A RUA DE BAIXO
ANÁLISE DO FILME CABARET
MINEIRO, DE CARLOS ALBERTO PRATES CORREIA VERSÃO REDUZIDA, REVISTA
BALALAICA, 1997
POR MANOEL RANGEL
No final
da década de 70, usufruindo de um clima maior de liberdade, o cinema brasileiro
estava ocupado em apreender o processo de modernização que o país atravessou a
partir do golpe de 64 e refletir sobre ele. Filmes como Black tie (Leon Hirszman, 81) e Bye bye Brasil (Cacá Diegues, 79) inquiriam as
transformações culturais, econômicas e políticas ocorridas.
Cabaret
Mineiro, de Carlos Alberto Prates Correia, com suas marcas
fortemente regionais, seu tom memorialístico e a aparente desordem
temporal/narrativa, opera na mesma direção realizando uma viagem pelo
imaginário coletivo de Minas e em certo sentido do Brasil. Nele estão, a seu
modo, os sinais da modernização, as ideias que povoaram o país e uma clara
opção diante das opções ocorridas.
Paixão no Cabaret
Mineiro
Em uma
pequena cidade do interior vemos um muro de um casarão antigo, uma casa com uma
grande árvore ao centro e, logo após, Paixão passeando por uma rua em que as
portas das casas estão abertas. No armazém, o proprietário faz a sesta deitado
em uma mesa, tira a dentadura e arranha uma rapadura que está pendurada por um cordão
ao alcance de suas mãos. A câmera demora em cada gesto, como se eles fossem
vistos após muito tempo. Paixão, apresentado como um viajante, convida Tôni
para um pôquer em Montes Claros. Tôni anuncia que perdeu até as calças na noite
anterior, pretexto para que Paixão insista e diga que também passa por uma maré
de azar.
A partir daí
segue-se o itinerário de Paixão por Minas Gerais, composto de cinco grandes
blocos. O primeiro é marcado pelo contraponto com Thomaz, o americano, e ocorre
em Montes Claros. No geral as situações têm muito de exterior a Minas. Nelas
acontecem os diálogos fundamentais para a compreensão do momento que se vive e
das circunstâncias que presidem a história do país/estado, e o próprio filme. É
forte a presença do imaginário do cinema americano: o faroeste, os safáris, os
índios, o zorro. No segundo, Paixão purga seu afastamento de Minas. Transcorre
aqui o convívio com Tôni e com situações mais próximas das pequenas cidades do
interior, quando o viajante trava contato com as utopias da década de 60. No
terceiro bloco Paixão encontra a dançarina espanhola. A referência aos homens
de esquerda é direta no anúncio do soldado cubano: “Perdi-a porque acredito na
utopia”. A dançarina o convida a fugir pra Grão Mogol, para o seu sítio, o
Paraíso de Avana. Minas vai se tornando mais presente com um suceder de planos
que a caracterizam e com a vida da fazenda. No quarto, Paixão vive com Maruja,
com quem dança as músicas locais e faz amor. Pela primeira vez há afetividade
em suas relações com uma mulher. Aí ele liquida a morena da zona, fantasiada de
onça, e a imagem de Thomaz, com quem de certa forma manteve compromisso.
No quinto bloco assistimos, nós e Paixão com sua luneta, à representação da
Minas do sertão. Assistimos à Marujada e vemos desenrolar o dramaSorôco, sua
mãe, sua filha de Guimarães Rosa.
Não há
cronologia em suas representações. As várias situações são desencadeadas, como
nos sonhos, por pequenos elementos contidos em situações anteriores. Seus fios
condutores são o inventário das ideias que tomaram o país ao longo das décadas
e a gradual submersão de Paixão na Minas Gerais mitológica, como se fosse um
roteiro de fuga. Um retorno que pressupõe ajuste de contas com cada movimento
feito no passado, para que se possa entender ao fim sua opção.
O memorialismo mineiro
Minas
Gerais desenvolveu ao longo de sua formação uma forte tradição memorialística.
Boa parte de sua literatura, ao narrar as singularidades, ocupou-se em contar a
vida nas pequenas cidades do estado, a vida na fazenda, a herança da mineração,
os feitos gloriosos do passado.
