RESUMO DO
ENREDO DE “BOCA DO INFERNO”, DE ANA MIRANDA
Boca do Inferno foi o primeiro romance histórico de Ana Miranda, cuja trama se passa na
Bahia no século XVII. No primeiro
capítulo, “A Cidade”, a autora apresenta a cidade da Bahia, seus habitantes
e seus costumes, dando um panorama do cotidiano do lugar. “Numa suave região
cortada por rios límpidos, de céu sempre azul, terras férteis, florestas de
árvores frondosas, a cidade parecia ser a imagem do Paraíso. Era, no entanto,
onde os demônios aliciavam almas para povoar
o inferno.”. Essa descrição da cidade anuncia o contexto turbulento, corrupto e ambíguo que
configurava a Colônia. Um caldeirão de interesses, culturas, vivências e
aparências. “Não havia grandes assaltantes na Bahia, diziam, mas quase
todos furtavam um pouquinho”. Becos
e vielas tortuosas cobertas de lixo em contraste com a natureza exuberante. Para o leitor,
é como se o retrato da cidade se configurasse numa metáfora de seus habitantes.
No texto, é Gregório de Mattos quem observa a cidade para assim descrevê-la:
Ah, aquela desgraçada
cidade, notável desventura de um povo néscio e sandeu. (...) Sofria ao ver os maus modos de obrar da governança,
porém reconhecia que não apenas aos governantes, mas a toda a cidade o demo se
expunha. Não era difícil assinalar os vícios em que alguns moradores se
depravavam. Pegou sua pena e começou a anotar. O fidalgo do solar ao lado tinha
vergonha de pedir dinheiro emprestado e preferia furtar para manter a aparência
honrada. (...) um mercador avarento, tirava duzentos por cento no que comprava
e no que vendia.
Morrera num assalto e
deixara uma viúva. Porém, apesar dos grandes lucros, o mercador dissipara todo seu dinheiro com mulheres de
alcouce e deixara a viúva sem um vintém e com a casa empenhada. A mulher
recebia a fradalhada que ali ia para manter a honra da casa. E ela gemia,
gritava e ardia em brasa. Ele mesmo o poeta esperava sua vez de aproximar-se da
viúva, apesar de não ter grande gratidão pela branca e seus doces objetos. Mas
uma mulher era sempre uma mulher. Um dos padres que visitava a viúva era o
abade do convento. Dele se dizia que roubava as rendas da instituição para
acudir ao sustento das prostitutas; para manter sua honra, livrava-se das
suspeitas subornando com as rendas roubadas.
O segundo capítulo, “O Crime”,
é dedicado ao episódio do assassinato do alcaide-mor Francisco Teles de
Menezes, que pertencia à facção política do governador Antônio de Souza
Menezes, também conhecido como “Braço de prata”. Pela manhã, como de costume,
ao sair da casa da prostituta Cipriana, Teles de Menezes se viu encurralado por
oito homens encapuzados, que após se livrarem de sua escolta cercaram a liteira
do alcaide; um deles era Antônio de Brito, a quem Teles de Menezes há pouco
tempo tentara matar. Teles atirou contra Antônio de Brito acertando-lhe o
ombro; um dos conspiradores decepou-lhe a mão direita com um golpe de alfanje.
Ele tentou reagir, mas antes que pudesse, teve a garganta cortada. Antônio de Brito foi quem deferiu o golpe.
Os conspiradores fugiram levando a mão decepada do alcaide enquanto ele ainda
agonizava.
Logo que o governador foi comunicado sobre o atentado pediu detalhes
sobre o crime, mas só sabiam dizer que Antônio de Brito estava entre os
conspiradores. Sabia-se também que todos estavam refugiados no colégio dos
jesuítas. O governador pensou logo que a conspiração havia sido arquitetada por
seus inimigos políticos - os Vieira Ravasco - liderada pelo secretário de
Estado Bernardo Vieira Ravasco, irmão do Padre Antônio Vieira e amigo de
Gregório de Mattos. Estavam envolvidos no crime também o filho de Bernardo
Ravasco, Gonçalo, que já estava
refugiado no colégio por conta de uma ordem de degredo, e Moura Rolim,
primo de Gregório de Mattos.
