a presença do tema nos romances Ponciá Vicêncio e Becos da Memória.
Hoje, quando já alcancei a cor dos olhos de minha mãe, tento descobrir a cor dos olhos de minha filha. Faço a brincadeira em que os olhos de uma são o espelho dos olhos da outra. E um dia desses me surpreendí com um gesto de minha menina. Quando nós duas estávamos nesse doce jogo, ela tocou suavemente o meu rosto, me contemplando intensamente. E, enquanto jogava o olhar dela no meu, perguntou baixinho, mas tão baixinho como se fosse uma pergunta que para ela mesma, ou como estivesse buscando ou encontrando a revelação de um mistério ou de um grande segredo. Eu escutei quando, sussurrando, minha filha falou: _Môe, qual é a cor tão úmida de seus olhos?
Entende-se aqui a indagação acerca da cor dos olhos da mãe como uma forma de voltar às origens e buscar uma identidade perdida, ou desconstruída, pelo afastamento de suas raízes.
O tom acusatório com a qual a indagação vai se contornando ao longo do conto confirma a perda de identidade e a necessidade de reencontrá-la ou reconstruí-la. Mesmo que algumas lembranças da infância estejam nítidas e presentes para a narradora, a cor dos olhos que escapa de suas lembranças permite pensar nessa fragmentação identitária.
Presente desde o título, "Olhos d'água", a repetição da imagem sempre traz consigo uma nova caracterização, seja da mãe ou da própria narradora.
A cada repetição da indagação, uma nova lembrança emerge das memórias da narradora, desde um momento da infância em que a miséria leva a mãe a inventar jogos para distrair a fome das filhas a lembranças em que os traços da mãe são trazidos à tona com minúcia de detalhes, não deixando escapar nem uma verruga escondida sob seus cabelos ou uma unha encravada do dedinho do pé.
A narradora é a filha mais velha de sete filhas, logo fica implícito as responsabilidades assumida ainda na infância. A linguagem poética chega a tornar leve, mas não apagar, as dificuldades e sofrimentos:
"Era como se cozinhasse, ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento. [...] fervia panela cheia de fome [...] salivar sonho de comida.
A musicalidade é um elemento importante no conto, como em: "Chovia, chorava! Chorava, chovia!"
O conto se mostra circular a partir que o final abre caminho para um novo questionamento sobre a cor dos olhos da mãe. Esta característica pode representar o sofrimento e a perseguição que ainda caem sobre os afrodescendentesem nosso pais e no mundo.
ANA DAVENGA
Narrador em terceira pessoa e onisciente narra a história de amor e morte de Ana e Davenga. O conto é marcado pelo ritmo do samba, do candomblé ou do coração. Davenga era um malandro, assaltante e tipo um chefe do morro. Ana era uma dançarina(bailarina) que sambava quando Davenga a encontrou. No início não era bem aceita entre o grupo de bandidos e mulheres que ficavam junto a Davenga. Maria Agonia era crente que pregava na praça com seu pai pastor, de Bíblia na mão e tudo, mas que sempre se entregava aos prazeres de Davenga. Por não querer morar com ele e esnobá-lo, acabou assassinada. A irmandade no crime, quando um precisa, o outro ajuda. Ana encarna as milhares de mulheres de homens no crime. Mora em barraco no morro, recebe constantes batidas policiais:
"Ana sabia bem qual era a atividade de seu homem. Sabia dos riscos que corria ao lado dele. Mas achava também que qualquer vida era um risco e o risco maior era o de não tentar viver". A inversão usada em "E naquela noite primeira..." é uma forma de explicitar a ideia da noite que inicia a vida dos amantes. O fim do conto é marcado com grande ironia pelo fato de Davenga preparou uma festa de aniversário para Ana, a primeira da vida dela, e na mesma noite ambos são mortos pela polícia.