A obra desses
memorialistas realiza uma apreensão toda particular do tempo, tendendo em suas
exposições ao rompimento da linearidade. Nela despontam reflexões sobre o
gênero e incorpora-se a linguagem poética. Há ainda uma “tentativa
de rastrear as origens e afastar os componentes espúrios” ao lado da tendência de conceber a identidade cultural brasileira
a partir de Minas, “como se fosse natural passar por aí para
pensar o conjunto.”(Maria Arminda do Nascimento Arruda)
Cabaret Mineiro filia-se a essa tradição
memorialística não apenas pelo esforço da exaltação de Minas, mas pela
linguagem poética, o rastreamento dos componentes espúrios, o esforço de
universalização da condição mineira e, sobretudo, o rompimento da linearidade
temporal e narrativa.
A mineiridade
Ao longo
dos anos foram sendo processados os fatores que tornaram os mineiros, a seus
olhos e aos dos outros brasileiros, singulares. Tal construção mítica não
esteve infensa às necessidades políticas e econômicas de suas elites, mas
ganhou lugar no imaginário do povo e passou inclusive a constituir modelo,
referencial ideológico para as novas gerações.
A
construção mítica ocupou-se dos mais diversos fatores. Desde as características
físicas dos mineiros até sua caracterização social e psicológica.
Com a
Inconfidência e o mártir Tiradentes, Minas ganhou o status de berço da
brasilidade. Tomou a si a responsabilidade de guardar a unidade nacional com a
desenvoltura que guardou a unidade do estado, tão diverso.
Cabaret
Mineiro opera submerso na mitologia da
mineiridade. Não esconde essa condição e a utiliza para conferir maior
concretude ao discurso que realiza: a visita a Minas Gerais constitui um
retorno para verificar o que a passagem do tempo fez a si, à sua terra e ao
país, mas sobretudo à procura de valores que ficaram intocados.
Os traços
mitológicos despontam por todo o filme. Paixão e Maruja, tal Quixote e
Dulcinéia. Paixão e Tôni, qual Quixote e Sancho Pança. A dançarina espanhola,
mulata, remetendo ao objeto de desejo e perdição da Minas setecentista. O
discurso de Thomaz “aos irmãos nascidos no berçário da Independência”, tomando
nota de pontos nevrálgicos da história de Minas Gerais, como a Inconfidência e
as bandeiras. A cultura popular, os vilarejos do interior, a fazenda mineira,
local da comunhão de Paixão com a mineiridade.
As fontes literárias
Em sua
apropriação do mito, Prates Correia buscou referências na literatura mineira.
Recorrer a elas foi um meio de legitimar a sua própria leitura do mito e
usufruir da atualização e reinvenção que os escritores levaram a cabo.
Não por acaso as
referências diretas de Cabaret Mineiro são Carlos Drummond de Andrade, de quem toma emprestado o nome do
filme e a letra de uma das músicas, e João Guimarães Rosa, cuja representação
de Sorôco, sua mãe, sua filha o encerra significando a comunhão com a Minas mais profunda.
Em Sorôco o diretor encontrou a representação da Minas dos Campos Geraes e
do Sertão, que o tempo esqueceu e preservou como espaço de reencontro dos que
se perderam. É no universo de Rosa que Paixão reencontrará por completo Minas
Gerais.
As fontes fílmicas
Os
procedimentos de Cabaret Mineiro – quebra da temporalidade, ausência de personagens, ênfase em
situações, descompromisso com a narrativa – devem muito aos avanços
empreendidos pelo cinema moderno.
O filme
dialoga com a melhor tradição do cinema brasileiro. Comunga com o Cinema Novo
uma certa forma de olhar a cultura popular, que realça sua importância e sua
qualidade definidora da nacionalidade.
Tem ainda
forte aproximação com Ganga Bruta (Humberto Mauro, 1933) na sequência de sedução da Maruja por
Paixão na fazenda. Estão lá o entrelaçamento entre o ambiente de trabalho e a
sedução, o fogo, a panela fervendo e a montagem que, sem mostrar o desfecho,
demonstra toda a força do encontro.
Diálogo
explícito é o que Prates Correia mantém com o seu próprio cinema. Cabaret Mineiro reproduz a sequência de Perdida (1975) em que o caminhoneiro
Júlio diz pra Janete que vai levá-la para a zona. Mas sua reprodução torna uma
cena dramática, no primeiro filme, cômica em Cabaret. O diretor investe contra
as ideias que permeiam seu filme anterior, como se elas não servissem mais no
presente.