Esse é o capítulo mais extenso do livro e conforme vai se especulando
sobre o crime, outras personagens vão aparecendo. Bernardo Ravasco tinha também
uma filha, a jovem Bernardina Ravasco,
que ficara viúva muito cedo e tinha saúde frágil. Maria Berco era sua dama de companhia. A criada era uma mulher
simples e pobre, casada com um homem velho, cego e avarento. João Berco a havia
tirado da Misericórdia e, apesar da brutalidade do esposo, a jovem sentia-se
grata por ter sido escolhida entre as órfãs. “Foste abandonada pelo teu pai. Eu
te comprei no orfanato. Em troca de milho e de refugo. Eras magra como uma
ratazana faminta. Aqui pelo menos tens a mim que te dou abrigo. (...) Pelo
menos aqui não sofres tormentos”.85 Seu marido era um homem frágil
que aspirava cuidados. Maria trabalhava, esperando o dia em que ele morresse e
assim sobrasse a ela alguns tostões para comprar um lugar na frota para Lisboa.
O governador iniciou uma perseguição aos conspiradores. Não descansaria
até prendê-los, pois a falta do alcaide desestruturava seu governo e ameaçava a
sustentação política e econômica que Teles de Menezes e os desembargadores
Palma e Gois exerciam na Colônia. Os conspiradores liderados por Bernardo
Ravasco trataram de se precaver e proteger suas famílias. Bernardo Ravasco
encarregou-se de dar fim à mais nítida prova do crime, a mão decepada da
vítima.
A criada dos Ravasco, Maria Berco, recebeu a missão de ocultar a prova
do crime. “Dá um fim nisto. Mas não sejas curiosa como uma coruja ou um gato.
Apenas joga isto, esta noite, num lugar onde ninguém jamais possa encontrar.
Depois vai ter comigo na Igreja do colégio para dar notícia do sucesso.”
Enquanto a polícia fazia ronda procurando os conspiradores, Maria Berco
caminhava pelas ruas escuras buscando um lugar seguro para livrar-se da trouxa.
Mas a curiosidade a perseguia. Ao ver do que se tratava, sentiu-se ainda mais
insegura. Jogou a mão do alcaide no lixo. Em seguida, arrependeu-se; pegou-a de
volta e perambulou por mais algum tempo até chegar à praia; estava decidida a
jogar o pacote na água; pagou um barqueiro por uma volta. O marinheiro a
observava e logo pensou no conteúdo do pacote que a moça segurava contra o
peito. Seria um feto? Era comum carregar moças pra que abandonassem fetos e
crianças mortas no mar. Logo descartou a possibilidade, pois Maria não
aparentava ser aborteira; mas a maneira como agia sugeria algo errado. Tomou o
pacote das mãos da jovem. Examinou a mão fétida e se surpreendeu com o belo
anel e seu dedo; retirou o anel de esmeralda que se encontrava no dedo anular e
jogou a mão na água. Maria insistiu para que ele jogasse a joia no mar;
voltaram para a praia e ao chegar perto da margem avistaram-se alguns soldados.
Preocupado com a abordagem, o marujo entregou o anel para Maria. Mandou que o
escondesse, ameaçando-a para que ela não fugisse. Os soldados os interpelaram
com tom ameaçador; prenderam Maria e o marujo. A jovem passou a noite na
cadeia. Pela manhã, um oficial veio a seu encontro; deu-lhe alguns conselhos;
acreditava que se tratava de uma prostituta; mandou-a embora. Maria lembrou-se
do encontro com Bernardo Ravasco e correu para encontrar seu senhor. Quando
chegou à igreja, foi informada de que o secretário havia partido. A jovem logo
pensou no anel que carregava consigo: o que fazer com ele? Ajoelhou-se e rezou;
saiu da igreja e vagou pelas ruas durante um tempo; pensou no marido, na corte,
nos nobres e ao olhar para seus pés sujos de lama pensou na pobreza. Depois de
muito vagar e pensar parou na casa do joalheiro; hesitou por alguns instantes e
depois entrou; muitos ali penhoravam joias, relógios, panos de damasco. Maria
logo foi atendida. O homem perguntou-lhe: vender ou penhorar? Maria disse:
“penhorar”. Analisou a pedra e ofereceu um preço irrisório; Maria aceitou sem
reclamar. Após receber o dinheiro, saiu dali apressada, sem conferir o valor.