DUZU-QUERENÇA
Duzu é uma mendiga que relembra sua trajetória, do dia que chegou à cidade grande ao momento que é narrada a história. Ela chega de outras terras com o pai, um pescador sonhador que migra em busca de uma vida melhor para sua família. No entanto, a esperança de uma vida digna se perde nas malhas da cidade grande. Duzu foi trabalhar em casa de família com a promessa da patroa que estudaria, mas a dona não deixou e acabou se tornando prostituta. Querença, neta de Duzu, é que reencontrar os sonhos. Suas estrelas não são apagadas como as da avó. Ela é a esperança de realização dos sonhos que Duzu não conseguiu ter. O conto Duzu - Querença apresenta a dura realidade dos marginalizados e despossuídos econômica e socialmente. Aqui Conceição não só rompe com a estética do belo, quando descreve o cotidiano do favelado e escancara a sujeira e a pobreza: "Duzu lambeu os dedos gordurosos de comida, aproveitando os últimos bagos de arroz que tinham ficado presos debaixo de suas unhas sujas."(p.29). Expõe também a frágil relação que existe entre centro e periferia, entre negros e brancos, entre a cultura do dominante e do dominado: "Um homem passou e olhou para a mendiga, com asco. Ela devolveu um olhar de zombaria . O homem apressou o passo, temendo que ela se levantasse e viesse lhe atrapalhar o caminho". É interessante apontar o fosso social que separa essas duas personagens iniciais. A convivência dessas diferentes realidades é conflituosa, pois há um aparente consenso, uma não aceitação mútua do diferente, percebe-se no gesto do transeunte, a confusão entre diferença e inferioridade. A velha mendiga do conto revela, através das lembranças, o universo "natural" da mulher negra e marginalizada. Quando criança seguiu um caminho predestinado, remanescente do período escravocrata, e que ainda se perpetua nas camadas mais pobres da população - o serviço doméstico, quase que naturalmente reservado à mulher/menina negra: "... Na cidade havia senhoras que empregavam meninas" (p.30).E quando jovem, se bonita, ao serviço sexual, onde convivem com a brutalidade, a violência e a exploração: "Duzu morou ali muitos anos e de lá partiu para outras zonas. Acostumou-se aos gritos das mulheres apanhando dos homens, ao sangue das mulheres assassinadas. Acostumou-se às pancadas dos cafetões, aos desmandos das cafetinas. Habitou-se à morte como forma de vida" (p.33). Embora seja um conto de narrativa crua, este nos oferece um lampejo de esperança quando percebemos em Querença o sonho da avó se tornando possível. Soa como uma transferência ou um legado, a responsabilidade de conseguir uma vida melhor e a neta capta a mensagem: E foi no delírio do avó, na forma alucinada de seus últimos dias, que ela. Querença, haveria de sempre umedecer seus sonhos para que eles florescessem e se cumprissem vivos e reais. Era preciso reinventar a vida. Encontrar novos caminhos. Não sabia ainda como. Estava estudando, ensinava as crianças menores da favela, participava do grupo de jovens da Associação de Moradores e do Grêmio da Escola. Intuía que tudo era muito pouco. A luta devia ser maior ainda... (p.37).
MARIA Conto curto pouco mais de três páginas. Maria empregada doméstica volta para casa depois de uma festa (hora extra) na casa de seus patrões. Carrega consigo os restos da festa para os filhos. Entra na condução a qual sofre um assalto. Um dos assaltantes era pai de seu filho que pergunta pelo garoto. No final do assalto, alguns passageiros acusam Maria de participar de cúmplice dos assaltantes. Maria é linchada até a morte. O enredo é bem comum dos noticiários policiais com o crescimento da intolerância nos grandes centros. As pessoas se colocam no papel de acusação, de juiz e de executor. Maria é um nome comum no Brasil, este caráter genérico ajuda a entender que a exploração do trabalho da doméstica e o julgamento de pessoas negras e pobres formam a realidade brasileira Maria segue a trajetória de tantas outras Marias que também são abandonadas com os filhos e tendo que se virar para sustentá-los. Ter filhos de homens diferentes é uma realidade nas regiões mais pobres, como acontece com a personagem. O narrador é onisciente e revela os pensamentos e as lembranças da personagem. A preocupação dela se os filhos gostariam de melão revela a limitação alimentar deles. O fato de um jovem negro ter incentivado as agressões à Maria serve para mostrar como o sistema é cruel. As pessoas acabam não percebendo que convivem com as mesmas dificuldades daquela que é agredida. Selva de pedra.
QUANTOS FILHOS NATALINA TEVE?
Conto narrado em terceira pessoa e com onisciência. Conta a história de Natalina e suas gravidez. Não podemos falar filhos, pois dos quatro que ela pariu, apenas um ela quis para ela. A primeira gravidez foi acidental aos 14 anos com seu namoradinho Bilico. "Brincava gostoso quase todas as noites com seu namoradinho e quanto deu fé, o jogo prazeroso brincou de pique- esconde lá dento de sua barriga". Não queria o filho, tentou evita-lo de todas as formas. Porém quando a mãe disse que a levaria para Sá Praxedes, uma espécie de parteira que fazia abortos, Natalina fugiu. Uma parte que apresenta a inocência da menina foi quando confundiu prisão de ventre com gravidez e tomou chá errado. Não podia ficar com a mãe, afinal tinha vergonha e além disso já moravam na casa a mãe, o pai, ela e mais seis irmãos. O primeiro filho de Natalina, nome ligado à ideia de nascimento, ficou com a enfermeira do hospital onde deu a luz. O segundo filho, também acidental, da relação com o trabalhador da construção civil, Tonho, também foi abando nado por ela. Embora o rapaz tenha ficado feliz e proposto a construção de uma família com ela, porém esta não era a vontade de Natalina. Tonho foi embora com o filho, voltando para sua terra. O terceiro filho foi um pedido do casal para quem Natalia trabalhava. Eles viajavam muito o que fazia a protagonista até se sentir dona da casa. Como o casal não conseguia ter filhos, a patroa pediu que Natalina se deitasse com seu marido para que ela engravidasse um filho para eles. Foi a pior gravidez dela. Foi tratada com todo zelo pelo casal, mas vomitou até na hora do parto e quase morreu. Não teve leite no peito e logo foi esquecida por eles. O quarto filho veio depois de um sequestro de bandidos que a confundira com outra mulher, pois perguntavam para ela onde estava seu irmão. Como ela há muito já se afastara da família negou que houvesse um irmão. Mas eles não se convenceram e ficou a cabo daquele que estava no volante eliminar Natalina. Antes porém ele a violentou e depois do gozo, em uma distração, deixou o revólver cair no chão. Natalina pegou matou o seu sequestrados. Mas a semente invasora desse homem já estava guardada e ela engravidou. O toque de sarcasmo está no fato que o filho feito na violência foi o única que ela quis para ela, principalmente por não ter que o dividir com ninguém. " Brevemente iria parir um filho. Um filho que fora concebido nos frágeis limites da vida e da morte.
