11 de nov. de 2018

RESUMO DO ENREDO DE “BOCA DO INFERNO”, DE ANA MIRANDA


RESUMO DO ENREDO DE “BOCA DO INFERNO”, DE ANA MIRANDA

Boca do Inferno foi o primeiro romance histórico de Ana Miranda, cuja trama se passa na Bahia no século XVII. No primeiro capítulo, “A Cidade”, a autora apresenta a cidade da Bahia, seus habitantes e seus costumes, dando um panorama do cotidiano do lugar. “Numa suave região cortada por rios límpidos, de céu sempre azul, terras férteis, florestas de árvores frondosas, a cidade parecia ser a imagem do Paraíso. Era, no entanto, onde os demônios aliciavam almas para povoar o inferno.”.  Essa descrição da cidade anuncia o contexto turbulento, corrupto e ambíguo que configurava a Colônia. Um caldeirão de interesses, culturas, vivências e aparências. “Não havia grandes assaltantes na Bahia, diziam, mas quase todos furtavam um pouquinho”.  Becos e vielas tortuosas cobertas de lixo em contraste com a natureza exuberante. Para o leitor, é como se o retrato da cidade se configurasse numa metáfora de seus habitantes. No texto, é Gregório de Mattos quem observa a cidade para assim descrevê-la:
Ah, aquela desgraçada cidade, notável desventura de um povo néscio e sandeu. (...) Sofria  ao ver os maus modos de obrar da governança, porém reconhecia que não apenas aos governantes, mas a toda a cidade o demo se expunha. Não era difícil assinalar os vícios em que alguns moradores se depravavam. Pegou sua pena e começou a anotar. O fidalgo do solar ao lado tinha vergonha de pedir dinheiro emprestado e preferia furtar para manter a aparência honrada. (...) um mercador avarento, tirava duzentos por cento no que comprava e no que vendia.
Morrera num assalto e deixara uma viúva. Porém, apesar dos grandes lucros, o mercador  dissipara todo seu dinheiro com mulheres de alcouce e deixara a viúva sem um vintém e com a casa empenhada. A mulher recebia a fradalhada que ali ia para manter a honra da casa. E ela gemia, gritava e ardia em brasa. Ele mesmo o poeta esperava sua vez de aproximar-se da viúva, apesar de não ter grande gratidão pela branca e seus doces objetos. Mas uma mulher era sempre uma mulher. Um dos padres que visitava a viúva era o abade do convento. Dele se dizia que roubava as rendas da instituição para acudir ao sustento das prostitutas; para manter sua honra, livrava-se das suspeitas subornando com as rendas roubadas.
O segundo capítulo, “O Crime”, é dedicado ao episódio do assassinato do alcaide-mor Francisco Teles de Menezes, que pertencia à facção política do governador Antônio de Souza Menezes, também conhecido como “Braço de prata”. Pela manhã, como de costume, ao sair da casa da prostituta Cipriana, Teles de Menezes se viu encurralado por oito homens encapuzados, que após se livrarem de sua escolta cercaram a liteira do alcaide; um deles era Antônio de Brito, a quem Teles de Menezes há pouco tempo tentara matar. Teles atirou contra Antônio de Brito acertando-lhe o ombro; um dos conspiradores decepou-lhe a mão direita com um golpe de alfanje. Ele tentou reagir, mas antes que pudesse, teve a garganta cortada. Antônio de Brito foi quem deferiu o golpe. Os conspiradores fugiram levando a mão decepada do alcaide enquanto ele ainda agonizava.
Logo que o governador foi comunicado sobre o atentado pediu detalhes sobre o crime, mas só sabiam dizer que Antônio de Brito estava entre os conspiradores. Sabia-se também que todos estavam refugiados no colégio dos jesuítas. O governador pensou logo que a conspiração havia sido arquitetada por seus inimigos políticos - os Vieira Ravasco - liderada pelo secretário de Estado Bernardo Vieira Ravasco, irmão do Padre Antônio Vieira e amigo de Gregório de Mattos. Estavam envolvidos no crime também o filho de Bernardo Ravasco, Gonçalo, que já estava  refugiado no colégio por conta de uma ordem de degredo, e Moura Rolim, primo de Gregório de Mattos.
Esse é o capítulo mais extenso do livro e conforme vai se especulando sobre o crime, outras personagens vão aparecendo. Bernardo Ravasco tinha também uma filha, a jovem Bernardina Ravasco, que ficara viúva muito cedo e tinha saúde frágil. Maria Berco era sua dama de companhia. A criada era uma mulher simples e pobre, casada com um homem velho, cego e avarento. João Berco a havia tirado da Misericórdia e, apesar da brutalidade do esposo, a jovem sentia-se grata por ter sido escolhida entre as órfãs. “Foste abandonada pelo teu pai. Eu te comprei no orfanato. Em troca de milho e de refugo. Eras magra como uma ratazana faminta. Aqui pelo menos tens a mim que te dou abrigo. (...) Pelo menos aqui não sofres tormentos”.85 Seu marido era um homem frágil que aspirava cuidados. Maria trabalhava, esperando o dia em que ele morresse e assim sobrasse a ela alguns tostões para comprar um lugar na frota para Lisboa.
O governador iniciou uma perseguição aos conspiradores. Não descansaria até prendê-los, pois a falta do alcaide desestruturava seu governo e ameaçava a sustentação política e econômica que Teles de Menezes e os desembargadores Palma e Gois exerciam na Colônia. Os conspiradores liderados por Bernardo Ravasco trataram de se precaver e proteger suas famílias. Bernardo Ravasco encarregou-se de dar fim à mais nítida prova do crime, a mão decepada da vítima.