Entrou numa taberna, pediu um pastel; o taberneiro ofereceu-lhe outros
produtos. Maria acabou comprando meias de seda, sapatos, roupas, um chapéu para
o marido, tabaco e outras ninharias. Ao chegar em casa com tantas mercadorias e
a ainda uma quantia em dinheiro muito além do que se pagaria a uma criada, o
homem perguntou: “Roubaste? Tens um amante?” A jovem irritada respondeu que
nunca seria meretriz; pensou em contar-lhe a história do anel, mas sentiu
vergonha, decidiu não revelar nada. Era questão de tempo e todos esqueceriam a
morte do alcaide. Então, resgataria o anel e o devolveria a Bernardo Ravasco,
pensou. João Berco continuou esbravejando enquanto Maria recolhia as moedas que
o marido acabara de contar.
O tempo passava e o assassinato do alcaide ia sendo desvendado. O
vereador Luís Bonicho e o mestre de esgrima Donato Serotino (também aliados ao
grupo que atacou o alcaide) planejaram um ataque ao governador Antônio de Souza
durante sua aula de esgrima; o mestre executou o plano, atacou o governador, mas
apenas teve tempo de feri-lo até a chegada dos guardas. Donato conseguiu
escapar.
Enquanto isso, Gregório de Mattos também procurava refugiar-se, seria
perseguido por sua ligação com os conspiradores. Arrumou algumas roupas e
livros em um saco e saiu de casa; vagou pela cidade por algum tempo até chegar
ao dique onde soldados conversavam e abraçavam-se com barregãs enquanto
lavadeiras trabalhavam agachadas à beira da água. Esperou que os soldados se
dispersassem; sentou-se à beira do dique, jogou pedras na água e com um graveto
escreveu na areia: “...pretas carregadas com roupa, de que formam as barrelas.
Não serão as mais belas, mas hão de ser por força as mais lavadas. Eu namorado
desta e aqueloutra, de um a lavar me rende o torcer doutra”. O poeta lembrou-se
de Anica de Melo, uma prostituta com
quem teve um caso. Conheceram-se logo após sua volta de Portugal. “Era uma
rapariga linda, mesmo. Sabia até escrever seu nome. Pena ser de alcouce. E
branca.” Gregório foi ao
encontro de Anica de Melo. Na cama, os dois conversam sobre a vida do poeta.
Rememorações da personagem misturam trechos de informações reais à ficção:
“Como conheceste os
Ravasco?”, perguntou Anica de Melo. “Eu sempre ouvi falar sobre eles, minha
família os conhecia. Um pequeno folheto publicado com sermões de Antônio
Vieira, muitos anos atrás, em castelhano, chegou às minhas mãos. Eu era um
menino sonhador e enchi-me de paixão pelas palavras do jesuíta.”
(...) Mas logo o menino
ficou sabendo que aquela publicação em castelhano fora feita a revelia de Padre
Vieira e continha “tantas imperfeições quanto asneiras” execradas por ele. Gregório de Mattos estudara
com os Jesuítas no Brasil. Recebera instrução humanística e fora aprovado com
louvor. (...) Já tinha mesmo cometido seus primeiros
versos nas sabatinas, para horror e pasmo de seu pai. “Como era teu
pai?”, perguntou Anica de Melo. “Magro, costas recurvadas, olhos tristes.”
(...) “O velho tinha uma luneta, ficava olhando as estrelas. De dia,
quando ele estava no trabalho, eu a usava pra ver as mulheres passando na rua
ou às janelas”, disse acariciando as pernas de Anica de Melo.
Ao entrar para o colégio
dos Jesuítas, Gregório de Mattos já se interessava pelas mulheres. Desde menino
gostava de olhar nos livros imagens femininas: santas, rainhas desenhadas com
benevolência e que sempre pareciam mais belas do que deviam ser, altivas
condessas e até mesmo bruxas condenadas ao Santo Ofício. Na rua o menino ficava
extasiado com as mulheres de carne e osso, com seus rostos e suas formas, alvas
como jasmins, vermelhas, azeitonadas, ou escuras como a lascívia. As meninas
eram lindas, as índias nuas pareciam-lhe deusas pagãs, as escravas lhe sugeriam
estátuas de ferro pronto a incandescer. Sua irmã, um demoniozinho falante tinha
um mistério que Gregório de Matos observava quase com fervor religioso.