Conceição Evaristo aborda neste conto a sexualidade feminina com a mesma crueza com que Machado problematiza a maternidade em "Pai contra mãe" Nascida na pobreza e marcada pela carência de afeto e informação, a adolescente favelada torna-se mãe precoce obrigada a entregar os filhos indesejados, num processo de rejeição e embrutecimento que passa até pela "barriga de aluguel" para o feto surgido do sexo com o patrão. O calvário de Natalina atinge um nível tragicamente irônico quando do novo estupro da garota, a que se segue o assassinato do agressor pela vítima. A jovem foge, mas "guarda a semente invasora" daquele homem, que logo frutifica. Ao final, constata que o filho estava para arrebentar no mundo a qualquer hora. Estava ansiosa para olhar aquele filho e não ver a marca de ninguém, talvez nem dela. (...) Sabia que o perigo existia, mas estava feliz. Brevemente ia parir um filho. Um filho que fora concebido nos frágeis limites da vida e da morte. (EVARISTO, 1999, p. 28) Como se vê, sexo, maternidade e violência não se separam, mas agora vitimam também o homem. O texto afro-brasileiro inscreve a mulher num outro diapasão, no qual o corpo mais do que nunca expressa sua condição de vítima de uma ordem social calcada na exploração e no preconceito.
BEIJO NA FACE
Narrador em terceira e com onisciência que revela todos os pensamentos, lembranças e fantasias da protagonista Salinda. A história começa após o retorno de uma viagem Chã de Alegria, ela ainda não desfizera às malas e as crianças haviam ficado com a tia Vandu. As lembranças da noite de amor no dia anterior não saiam de sua cabeça: "Salinda tombou suavemente o rosto e com as mão em concha colheu, pela milésima vez, a sensação impregnada do beijo na face. Depois com um gesto lento e cuidadoso, abriu as palmas das mãos, contemplando-as. Sim, lá estava o vestígio de carinho. Tão tênue, como os restos de uma asa amarela, de uma borboleta-menina". Salinda e o marido já haviam se separado antes. Ela já havia tido vários amantes. Nessa nova união, o marido se tornou muito controlador e vigiava cada passo que ela dava e lógico tinha muito ciúme. Salinda até assume que viveu bons momentos com ele, mas agora só pensa em se separar dele assim que as filhas crescerem. A saída para seu desejo de carinho e prazer se contruiu na cumplicidade da tia Vandu, em um dos quartos Chã da Alegria onde recebia seu amantes. Na última viagem para casa da tia, levou os filhos ao circo e lá viu a equilibrista, a atração que ela mais gostava no circo, pois via alguma semelhança com sua vida. E foi com esta equilibrista que ela conheceu uma nova forma de amor. "No princípio a aprendizagem lhe custara muito. Acostumada ao amor em que tudo ou quase tudo pode ser gritado, exibido aos quatro ventos, Salinda perdeu o chão. Habituada ao amor que pede e permite testemunhas, inclusive nas horas do desamor, viver silente tamanha emoção, era como deglutir a própria boca, repleta de fala, desejosa de contar as glorias amorosas. E por que não gritar, não pichar pelos muros, não expor em outdoor a grandeza do sentimento? Não, não era ostentação que aquele amor pendia. O amor pedia o direito de amar somente". O marido descobre e vai para casa da mãe. Salinda sabia que uma guerra começaria pela guarda dos filhos, mas ela não tinha mais temor. Sentiu porém um certo alívio. E ao olhar para o espelho viu refletido o rosto da outra, ambas se pareciam. Altas, negras e com dreads no cabelo. Um amor entre iguais. Neste conto nota-se a configuração de formas alternativas de amor e prazer, das quais o homem está excluído, onde o homoerotismo surge em registro terno para se contrapor à conjugalidade da família monogâmica desprovida de desejo e afeto. A literatura afrobrasileira dessas autoras subverte imagens e procedimentos cristalizados no discurso hegemônico e envereda por novas representações do amor, em que um outro erotismo marca presença.
Deste modo, uma nova mulher e um novo homem vêm surgindo aos poucos nos escritos de autoria afrodescendente. E surgem para agregar um perturbador suplemento de sentido ao conjunto de figurações marcadas desde sempre pela expressão das fantasias sexuais aqui plantadas pelo discurso do colonizador, e a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pela e da memória.