Perdida, tendo por pano de fundo a
chegada do desenvolvimento ao norte de Minas, conta a trajetória de Janete,
filha de lavradores pobres. Expulsa da casa em que trabalhava como doméstica,
essa moça conhece o caminhoneiro Júlio, que mantém relações sexuais com ela,
depois a conduz para uma casa de prostituição e some. Janete visita os pais com
Zeca de Oliva, um poeta que lhe propõe casamento e mudança para a roça onde
eles moram. Ela recusa a opção de retorno à miséria mas, com a morte de Zeca,
resolve trabalhar numa fábrica da região e é reconhecida por uma operária que
lhe atira na cara: melhor seria continuar onde estava. No final, Júlio chega de
viagem e a reencontra na cidade. Manda que ela volte para a zona. Janete, no
entanto, parte para Belo Horizonte a fim de reorganizar sua vida, longe de tudo
e de todos.
Em Perdida a trajetória de Janete vai do
reconhecimento da sua condição miserável em Rio Verde para a aposta num futuro
melhor na indústria e na cidade grande. Aí as pequenas cidades do norte de
Minas, de vida centrada na lavoura, atrasadas, não possuem nenhum charme,
representam a morte e a impossibilidade de trabalhar. As situações do filme são
de perversidade do núcleo familiar, de cafajestismo nas relações amorosas e de
interesse nas relações pessoais. A exceção corre por conta do poeta, um
destrambelhado, e de Janete.
Exemplar da visão
do filme é o que diz Janete ao poeta quando este lhe propõe casamento e mudança
para a roça: “Então você acha que eu posso levar a sério quem diz que vai
me levar pra aquele fim de mundo? Você não sabe de nada, Zeca, tá
pensando que eu sou doida?”
Cabaret Mineiro em tudo é oposto. Nele não
apenas a representação recusa a narrativa linear que conduz Perdida, mas a trajetória da
personagem central é diversa. Paixão aparenta ser um viajante, conhecedor do
mundo. Aos poucos empreende um retorno ao imaginário mineiro composto pela
exaltação da lentidão do tempo, das características naturais do estado, do
elogio da vida nas pequenas cidades, do convívio generoso. No núcleo desse
retorno está a vida rural de Minas e as ricas manifestações de seu folclore. Ao
fim, Paixão vincula-se indissoluvelmente ao imaginário mineiro, terminando em
uma pequena cidade, solidário aos dramas de sua gente.
A forma
encontrada pelo cineasta para conciliar visões tão opostas foi reapresentar
parte do universo de Perdida em Cabaret Mineiro, ironizando-o como uma alternativa ingênua, e inventariar as
ideias que habitaram o país naqueles anos, tudo à maneira
dele.
No entanto,
na leitura dos seus filmes, estão representadas duas opções diferentes diante
de um mesmo movimento: a modernização do país. E mais, revelando que visão
acabou predominando, Cabaret Mineiro está imerso no imaginário mineiro, diferentemente de Perdida, que
apesar de ambientado em Minas, é a representação de uma história que se repete
igual em inúmeras localidades atrasadas do país.
Cabaret Mineiro se
revela
Duas
grandes linhas percorrem a obra de Prates Correia: um inventário das ideias e
utopias, e um roteiro de fuga. Nelas, Minas, apesar de cenário, modelo e
substância, é sobretudo parâmetro de processos mais amplos que atingem o país.
Seu filme é uma tentativa de análise e resposta a um fenômeno nacional.
Fenômeno ao qual seus conterrâneos, seus colegas de trabalho e ele próprio
estão submetidos e com o qual são obrigados a lidar cotidianamente.
Inventário das ideias e
utopias
A grande
linha que o percorre é o inventário das ideias e utopias que habitaram o país.
Elas despontam, sem grandes preocupações sociológicas, nos hábitos, no
discurso, no resultado das ações e principalmente por meio de pequenos símbolos
usados inteligentemente.