Sentia-se atraído por todas as mulheres. Encantava-se com qualquer gesto,
qualquer rufar de saia, detalhes mínimos. Mesmo as feias tinham para ele um
encanto qualquer: uma orelha bem-feita, um par de tornozelos sólidos, unhas
saudáveis, cabelos abundantes, uma boa estrutura óssea, batatas das pernas
grossas, nádegas redondas e fartas, um ar sonhador, timidez, brilho de
inteligência ou um nariz que lembrasse uma jovem da dinastia lágida. Como ele
gostava de dizer: “são feias, mas são mulheres.” “Ah, tu és um demônio”, disse
Anica de Melo. “Não, não, somos bastante diferentes. Demônios sois vós
mulheres.” Disse que lera nos livros serem as mulheres diabos disfarçados,
circes encantadoras, tentações infernais, peçonhentas no coração e na boca,
copuladoras vorazes; que possuir a parte traseira de uma mulher era o mesmo que
fazer pacto com o diabo; as que tinham um rosto de anjo e maior donaire eram as
mais perigosas. O corpo de uma mulher despertava-lhe sentimentos penosos e demorados, algo como
uma queda, um desar, uma febre maligna, um delírio destruidor.
“Mas nos livros
não havia só mulheres ”, lembrou o poeta. Gregório falou sobre sua formação,
sobre a moral jesuíta e o estudo orientado pela Companhia que lhe permitiram
tornar-se um homem letrado. Gregório ainda era um menino. Naquele tempo, os
jesuítas instalavam-se em toda a Colônia, fortificada em igreja e missões,
conquistavam territórios, criavam hospitais e seminários. Na Bahia, não era
diferente e Gregório de Mattos almejava ser um deles, não pelo poder, mas pelo
conhecimento que dominavam.
Quando via um padre jesuíta
na rua era como se estivesse vendo um livro andando. Além disso, naquele tempo Gregório de Mattos
acreditava-se dono de uma grande vocação religiosa. Mas sua passagem pela vida
eclesiástica seria dolorosa e breve. Após algum tempo concluíra que o saber dos
jesuítas era insosso e atrelado a ideias religiosas e políticas. Depois que
dominou a retórica, cansou-se dela e passou a procurar algo diferente. Foi
nesse período que partiu para Portugal.
Numa breve descrição da viagem de Gregório para a Europa e do período em
que viveu na corte, e ingressou na Universidade de Coimbra onde teve contato
com as trovas burlescas, se mantém a estrutura de diálogos entre o poeta e
Anica e trechos narrados. Os trechos narrados recuperam sua trajetória e dão
fluidez ao diálogo dos personagens.
“Tens um bando delas correndo atrás de ti, todos os tipos de mulheres.
Não pensas em casar?” (...) Sou viúvo. Aqui não encontrei nenhuma que me sirva.
A única não me quis.”. Anica de Melo desejava que ele não fizesse
distinção entre as mulheres para fornicar e as mulheres para casar.
Enquanto
isso, Maria Berco preparava a viagem de sua ama para o engenho onde ficaria
escondida. O companheiro de viagem seria o poeta Gregório de Mattos. “Sei bem
que é desembargador, vai tomar ordens sacras, mas tem uma fama... (...) loquaz
sedutor, um letrado que agora está ajoelhado diante da Virgem Maria e em
seguida afundado no colo das meretrizes. O poeta foi ao encontro de dona
Bernardina, conforme havia combinado com Bernardo Ravasco; ele a levaria em
segurança para o engenho. Ao atender a porta, Maria Berco sentiu o coração
acelerado, mas logo tratou de anunciá-lo à sua senhora. Ao saber que o pai
havia sido capturado, a dama logo se recusou a partir; Gregório tentou
acalmá-la, pois Padre Vieira logo tomaria providências; disse também que
Gonçalo Ravasco partiria para relatar ao príncipe os desmandos do governo na
Colônia. Depois declamou poesias. Maria Berco sentia-se atraída pelo poeta.