LUAMANDA
Outro conto em terceira pessoa em que o narrador é onisciente e nos apresenta as lembranças eróticas-amorosas da protagonista. A protagonista, Luamanda, é uma cinquentona que aparenta ser mais jovem e gosta que os outros pensem assim. Em um processo nostálgico, começa a refletir sobre sua vida e, principalmente, sobre suas paixões. A descoberta do amor e do erotismo passa por fatos e questionamentos dela. "Amor dói?" - primeira paixão, ainda menina, terminada com a surra da mãe. "Amor é terra morta?" - tinha onze anos e corpão de moça e seus amores eram distantes, platônicos. "Amor é terremoto?" - tinha treze anos e teve sua primeira relação. "Amor é um poço misterioso onde se acumulam águas-lágrimas?" - Ela teve sua paixão e cinco filhos. Fica implícito a ausência do homem. "O amor se guarda só na ponta de um falo ou nasce também dos lábios vaginais de um coração de uma mulher para a outra?" - Luamanda teve sua primeira relação com outra mulher. "O amor não cabe em um corpo?" - Ela já madura teve uma relação com um jovem, marcada pela intensidade e virilidade dele. "O amor é um tempo de paciência?" - Ela se apaixonou por um velho e a relação exigia a espera e o contemplamento do corpo, das rugas e o embranquecimento do pelo do outro. "O amor comporta variantes sentimentos?" - Luamanda teve que conviver com as cicatrizes de uma agressão de um amante que não soube aceitar o fim da relação. E durante tempo se recolheu em si mesma. Nessa reflexão, mesmo sendo mãe, avó, companheira, amiga e amante, afirma que ainda tem uma alma- menina. "Alma menina no tempo? Não, ela não se envergonhava de seu narcisismo". Luamanda ao contemplar o espelho se lembrou do poema de Cecília Meireles retrato, onde a voz poética não se reconhecia naquela imagem refletida, perguntou onde estava o que era antes. Porém, a protagonista não era assim, se reconhecia e se autodescobria sempre.  Esse fluxo de consciência da protagonista é interrompido e ela lembrou-se do compromisso pelo qual se preparava. As portas para o amor estavam abertas. Outro conto que retrata a independência amorosa e sexual da mulher. O homem é mero coadjuvante que não recebe nem nome. A condução é toda feita pela mulher, alterando assim o lugar que sempre fora destinado ao homem.

Um conto que faz reflexão à correría do dia-dia nas grandes cidades. A personagem Cida - embora saída do interior, onde o ritmo de vida é cadenciado e vivido - vive a rotina de trabalho, estudo e pouca entrega afetiva que os grandes centros nos impõe. Embora a história deixe pensar, o início, que Cida é alguém desconcertada para a vida pacata de sua cidade natal, ela tinha a alegria e a plenitude de sua vida lá. "Cida desse pequena guardava um sentimento de urgência. Seu corpo maturou-se no sangue mensal de mulher. As brincadeiras prediletas, ainda nessa época, eram a de apostar corrida com as crianças e a de desafiar grandes e pequenas, no tempo gasto para a execução de qualquer tarefa". Foi ao Rio de Janeiro a primeira vez aos 11 anos e bebeu enlouquecida a velocidade de tudo e todos. Aos 17, por causo de trabalho, mudou-se definitivamente para o Rio de Janeiro. Incorporou-se à cidade logo de cara. Ela fazia tudo rápido. Ir para trabalho, voltar do trabalho, cooper, prazer, amizades, missa, banco etc. Nado poderia lhe tomar tempo. Mas um dia, sem perceber, diminui seu ritmo e viu o mar pela primeira vez e uma profunda reflexão e admiração lhe caiu. Avistou um nadador a quem julgou rico para desperdiçar o tempo. Lembrou- se dos mendigos que eram extremamente pobres e não mediam o tempo. " Ou o tempo não se media com moeda, ou as horas, os dia, os anosnão seriam medidas justas do tempo". Cida se permitiu pisar na areia e contemplar mais um pouco o mar. E entre pensamentos chegou à porta de seu prédio. Pedro, seu amigo, esperava para lhe dar carona e a indagou sobre o atraso no cooper: "Ela estava atrazadérrima”. O final do conto quebra a rotina, o ciclo no qual Cida estava presa. Ela percebera que dera tempo demais para todas as outras coisa. Já tinha vinte nove anos e, enfim, resolveu dar um tempo:
Se distraíra, esquecera das horas. Ele poderia ir, já estava bastante atrasado. Hoje ela não iria trabalhar, queria parar um pouco, nâo fazer nada de nada talvez. E só então falou significativamente uma expressão que tantas vezes usara e escutara. Mas falou tão baixinho, como se fosse um momento único de uma misteriosa e profunda prece. Ela ia dar um tempo para ela.