Passada a
abertura, assistimos desfilar um conjunto de símbolos exteriores ao ambiente
nacional. Sedução num vagão-restaurante de um trem, um avião pousando em um
imenso descampado trazendo mulheres, um enorme carro aberto seguido por um
homem montado a cavalo, um homem loiro vestido de vaqueiro com uma raquete e
uma bola de tênis na mão, uma bandeira dos Estados Unidos. As palavras do
vaqueiro anunciam o fim de um tempo e a chegada de um novo: “Silêncio que o
tempo da discórdia está vencido! A disputa inconsequente, que exaltou os ânimos
em dias passados, deu lugar a uma solidariedade nova...”
O discurso de
Thomaz remete a muitos momentos da história do país. “Tempo da discórdia” em
que o Brasil criou a Petrobras, estatizou a Light e outras multinacionais.
Tempo de namoro em que entrou muito dinheiro externo para financiar o milagre
econômico. Remete ainda à divisão de trabalho proposta pelos países do primeiro
mundo, reservando aos países subdesenvolvidos a condição de fornecedores
de matéria prima, agricultores, pecuaristas. Dá ainda uma estocada em valores
simbólicos da nacionalidade, como a referência à luta pela Independência, às
bandeiras que rasgaram o país em busca do ouro e às gentes do cerrado e do
sertão, antes de tudo uns fortes.
Paixão, que o
escutava tomando whisky, sai sem comentários, apenas alguma irritação. Em seu
quarto após a sesta, começamos a ouvir barulho de trem e ver a cena em que ele
é seduzido por Tamara Taxman. A montagem insinua que Thomaz também busca
seduzi-lo. E a impressão é reforçada pela sequência seguinte, quando o
americano lança para ele olhares cúpidos, depois de beijado por uma mulher, e
Louise Cardoso, de biquíni, ostentando uma garrafa de coca-cola, pisca, e um
homem de óculos escuros é lambido no bíceps por duas mulatas nuas.
Adiante
ouvimos a voz off de Paixão, enquanto o vemos e a Thomaz, sentados em
poltronas, cruzando e descruzando as pernas. Paixão, calçando sandálias de
couro, está irritado porque Thomaz, calçando tênis, cruza as pernas como ele.
Paixão lhe diz: “Mr. Thomas Caps (Thomaz Capiau), as máquinas que perfuram
nossa terra fazem a riqueza da Inglaterra, de seus filhos e irmãos”. Ao que
Thomaz responde: “As máquinas e toda a sapiência vão tragar a indolência e
transformar esse povo , em rico povo, generoso fornecedor de cereais. Quem
duvida?”
Novamente o
discurso de Thomaz revela dois conceitos caros ao país. O primeiro, uma crença
cega no progresso, a modernização a todo custo. A modernização são as máquinas
e o saber. O segundo, um preconceito que vem dos tempos dos viajantes, que vê o
brasileiro como um povo que cultiva o ócio e o ganho fácil.
Em outro momento,
após deixar os domínios de Thomaz, vamos encontrar Paixão
na areia, largado. Vemos uma jovem
tirando fotos com uma Laika. Quando desperta, ele vê a jovem nua, fazendo ioga.
Do seu lado, uma garrafa de cachaça, onde lemos “Havana” e “Santiago”. Ela
pergunta se ele tem cigarros e ele responde que tem charutos. Saltamos à frente
e vemos Paixão no cabaré assistindo ao show da dançarina espanhola. Ao lado do
palco está Tavinho Moura com um charuto na boca, roupa de soldado e um boné
verde com uma estrela vermelha. Terminado o show, Paixão dirige-se com flores
para o camarim da dançarina espanhola e vê sair o soldado, que lhe diz: -
Perdi-a porque acredito na utopia.
São poucos os
sinais, mas inequívocos. Nas duas sequências temos alusões a Cuba, tornada a
principal referência das esquerdas latino-americanas na década de 60. Símbolo
da possibilidade de enfrentar o vizinho norte-americano e ser independente.
Símbolo da utopia. No filme são apenas traços, bem menos presentes do que as
alusões aos EUA e ao nacionalismo. No entanto, também no cenário do país sua
penetração foi menor. Paixão, ladeado por esses símbolos, demonstra não ter por
eles grande envolvimento. Assiste patético ao soldado dizer que perdeu a
dançarina porque acredita na utopia, no socialismo, e ganha sua namorada
seguindo com ela para o Paraíso de Avana, lugar onde conhece Maruja.