Ao anoitecer daquele dia, Gonçalo Ravasco e Donato Serotino (o mestre de
esgrima), que estavam refugiados no colégio dos jesuítas, saíram disfarçados de
padres e encapuzados e foram ao encontro de Gregório de Matos, que se escondera
na casa da prostituta Anica de Melo. Gregório contou a Gonçalo que Bernardina
recusara-se a ir para o engenho; ele lamentou e contou ao poeta sobre o ataque
frustrado de Donato ao governador. Além disso, o governador havia se apoderado
dos escritos de Bernardo Ravasco. “Mas o que há de mal nisso? Escritos vão e
vêm. São feitos para o vento e para o fogo”, disse Gregório de Mattos. Gonçalo explicou que o pai ficaria muito
triste em perder os escritos, pois pretendia publicá-los em Portugal ou
Holanda. Depois de recuperar os escritos do pai, Gonçalo partiria para o reino
e iria tentar intervir pessoalmente junto ao príncipe para livrar o pai da
cadeia. O poeta conseguiu credenciais para que Gonçalo se infiltrasse na
reunião de desembargadores no paço, para a qual foram convidados os ministros
do Tribunal e da Relação Eclesiástica. Gonçalo iria disfarçado na comitiva
Eclesiástica.
Enquanto isso, o governador Antônio de Souza, acabara de ouvir as
sátiras de Gregório, que o desembargador Mata havia capturado, dizia: “As
sátiras são inteligentes. Se não fossem contra mim até mesmo teriam me
divertido. Muito me serviria se ele voltasse sua mordacidade contra as pessoas
certas”. O governador alimentava seu ódio contra os Ravasco e seus aliados, mas
principalmente contra Padre Vieira. O governador contou ao arcebispo que
frequentemente sonhava com Vieira. Ele odiava o jesuíta e planejava invadir o
colégio. Gregório de Mattos sabia que, se o arcebispo apoiasse a invasão sua
situação se complicaria, e ele seria afastado da Sé. “Pouco me importa ficar na
Sé. Aquele lugar é um presépio de bestas, se não for uma estrebaria (...) Tinha
os mesmos sentimentos para escrever sobre a mulata, o amor, o muleiro, o
papagaio, o governador, el Rei ou Deus”. O governador invadiu o colégio à
procura dos envolvidos no crime contra o alcaide. Capturaram Antônio de Brito,
João de Couros, Francisco Dias do Amaral, Barros de França, Antônio Rolin,
alguns jesuítas e estudantes. Gonçalo Ravasco escapou, pois no momento da
invasão, ele e Gregório de Mattos estavam na casa da barregã Anica de Melo
planejando sua entrada no palácio para recuperar os escritos de Bernardo
Ravasco.
Na hora da reunião dos desembargadores, Gonçalo compareceu com hábito de
padre e capuz encobrindo o rosto; estava na comitiva do arcebispo. Observava os
desembargadores; aproximou-se de um grupo; conversavam sobre a morte do
alcaide, sobre os salários dos magistrados, decisões chegadas da Coroa e outros
assuntos do mesmo teor. Ele precisava agir rápido ou seria reconhecido e preso.
Tratou de encontrar o cofre onde estavam alguns documentos, entre eles, as
cartas do governador dirigidas às autoridades da Coroa, relatando o crime
contra o alcaide e acusando Padre Vieira de ser o mandante. Além de outros
documentos de teor político, Gonçalo foi surpreendido ao ver, entre a papelada,
escritos de sátiras de Gregório de Mattos sobre o Braço de Prata. No fundo do
cofre, junto a documentos pessoais do governador, encontrou os escritos de
Bernardo Ravasco; contente, o jovem guardou- os dentro da camisa e tratou de
sair dali, seguindo o plano que havia traçado junto ao poeta.
O poeta iria para encontrar Gonçalo e juntos iriam falar com o arcebispo
sobre a invasão do colégio; queria certificar-se de que a notícia da invasão
chegasse corretamente às autoridades religiosas da Europa. Disse à Anica de
Melo que precisavam informar não só sobre o governador, mas também sobre a
situação da Colônia: “E o que vais falar sobre a Colônia? Que de dois efes se
compõe essa cidade, a meu ver: um furtar e o outro foder”.
Gonçalo Ravasco contou ao poeta que o governador guardava suas sátiras
no cofre. “Verdade? Se as leu estou em perigo”. Os dois continuaram ali
conversando e bebendo, enquanto o poeta declamava versos. Viram Maria Berco
passar carregando o marido cego; o poeta lamentou a condição e o destino da
moça. Gonçalo e o poeta caminharam demoradamente até o palácio do arcebispo,
enquanto falavam de Maria Berco e das mulheres:
“Se me deixassem uma noite,
uma noite só, apenas umazinha com essa potranca envernizada, eu dava um jeito
nela”, disse Gregório de Mattos. “As mulheres devem cumprir sua parte.”