ZAÍTA ESQUECEU DE GUARDAR OS BRINQUEDOS
Conto que faz uma abordagem do cotidiano dos morros e aglomerados. Pobreza, tráfico e violência. Zaíta é a protagonista, tem uma irmã gêmea e parte atrás da irmã para recuperar sua figurinha de uma garotinha abraçada em flores. Ela procurou na caixa de restos de brinquedos e outras coisa com que brincava e deixou tudo espalhado, mesmo sabendo que a mãe não gostava. Acaba morrendo em um tiroteio entre o grupo de seu irmão e a polícia. A família de Zaíta é formada pela sua mãe (Benícia), seu pais, sua irmã gêmea, seu irmão que estava no crime e o irmão mais velho que estava no exército querendo fazer carreira. Os rapazes eram filhos de outro pai, igualmente pobre como o pai dela. Conceição Evaristo aborda aqui a realidade de inocentes morto na favela. A falta de preocupação com moradores, crianças ou trabalhadores. A miséria leva ao crime quanto a desigualdade (o salário recebido pela mãe por seu trabalho) é inferior que as oportunidades que o tráfico oferece (o dinheiro que seu filho tem). Mesmo o irmão que está no exército depende da ajuda da mãe. Um toque de inocente sarcasmo acontece quando a irmã gêmea de Zaíta a vê morta não consegue entender a gravidade da situação, levando a consideração que a raiva da mãe para ela era mais grave ainda, grita para sua irmã : " - Zaíta, você esqueceu de guardar os brinquedos". As mulheres ficcionais apresentadas pela escritora Conceição Evaristo não se cansam de nos surpreender e, o público já deve refletir sobre as três forças femininas presentes em "Zaita esqueceu de guardar os brinquedos" todas elas tecidas pelo tom sutil da narradora moldada por Conceição Evaristo e surpreendidas quando ultrapassam algumas das imaginárias, mas não irreais, linhas de "cor", gênero e classe. As principais personagens de "Zaita esqueceu..." são crianças, duas meninas, moradoras de uma das centenas de periferias espalhadas nas metrópoles... Os aspectos mais evidentes são o ambiente no qual se passa a trama (um bairro na periferia de alguma grande cidade), personagens negros e/ou afrodescendentes, a pobreza, o crime, o tráfico de drogas. Porém, os mesmos elementos podem ser encontrados em textos de autores brancos, de classe média alta... Nenhum deles, entretanto, teceu uma trama com a delicadeza e perspicácia de Conceição Evaristo. Passo a palavra à narradora elaborada por Conceição Evaristo para a apresentação do núcleo familiar de Zaita: A mãe de Zaito estava cansada. Tinha trinta e quatro anos e quatro filhos. Os mais velhos já estavam homens. O primeiro estava no exército. Queria seguir carreira. O segundo também. As meninas vieram muito tempo depois, quando Benícia pensava que nem engravidaria mais. Entretanto, lá estavam as duas. Gêmeas. Eram iguais, iguaizinhas. A diferença estava na maneira de falar. Zaita falava baixo e lento. Naita, alto e rápido. Zaita tinha nos modos um quê de doçura, de mistérios e de sofrimento. Fica explícita a falta de nomeação dos irmãos de Zaita, retomando o recurso utilizado por Graciliano Ramos, em Vidas secas, os filhos não possuem nomes próprios ("o menino mais novo" e "o menino mais velho"). Essa metonimização possibilita algumas conjecturas: no caso dos filhos de Fabiano e Sinhá Vitória uma hierarquização pela experiência, por tempo de estada naquele mundo de escassas palavras. Quanto aos filhos homens de Benícia indicaria uma indeterminação quanto às possibilidades de futuro para ambos. De acordo com as estatísticas do local eles seriam os alvos preferenciais das balas sem ou com endereço certo: jovens negros, moradores de periferia e pobres... Outro elemento que se destaca no tocante aos irmãos é a irônica referência, feita pela narradora, às escolhas por carreiras distintas no campo militar: lutariam sob bandeiras opostas... Um era soldado efetivo do Exército Brasileiro, outro se sentara praça em diferente "arma": "soldado do morro"... Já a sonoridade presente no nome de cada uma das gêmeas remete à língua árabe. Enquanto Naita seria a musicalidade agitada e aguda de algumas composições árabes, Zaita seria blues ou samba-canção. O fato de serem gêmeas idênticas possibilita ainda uma leitura a partir da tradição ioruba: elas são ibejis (gêmeas em ioruba). E mais importante: Zaita seria um abiku - criança nascida para morrer... O desenvolvimento e desfecho da trama praticamente ficam por conta da voz narrativa e de Naita que se propõe a encontrar a irmã e pedir-lhe que retornasse para casa. Ela saíra e deixara de cumprir uma tarefa importante que, no entanto, permanecerá inacabada.