Ao fim, após
“casar-se” com Maruja, Paixão parte abençoado pela dançarina espanhola. O casal
participa de uma roda de dança no vilarejo, namora em uma ruína e dá vazão ao
amor. Em meio ao enleio surge uma mulher-onça, que Paixão abate com um tiro. Ao
tirar a sua máscara, ele ouve seu sussurro, Thomas. Surge na tela o último plano que vimos do texano e Paixão,
livre, parte para um lugar de onde vê a confluência do Sorôco com a Marujada.
Nessas sequências
a gênese da marujada surge com força. Paixão incorpora sua origem e de homem do
mundo transmuda-se em mineiro. O filme adentra o território da década de 60, em
que ganhou força a necessidade de descobrir o país, expô-lo e comungar dos
referenciais da gente simples. O diretor parece ter encontrado as ideias a que
ele aceita entregar-se. No fundo, mais que ideias, à voz profunda do passado,
da lenta construção de um povo e de sua cultura.
Um roteiro de fuga
Os anos
que precedem a realização de Cabaret Mineiro são controversos. O regime
militar teve êxito em interromper o processo de acumulação de forças, que
tornava possível pensar em um programa de desenvolvimento soberano para o
Brasil. Em seu lugar adotou um programa de modernização conservadora. Realizou
importação maciça de capitais, investiu pesadamente em infraestrutura, completou
a industrialização do país, cuidou de integrar as várias regiões, mudou a face
do país.
O cinema aos
poucos desperta, ainda que parcialmente, para o processo em curso e vai
percebendo os resultados desses “modernos”. A questão que mais preocupa é a
perda da identidade nacional. Há também reflexões sobre as mudanças na
consciência dos homens após tanto tempo de arbítrio. Filmes como Eles não usam black tie e Bye bye Brasil são ilustrativos do esforço.
Cabaret
Mineiro constitui um roteiro de fuga
para o cenário crítico que se estabeleceu. Aceita a premissa de que o país
realmente se modernizou e que o ocupante chegou para ficar.
Mas sua
personagem, apesar das relações cordiais com esse universo, pouco a pouco passa
a não admitir que ele substitua o seu próprio universo original e segue
recolhendo os instrumentos de resistência. A personagem não trilha o roteiro de
forma consciente. Reage. Desobstrui lentamente e desordenadamente os “grandes
rios que são profundos como a alma do homem”. No seu retorno à Minas mais
profunda, Paixão livra-se de toda e qualquer influência que possa ser externa a
esse ambiente e não apenas do imaginário norte-americano.
Há momentos
bastante característicos do retorno. O primeiro, que já fornece a pista de sua
aventura, é o texto over que ele fala enquanto cruza as
pernas, após o discurso de Thomaz, onde ressalta a permanência da “rua de baixo
como era, simples e bonita como sempre foi,... da rua de baixo (que) repele
todo esse modernismo idiota...”
Mais à
frente, depois que discute a exploração do país, ele come um fruto do cerrado
e, ao invés de deleitar-se com as mulheres da casa de jogos ofertadas pelo
texano, devaneia com uma parada de carro na estrada para mijar, quando duas
“januarinas, de ancas largas, barranqueiras” surgem, pegam no pau dele e
solicitam “a fineza da fodança”. A câmera, antes concentrada em seus
rostos, sobe e faz uma panorâmica, associando o êxtase à paisagem dos campos
gerais.
Paixão parte então dos domínios de
Thomaz para a cidade de Tôni. No novo ambiente a contaminação externa é menor.
Ouvimos músicas folclóricas e assistimos a devaneios de cidade pequena. No
encontro com a moça da máquina fotográfica, hospedados na mesma pensão, os dois
compartilham brincadeiras. A moça entedia-se, ouvimos rapidamente um yesda sua parte e ele canta uma música bestialógica (“Vamos dançar
tudo nu / tudo com dedo no cu...”). Assistimos em seguida a duas sequências em
que a ideia do retorno é reforçada.
Na primeira,
Paixão está sentado sobre o carrinho, com Tôni e a Fortuna atrás de si. A
câmera pega os três de perfil, mostrando ao fundo as portas abertas dos
armazéns e das casas da cidade, como na sequência de abertura. Paixão sofre,
ouvimos “Lady Laura” de Roberto Carlos e mais uma vez a música confere sentido
ao filme: “Tenho às vezes vontade de ser novamente um menino / E na hora do meu
desespero gritar por você / Te pedir que me abrace e me leve de volta pra
casa...”