“Fornicar, fornicar, dia e noite fornicar.” “Nada disso. Que sejam todas
alegres e recatadas. Não se deve permitir que a mulher se torne uma igual.
Devem ser conservadas sempre a uma discreta distancia, tratadas com severidade,
alimentadas com um regime escasso de carícias temperado com ameaças, de acordo
com o manual de Tiraqueau”. “Sou um escravo das mulheres, sufoco-me de vê-las
passar”. “Mas só lhes permites a volúpia” “E o que mais elas querem? E não é
bem o que dizes, tenho meus amores líricos. Ah! Coração louco, suspirai, dai
vento ao vento! Não vedes que o suspiro diminui o sentimento?”
Gregório gostava de conversar com seu amigo, porque Gonçalo sabia
contestar suas observações, levando o assunto para temas mais leves, ou para a
política, ou para a poesia; no entanto, não se recusava a levar adiante uma
conversa depravada. Gonçalo não é corrompido pela hipocrisia inaciana, pensava
Gregório. Enquanto caminhavam,
Gregório falou mal de Antônio Vieira, dissertou sobre os perigos da
sífilis, que ele mesmo corria, falou da maravilha de Gomorra, da impertinência
da menstruação (contou que havia épocas em que não podia fornicar, pois todas
as mulheres estavam menstruadas ao mesmo tempo numa conspiração universal
contra os homens), da devassidão dos padres; falou de um frei que apelidara de
Foderibus Mulieribus, dos meirinhos mesquinhos, de um capitão toleirão. Nada
escapou, como sempre, à sua verve. E em meio a essas variedades sustentava o
assunto sempre de maneira cáustica e atraente. Não era atoa que tantos homens e
mulheres fossem seus inimigos.
O arcebispo João da Madre de Deus recebeu o poeta e o jovem Gonçalo
Ravasco. "Creio que o ilustríssimo não ignora o vendaval que arrasa a
cidade”, disse o poeta. O arcebispo afirmou que sabia das disputas entre as
facções Menezes e Ravasco. O arcebispo perguntou então, como havia começado a
desavença entre as duas facções.
“O alcaide Francisco Teles
de Menezes, após comprar o cargo, passou a prevaricar e a atacar com sua língua
viperina importantes cidadãos que estranhavam seus excessos, inclusive os
Ravasco. Quando Chegou Antônio de Souza para governar, no ano passado,
sentindo-se protegido o alcaide, iniciou uma campanha de vingança contra seus
opositores. Todos os que tinham ligações com esses homens ficaram ameaçados
pelos Menezes. Os perseguidores foram obrigados a se homiziar, muitos no
colégio dos jesuítas. Na véspera de Natal, padre Vieira visitou o governador numa tentativa de
reconciliação. Antônio de Souza expulsou-o com palavras ofensivas. A briga
prosseguiu pelas ruas. Um jovem sobrinho do alcaide Francisco Teles de Menezes
emboscou os irmãos Antônio e André de Brito pelas bandas do Carmo, na descida
do Pelourinho. De uma casa, o moço e alguns companheiros atiraram de bacamarte
contra os irmãos Brito, quase matando Antônio. Uns covardes. O provedor André
de Brito, vendo o irmão caído no chão, sozinho entrou no valhacouto e pôs em
fuga os agressores, que escaparam saltando a cerca do colégio dos padres. O
resto o ilustríssimo já sabe.”
Os homens lamentaram a situação da Bahia e da Colônia, mas o arcebispo
asseverou que os Ravasco poderiam se defender, pois eram muito influentes. João
da Madre de Deus lembrou também a influência de Padre Vieira em Portugal. O
poeta rebateu falando da inescrupulência dos desembargadores Palma e Gois e da
corrupção no governo com compra de cargos e apadrinhamentos, além da
perseguição e tirania contra seus opositores. O arcebispo afirmou que havia
dito publicamente ao governador que não concordava com a invasão ao colégio e
lembrou o poeta que pouco podia fazer, pois estava a serviço da Igreja e não do
governo. O poeta contou-lhe sobre as acusações contra o Padre Viera deixando o
arcebispo preocupado. O poeta queria que o arcebispo enviasse uma ordem ao
governador para que se retirasse o cerco do colégio e se libertasse todos que
haviam sido presos durante a invasão. O arcebispo disse que iria pensar antes
de tomar qualquer decisão, o que fez com que o poeta insistisse. João da Madre
de Deus dispensou os visitantes e afirmou que não viera para a Colônia para
pelejar, já havia conversado com outros desembargadores e nem todos pensavam
como Gregório. O poeta saiu dali irritado e esbravejando contra o arcebispo e
os padres que o acompanhavam.