DI LIXÃO
No conto Di Lixão, a autora narra à história de um garoto pobre, que morava nas ruas e sem perspectiva de vida. No entanto, destaca o esforço de sua mãe que ainda tentou o alertar para que lutasse e seguisse outro caminho na vida, diferente daquele que ela já estava acostumada a levar. Mesmo com o alerta da mãe, o garoto não dá ouvidos a seus conselhos, assim como não acha que ela seja um exemplo para ele devido a vida que levou. O garoto havia ganhado o apelido "Di Lixão", devido a sua mania de chutar os latões de lixo na área onde circulava, diante das peripécias da vida acaba morrendo ainda jovem, aos 15 anos de idade, vítima que foi de um pequeno tumorzinho na boca, assim como de não ter buscado ajuda a tempo. Não gostava mesmo da mãe. Nenhuma falta ela fazia. Não aguentava a falação dela. "Di, vai para a escola! Di, não fala com meus homens! Di, eu nasci aqui, você nasceu aqui, mas dá um jeito de mudar o seu caminho!". Desocupada que vivia querendo ensinar a vida para ele. Depois, pouco adiantava. Zona por zona, ficava ali mesmo. Lá fora, o outro mundo também era uma zona. Sabia quem tinha matado a mãe. E daí? O que ele tinha com isso?[...] O dente de Di Lixão latejava compassadamente. Ele era uma dor só. As dores haviam se encontrado. Doía o dente. Doíam as partes de baixo. Doía o ódio. O dente latejou fundo no profundo da boca. Dor de dente matava? Não sabia. Sabia, porém, que ia morrer. Mas isso também, como a morte da mãe, pouca importância tinha.Às nove horas o rabecão da polícia veio recolher o cadáver. O menino era conhecido ali na área. Tinha a mania de chutar os latões de lixo e por isso ganhara o apelido. Sim! Aquele era o Di Lixão. Di Lixão havia morrido.
O conto denuncia o abando de crianças à sua própria sorte. Di lixão morreu sozinho, entre pessoas que iam e vinham sem notar sua presença. Foi uma morte sofrida e silenciosa. Só foi notado pelas pessoas quando morto. Foi levado pelo rabecão. Ele era um estorvo vivo ou morto para a cidade egocêntrica e cega. Como diz Chico Buarque: E se acabou no chão feito um pacote tímido/ Agonizou no meio do passeio náufrago/Morreu na contramão atrapalhando o público
LUMBIÁ
O menino negro Lumbiá que trabalha nas ruas de alguma cidade urbana vendendo amendoim e flores, é observador atento do burburinho cotidiano dos transeuntes, e também das vitrines hipnóticas em seus diversos apelos de compras. Na época do Natal, fascinado pelas luzes e cenas de presépio exposto numa loja, adentrou no recinto aproximou-se da imagem do "Deus-menino", que estava nu e de braços abertos, repousado na manjedoura. Lumbiá sentiu semelhança e se identificou em necessidade de afeto e acolhida que aquela imagem despertava nele. Retirou a imagem da cena do presépio para agasalhá-la e formar uma outra cena, assim descrita por Conceição Evaristo: "Tomou-o rapidamente nos braços. Chorava e ria. Era seu. Saiu da loja levando o Deus-menino. O segurança voltou. Tentou agarrar Lumbiá. O menino escorregou ágil, pulando na rua. O sinal I O carro! Lumbiá! Pivete! Criança! Erê, Jesus-menino. Amassados, massacrados, quebrados! Deus- menino, Lumbiá morreu!". O conto apresenta a denúncia de um genocídio não declarado e banalizado. Nos grandes centros urbanos em que é comum a invisibilidade social, morrem-se entre os profissionais de saúde que são estranhos ao moribundo ou moribunda, ou seja, uma morte socialmente asséptica e solitária
Os AMORES DE KIMBÁ
O conto retrata um triângulo amoroso entre Zezinho (Kimbá), Beth e Gustavo que acaba com ambos mortos. Zezinho era amigo de Gustavo que o apelidou de Kimbá (nome de alguém na África que lhe causava saudade). Zezinho morava na favela, em um barro cheio de gente. Família grande. O irmão mais velho que era alcoólatra, duas irmãs menores, avó e mãe. Não gostava de lá, queria ter a vida luxuosa do amigo. O conta retrata uma agonia constante em favela, a chuva forte que pode fazer escorregar o barranco e matar. A mãe passa a noite acordada e a avó só fica rezando. Beth foi apresentada a Kimbá por Gustavo, era prima dele. Em um encontro os três se relaciona sexualmente. Kimbá se surpreende por ser desejado também por homem. Tenta entender todo aquele sentimento que conflitavam dentro dele. A temática aborda vários temas como pobreza, a falta de infraestrutura nas favelas e a desigualdade social. Zezinho (Kimbá) foi atraído para esse triângulo amoroso pelo desejo de se ver fora da favela, de ter uma vida melhor diante da vida abastada dos outros dois. Chega a odiar a família por ele estar na favela e ter que conviver com suas manias, vícios etc.
Embora a relação de Kimbá e Gustavo seja descrita na narrativa, não é possível afirma que esta seja a opção sexual dele. Ele estava descobrindo tudo e em relação ao amigo fica implícito que consentia por um certo interesse. Gostou mesmo foi de Beth. Na impossibilidade de escolher entre Gustavo ou Beth, resolve selar o pacto de amor deles com a morte por envenenamento. Beth tinha dinheiro, O amigo, dinheiro e fama. Kimbá, a noite e o dia. A decisão seria, portanto, de Kimbá, que não tinha nada a perder. Só a vida. Era só ele querer. Já que não estava dando para viver, por que não procurara morte? Seria fácil. Primeeira Beth, depois o amigo e em seguida ele. A morte selaria o pacto de amor entre eles. A morte pelo amor dos três.