Na segunda,
de noite, uma mulher é assada na fogueira. A música, um cântico das procissões
católicas, fala de uma “intangível procissão”, da “espiritualidade” e da
“alvorada” tranquila dos que “ficam de vigília a noite inteira”. Percebemos que
a mulher assada é a moça da máquina fotográfica. Paixão, antropofagicamente, no
melhor Oswald de Andrade, a devora com prazer. Raia o sol e mais uma vez ele
escapa dos domínios alheios.
O outro
momento importante do “roteiro de fuga”, e que precede o desfecho já conhecido,
desenrola-se no Paraíso de Avana. Paixão já está imerso nos campos gerais. Os
elementos externos resumem-se à dançarina espanhola e a uma televisão. Na TV,
ele assiste ao jogo Argentina e Peru, pela Copa do Mundo de 78, acompanhado da
dançarina, de Maruja e de habitantes da região. O ambiente é de patriotismo e
de sedução. Troca de olhares de Paixão e Maruja, interceptados pela dançarina.
Semblantes anuviados diante do resultado do jogo. Depois, Paixão discursa sobre
três jogos: o de futebol, o da sedução e o que move o filme. No texto,
reflexões sobre a luta em condições adversas orientada pela “certeza de um
triunfo incontestável” e sobre a ajuda dos fracos, em nome dos quais age.
Pronunciado o
discurso, desenrola-se a sequência de sedução, que tem seu desenlace
acompanhado pela dançarina espanhola. Esta, canta nos primeiros momentos o
anúncio de suas vinganças terríveis. Depois, consente e libera o amante.
O novo casal
parte do Paraíso de Avana, Paixão liquida Thomaz encarnado na onça e mergulha
em Minas.
O que faz
acreditar num roteiro de fuga diante da crise de identidade nacional que o
cineasta percebe é a insistência com que, mesmo com muita leveza e nonsense, irrompem as situações de recusa ao que é estrangeiro, com a
contraposição do nacional, aqui o rico imaginário mineiro.
O diretor
parece acreditar que o antídoto para a conjuntura adversa é o retorno ao que há
de mais primitivo no país. Confia no mito como bloqueio da descaracterização
que o modelo de desenvolvimento promove. Confia desconfiando, bem mineiro. Mas
ao longo do percurso, confrontado com a necessidade de posicionar-se, opta por
“manter os sentimentos elevados” qual “flores do campo” e “trilhar o caminho da
esperança”.
No entanto, a
Minas que deseja precisa despir-se da hipocrisia dos falsos valores. Precisa
perder o recato e a sisudez. O mitológico, o profundamente mineiro, coaduna-se
bem com o bom humor. Retornar ao mito não pode significar abrir mão do que a
ele se incorporou pela pena dos seus escritores, por meio das “bandeiras” e do
sonho de cada um.
Há ainda a
necessidade de não transigir com o estrangeiro. Ele se impregna. Ocupa
sorrateiramente corações e mentes. Confunde objetivos, obscurece a vista,
liquida as origens.
Coerência da construção
fílmica
Cabaret
Mineiro mantém perfeito entrosamento
entre suas partes. O roteiro, a trilha sonora e sobretudo a montagem do filme,
asseguram-lhe a possibilidade de percorrer caminho tão complexo e tão
controverso com muita leveza. Sua construção serve às ideias do diretor. Onde
não há compromisso com alternativas reais, uma forma descompromissada de
proceder a exposição das ideias. Onde não há certezas absolutas, uma exposição
desprovida de causa e consequência.
Cabaret consegue equilibrar-se entre as vertentes históricas do cinema a
que recorreu e a obra de mestres como Drummond e Guimarães Rosa. Melhor,
consegue combinar todo esse reino ilustrado com o popularesco, o bestialógico e
a mais legítima cultura popular.
O filme é de
um lado circunspecto e compenetrado. E de outro, corrosivo e irreverente.
Ainda que ele
seja despojado das pretensões de projeto coletivo, Prates Correia não deixa, em
certa passagem, de convocar os amigos e colegas de trabalho a virarem o rosto
para o pedaço de Brasil que lhes pertence: Minas Gerais. E conclui seu filme
com o que decidiu e talvez gostasse de dizer sobre toda a sua turma:
“A gente
agora estava levando ele pra casa, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde
ia aquela cantiga.”