No capítulo intitulado “A
vingança”, Antônio de Brito é torturado e acaba entregando os envolvidos.
Entre eles, Bernardo Ravasco. O governador planejava prender alguém da família
Ravasco para forçar a captura de Gonçalo. Antônio de Souza, que buscava a todo
custo proceder à devassa contra os Ravasco, mandou perseguir e interrogar todos
os que tinham ligação com a família.
O governador mandou chamar Bernardina Ravasco, com o intuito de usá-la
para chegar a Gonçalo. Bernardo já estava preso; Maria Berco temia ser presa
por ter penhorado o anel do alcaide, pois o joalheiro havia sido preso com a
joia e entregou Maria. A ordem era prender e torturar Gonçalo e arrancar dele uma
confissão. Braço de Prata mandou que perseguissem também o poeta e
desembargador da Sé, Gregório de Mattos. “Acossa-o. Escorraça-o e, se não
educar a língua, mete-o também na enxovia, degreda-o para Angola, São Tomé,
para qualquer lugar bem longe daqui. Não fará nenhuma falta. Já temos letrados
demais na Colônia, como disse sua Majestade.”
Iniciaram-se os interrogatórios, Bernardo Ravasco foi interrogado por
Antônio Teles, irmão do alcaide morto. Enquanto isso, Dona Bernardina era
interrogada pelo governador, ele prometera que, se Gonçalo se entregasse, o
secretário Bernardo Ravasco seria solto. Bernardina foi ao encontro do padre
Vieira e contou sobre o ocorrido. Irritado, o jesuíta disse que era ele quem
ameaçava o Braço de Prata.
Bernardina enviou Maria Berco para falar com o poeta e avisar da
perseguição contra o irmão. A jovem perguntou sobre Gonçalo e o poeta disse que
não sabia de seu paradeiro. Mesmo que soubesse não diria, ele afirmou, pois
sabia das intenções de Dona Bernardina de entregar o irmão em troca do pai.
Gregório foi ao encontro do amigo e o alertou.
Na manhã seguinte, Maria Berco acordou com fortes batidas na porta de
sua casa, os soldados tinham uma ordem de prisão contra ela. João Berco
esbravejou, mas Maria foi levada para a prisão. Não demorou muito para que
Bernardina Ravasco também fosse levada para a enxovia. Maria estava numa
situação mais complicada, seria enforcada pelo roubo do anel. Luís Bonicho e
Gonçalo Ravasco já haviam partido para
Portugal. Anica de Melo tentava convencer o poeta a fazer o mesmo; há
dias ele se escondia dos soldados do Governador, pois não tinha mais imunidades
nem emprego. Os escritos do secretário Bernardo Ravasco haviam sido entregues
ao judeu Samuel da Fonseca, para que ele os guardasse.
O governador não estava satisfeito, pois nem todos os envolvidos estavam
presos; alguns estavam refugiados e o alcaide havia assassinado Donato
Serotino, o que não ajudava em nada os planos do governador de incriminar os
Ravasco e ainda piorava sua situação. Além disso, o govenador não tinha nenhuma
prova contra a facção oponente.
No capítulo intitulado “A
Devassa” o desembargador Rocha Pita assume as investigações do crime. Faz
alguns interrogatórios, mas não consegue chegar a um desfecho aceitável.
Metido em seu gabinete,
Rocha Pita passara a noite folheando os depoimentos, anotando pontos de
interesse. Relera várias vezes o processo da morte do alcaide-mor, observando
falhas: incoerências, mentiras evidentes, obscuridades e ambiguidades que
permitiriam impressões diversas; frequentemente contradições, sonegações de
indícios, provas duvidosas. Não teria percebido aqueles grosseiros erros o
famoso jurista colonial Palma?