EI, ARDOCA
O conto apresenta um narrador em terceira pessoa, o qual possibilita ao leitor entender melhor a história e o sofrimento do personagem negro. Ardoca representa os afrodescendentes moradores de subúrbio que diariamente passam por dificuldades, como percebemos no seguinte trecho: Cresceu em meio aos solavancos, ao empurra-empurra, aos gritos dos camelôs, às rezas dos crentes, às vozes dos bêbados, aos lamentos e cochilos dos trabalhadores e trabalhadoras cansadas. Assistiu inúmeras vezes, como testemunha cega e muda, a assaltos, assassinatos, tráfego e uso de droga nos vagões superlotados. Ardoca desde criança utiliza o trem como único meio de transporte, o que sugere uma situação financeira desfavorecida. O conto também mostra um conflito do personagem consigo mesmo, pois se sente cansado da vida que leva no subúrbio. Assim, resolve por fim ao seu "sofrimento" interior e toma uma decisão: Ardoca abandonava o corpo, que pendia lentamente para um lado. O passageiro do banco próximo encolheu o pé. Um camelô, que vendia água, pulou por cima dele, para atender uma pessoa. Ardoca respirava com dificuldade, debaixo do negro de sua pele um tom amarelo desbotado aparecia. [...] Naquela tarde, ainda no trabalho ele resolvera tudo. Num gesto desesperado e solitário bebera lentamente um veneno e decidira levantar para morrer no trem. O narrador descreve o sofrimento de um homem negro e suburbano. Por um momento passamos a alimentar a esperança de que a vida desse homem está prestes a mudar, pois há uma pessoa tentando ajudá-lo. “Nesse momento entrou no vagão um passageiro correndo e gritando. Desesperado, saiu empurrando em direção ao rapaz desfalecido, chamando por ele: - Ei, Ardoca! Ei, Ardoca!" Mas a história é outra, e o homem que socorre Ardoca, na verdade estava o assaltando. Agora o sofrimento parecia ser maior, porque mesmo depois de tentar morrer no trem, ele estava perdendo junto com a vida, o que lhe restou nos bolsos. Por fim, percebemos a intromissão do narrador, em um comentário sentimental: o outro levava os pertences de alguém que já despertencia à vida e jazia no banco da estação. O barulho da máquina sobre os trilhos entoava uma música réquiem de descanso eterno para Ardoca. Amém Este conto pode, legitimamente, ser considerado como pertencente ao corpus literário afro-brasileiro uma vez que atende aos critérios já citados, como: a autoria, visto que se trata de uma escritora negra que busca escrever histórias ficcionais, nas quais se percebe o olhar do negro e não o do branco racista e dono de escravos. Apresenta também o ponto de vista, pois Conceição Evaristo escreve mostrando o olhar da sociedade a respeito dos afrodescendentes e dos próprios personagens negros a respeito da vida que vivem. E, além disso, está evidente que essa escritora escreve com a intenção de ser porta-voz de um público desfavorecido socialmente. Percebe-se, assim, que mesmo sem usar explicitamente a palavra "negro", nem remeter amplamente à descrição de suas peculiaridades físicas, uma narrativa pode ser considerada como literatura negra ao exprimir, como se analisou, anseios e vivências de excluídos, pessoas à margem da sociedade, com os quais os afrodescendentes, por viverem os mesmos problemas, podem se identificar.
A GENTE COMBINAMOS DE NÃO MORRER
O conto varia do narrador em primeira pessoa e terceira pessoa. Apresenta também várias vozes: Narrador, Dorvir, Bica e Mãe. Cada personagem descreve o que está acontecendo na favela e na vida dos outros personagens sob sua ótica. A narrativa é fragmentada, pois não há uma linearidade. O espaço é uma favela em guerra, tiros são ouvidos toda hora. Cada personagem narrador está em um ponto. Bica lembra do irmão morto porque falou demais. A mãe gostava de novela, as quais ela implicava, mas sabia que a mãe sabia separar muito bem ficção da realidade. Tinha acabado de dar a luz e tinha muito leite, logo alimentava também outras crianças. Se preocupava com seu homem, Dorvir. Achava que o irmão deu motivo para morrer. A mãe fala sobre a televisão e sua programação preferida, novela. Lembra do filho e das brincadeira que fazia com ele e vice-e-versa. Se preocupava com o destino de Bica, sua filha. Não acreditava que Dorvir seria bom futuro para ela e o neto. Dorvir está encrencado pois emprestou dinheiro do tráfico, dos homens de Baependi, e a pessoa não lhe pagou. Sabia que seu fim estava próximo, mas queria acertar contas com o seu devedor primeiro. Comenta sobre o prazer de viver no perigo que chegou a gozar nas calças quando, pela primeira vez, atirou. O conto termina com a narração de Bica: Deve hover outro caminhos, saídas mais amenas. Meu filho dorme. Lá fora a sonata seca continua explodindo balas. Neste momento, corpos caídos no chão, devem estar esvaindo em sangue. Eu aqui escrevo e relembro um verso que li um dia. " Escrever é uma maneira de sangrar". Acrescento: e de muito sangrar, muito e muito...