Todos os envolvidos foram libertados por falta de provas. Sabendo dos
benefícios da posição dos Ravasco e sua própria, o poeta Gregório decidiu
interceder por Maria Berco. Após analisar o processo de Maria Berco, foi falar
com Rocha Pita. Gregório de Matos conseguiu inscrever Maria Berco no livro de
fianças e livrá-la da forca. Depois disso, o poeta decidiu procurar o esposo da
jovem, na tentativa de convencê-lo a pagar sua fiança; o marido apenas
concordou em testemunhar a favor da esposa. O poeta procurou então o judeu
Samuel da Fonseca para pedir- lhe os recursos. O poeta não descansou até
conseguir libertar a jovem; depois disso, Maria Berco foi levada para o engenho
de Samuel da Fonseca, no Recôncavo.
No último capítulo do livro, intitulado “A
Queda”, a autora relata a destituição do Braço de Prata do cargo de
Governador e a restituição do cargo de secretário a Bernardo Ravasco. O édito
dizia:
A Antônio de Souza Menezes.
Eu, el rei, vos envio muito saudar. Atendendo aos vossos anos, e aos muitos que
tendes de serviço desta Coroa, parecendo-me que desejais ver-vos fora do
Brasil, para vir descansar ao reino, fui servido nomear ao Marques de Minas que
vos houvesse de ir suceder. De que vos mando avisar para que o tenhais
entendido. Escrita em Lisboa a 9 de março de 1684. Rei.
Contudo, não foram só notícias contra o governador que chegaram da
metrópole. El Rei mandara execuções secretas para o padre Vieira, destituindo-o
de todos os privilégios que não fossem eclesiásticos. O fato é que durante a
sindicância contra o governador, testemunhas falsas depuseram contra a facção
dos Ravasco. O sindicante partiu para Portugal com muitas cartas de aprovação a
Antônio de Souza e a imagem do governador em Portugal era bem diferente da que
se via na Colônia.
Por fim, numa espécie de posfácio,
a autora relata o destino das personagens. Gregório de Mattos permaneceu um
tempo no Recôncavo, esqueceu-se de Maria Berco; durante o governo do Marquês de
Minas, voltou a advogar e casou-se com Maria dos Povos. Após o casamento,
voltou à vida descuidada, teve novas contendas com o poder e foi degredado para
Angola por continuar suas sátiras contra o governo. Um tempo depois retorna ao
Brasil, mas, desta vez, se estabelece em Pernambuco, onde viveu até sua morte,
em 1695.
Após ser libertada, Maria Berco ficara viúva e recebera uma boa herança,
bens ocultados pelo marido avarento até sua morte. Esses recursos lhe
permitiram retornar a Portugal; entretanto, seu fim é trágico, pois embora
tenha recebido muitas propostas de casamento acabara sozinha e condenada por
heresia. Sob suspeita de práticas judaizantes, foi excomungada por dizer a
vizinhos que os judeus no Brasil eram pessoas boas, palavras que “ofendiam
muito as orelhas dos cristãos.”A pena, no
entanto, foi relativamente branda para os padrões inquisitoriais: perdeu todos
os seus bens e foi abjurada com hábito penitencial perpétuo; degredada para São
Tomé por dois anos e proibida de retornar a Portugal, Maria Berco morreu pobre
e sozinha em São Tomé.
Antônio Vieira prosseguiu com seus sermões, envolveu-se em diversas
intrigas contra o governo do Brasil. Já em idade avançada assumiu o cargo de
Visitador Geral das Missões. Defendeu mais de uma vez a liberdade dos índios.
Comunicava-se frequentemente com amigos de Portugal. Morreu em 1697.
Bernardo Ravasco morreu dois dias depois do irmão. Doente, não soube da
morte de Vieira. Dez anos antes de morrer, recebeu, juntamente com o irmão
jesuíta, a sentença sobre a morte do alcaide - foram ambos inocentados.
Bernardo Ravasco deixou numerosa obra poética em português e castelhano.
Antônio de Souza jamais esqueceu o ódio pelos Ravasco.
Anica de Melo continuou na Bahia até o degredo de Gregório de Mattos,
quando partiu para Angola na esperança de reencontrá-lo. Mas sua embarcação
naufragou perto da costa da África, num ataque de corsários holandeses. Anica
morreu a poucas léguas do amado; mas o poeta nunca soube como ocorreu sua
morte. A cidade da Bahia cresceu e modificou-se, continuava a ser cenário de
prazer e pecado, encantando a todos que ali viviam ou visitavam, mas jamais
deixaria de ser a cidade onde viveu o “Boca do inferno.