O conto retrata elementos e características de uma comunidade negra que passa por uma crise. A primeira parte do conto se refere ao momento em que as personagens se encontram desamparadas. A segunda que se inicia com a notícia do nascimento de uma criança (Ayoluwa), é o momento em que se devolve à comunidade a esperança. A narração ocorre em primeira pessoa o que revela na literatura negra a determinação do narrador em desvencilhar-se do anonimato e da "invisibilidade" a que o relegou sua condição de descendente de escravos ou de ex-escravos. Na grande maioria dos casos o eu individual funde-se ao nós coletivo, evidenciando um empenho em delinear uma identidade comunitária. O narrador deste conto participa e compartilha com a comunidade angústias e anseios, e a utilização da primeira pessoa do plural corrobora essa afirmação: "À noite, quando nos reuníamos sem volta de uma fogueira mais de cinzas do que de fogo, a combustão vinha de nossos lamentos" Nesta poética, o eu-enunciador, ao se declarar negro e evidenciar essa identidade, deixa de ser objeto da escritura para se tornar sujeito; ele conta as inquietações de sua comunidade, sem tomar de empréstimo a voz de um branco ou ser referido como "o outro", aquele que é observado e sobre o qual se fala. Partindo do momento presente, o narrador volta ao passado, às suas memórias, para descrever esta crise que tomou conta de sua comunidade e que, no momento da narração, já havia sido superada devido ao nascimento de mais um membro: "Quando a menina Ayoluwa, a alegria do nosso povo, nasceu, foi em boa hora para todos". O narrador pormenoriza as lembranças dos tempos difíceis, em que os dias "passavam como um café sambango, ralo, frio, sem gosto. Cada dia sem quê, nem porquê. E nós ali amolecidos, sem substância alguma para nos deixar de pé" 0 conto se atem a descrever os elementos da comunidade que foram afetados pela crise. O depois ou o antes disso configura-se como uma incógnita e o que sabemos, ao final da narrativa, é que o nascimento de Ayoluwa trouxe contribuições para a comunidade, mas este estado pode não ser permanente. A comunidade de que o conto trata é composta por muitos membros e a autora menciona todos eles na tentativa de caracterizar de forma totalizadora a organização social do grupo de ascendência africana. E ela obtém êxito. Através dos nomes selecionados e da explicitação de seus significados, expostos sempre ao longo do texto, podemos deduzir qual o papel desempenhado por cada personagem. Os nomes têm sempre origem africana e o narrador não detalha a função de cada um deles ou se atém a descrições do tipo psicológicas. É a partir do entendimento do significado do nome que podemos reconhecer a função atribuída a cada indivíduo. No dia do nascimento de Ayoluwa, Omolara foi a responsável pelo parto. Para descrever a personagem e para tomarmos conhecimento de sua função de parteira, o narrador assim nos descreve o nome da personagem e seu significado: "E no momento exoto em que a vido milogrou no ventre de Bomidele, Omolara, aquela que tinha o dom de fazer vir as pessoas ao mundo, a conhecedora de todo ritual do nascimento, acolheu a criança de Bamidele" Bamidele e Ayoluwa são as duas principais personagens e representam o momento de restabelecimento da ordem. É a partir do anúncio da gravidez de Bamidele que a comunidade volta a ter esperança. Ayoluwa, "aquele que veio para trazer alegria para o nosso povo" O ciclo não estava em harmonia o que encerra as angústias e descrenças das personagens: "agora nenhuma família mais festejava a esperança que renascia no surgimento de sua prole" Os personagens com maior idade também carregam consigo a força da resistência negra; estes indivíduos representam a história através de uma outra versão e nesta o protagonismo do homem negro é ressaltado. Conforme o narrador nos descreve, no momento da crise: Os mais velhos acumulados de tanto sofrimento olhavam para trás e do passado nada reconheciam no presente. Suas lutas, seu fazer e saber, tudo parecia ter se perdido no tempo (...). Todos estavam enfraquecidos e esquecidos da força que traziam em seus próprios nomes. As velhas mulheres também. Elas, que sempre inventavam formas de enfrentar e vencer a dor, não acreditava mais na eficácia delas próprias. Deslembravam a potência que se achava resguardada a partir de suas denominações 0 conto "Ayoluwa, a alegria do nosso povo" e a obra em geral permitem observar a emergência da literatura negra e a revelação de uma poética que busca corporificar as demandas dos afrodescendentese o processo de afirmação da identidade destes.
A Obra Olhos D'água contribui enquanto literatura que desmantela o discurso centralizador que coloca o branco em uma posição superior e os negros, índios e asiáticos, inferior; que relaciona a brancura de um indivíduo ao seu grau civilizatório e à sua capacidade evolutiva.

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