A criada dos Ravasco, Maria Berco, recebeu a missão de ocultar a prova do crime. “Dá um fim nisto. Mas não sejas curiosa como uma coruja ou um gato. Apenas joga isto, esta noite, num lugar onde ninguém jamais possa encontrar. Depois vai ter comigo na Igreja do colégio para dar notícia do sucesso.” Enquanto a polícia fazia ronda procurando os conspiradores, Maria Berco caminhava pelas ruas escuras buscando um lugar seguro para livrar-se da trouxa. Mas a curiosidade a perseguia. Ao ver do que se tratava, sentiu-se ainda mais insegura. Jogou a mão do alcaide no lixo. Em seguida, arrependeu-se; pegou-a de volta e perambulou por mais algum tempo até chegar à praia; estava decidida a jogar o pacote na água; pagou um barqueiro por uma volta. O marinheiro a observava e logo pensou no conteúdo do pacote que a moça segurava contra o peito. Seria um feto? Era comum carregar moças pra que abandonassem fetos e crianças mortas no mar. Logo descartou a possibilidade, pois Maria não aparentava ser aborteira; mas a maneira como agia sugeria algo errado. Tomou o pacote das mãos da jovem. Examinou a mão fétida e se surpreendeu com o belo anel e seu dedo; retirou o anel de esmeralda que se encontrava no dedo anular e jogou a mão na água. Maria insistiu para que ele jogasse a joia no mar; voltaram para a praia e ao chegar perto da margem avistaram-se alguns soldados. Preocupado com a abordagem, o marujo entregou o anel para Maria. Mandou que o escondesse, ameaçando-a para que ela não fugisse. Os soldados os interpelaram com tom ameaçador; prenderam Maria e o marujo. A jovem passou a noite na cadeia. Pela manhã, um oficial veio a seu encontro; deu-lhe alguns conselhos; acreditava que se tratava de uma prostituta; mandou-a embora. Maria lembrou-se do encontro com Bernardo Ravasco e correu para encontrar seu senhor. Quando chegou à igreja, foi informada de que o secretário havia partido. A jovem logo pensou no anel que carregava consigo: o que fazer com ele? Ajoelhou-se e rezou; saiu da igreja e vagou pelas ruas durante um tempo; pensou no marido, na corte, nos nobres e ao olhar para seus pés sujos de lama pensou na pobreza. Depois de muito vagar e pensar parou na casa do joalheiro; hesitou por alguns instantes e depois entrou; muitos ali penhoravam joias, relógios, panos de damasco. Maria logo foi atendida. O homem perguntou-lhe: vender ou penhorar? Maria disse: “penhorar”. Analisou a pedra e ofereceu um preço irrisório; Maria aceitou sem reclamar. Após receber o dinheiro, saiu dali apressada, sem conferir o valor. Entrou numa taberna, pediu um pastel; o taberneiro ofereceu-lhe outros produtos. Maria acabou comprando meias de seda, sapatos, roupas, um chapéu para o marido, tabaco e outras ninharias. Ao chegar em casa com tantas mercadorias e a ainda uma quantia em dinheiro muito além do que se pagaria a uma criada, o homem perguntou: “Roubaste? Tens um amante?” A jovem irritada respondeu que nunca seria meretriz; pensou em contar-lhe a história do anel, mas sentiu vergonha, decidiu não revelar nada. Era questão de tempo e todos esqueceriam a morte do alcaide. Então, resgataria o anel e o devolveria a Bernardo Ravasco, pensou. João Berco continuou esbravejando enquanto Maria recolhia as moedas que o marido acabara de contar.
O tempo passava e o assassinato do alcaide ia sendo desvendado. O vereador Luís Bonicho e o mestre de esgrima Donato Serotino (também aliados ao grupo que atacou o alcaide) planejaram um ataque ao governador Antônio de Souza durante sua aula de esgrima; o mestre executou o plano, atacou o governador, mas apenas teve tempo de feri-lo até a chegada dos guardas. Donato conseguiu escapar.
Enquanto isso, Gregório de Mattos também procurava refugiar-se, seria perseguido por sua ligação com os conspiradores. Arrumou algumas roupas e livros em um saco e saiu de casa; vagou pela cidade por algum tempo até chegar ao dique onde soldados conversavam e abraçavam-se com barregãs enquanto lavadeiras trabalhavam agachadas à beira da água. Esperou que os soldados se dispersassem; sentou-se à beira do dique, jogou pedras na água e com um graveto escreveu na areia: “...pretas carregadas com roupa, de que formam as barrelas. Não serão as mais belas, mas hão de ser por força as mais lavadas. Eu namorado desta e aqueloutra, de um a lavar me rende o torcer doutra”. O poeta lembrou-se de Anica de Melo, uma prostituta com quem teve um caso. Conheceram-se logo após sua volta de Portugal. “Era uma rapariga linda, mesmo. Sabia até escrever seu nome. Pena ser de alcouce. E branca.”  Gregório foi ao encontro de Anica de Melo. Na cama, os dois conversam sobre a vida do poeta. Rememorações da personagem misturam trechos de informações reais à ficção:
“Como conheceste os Ravasco?”, perguntou Anica de Melo. “Eu sempre ouvi falar sobre eles, minha família os conhecia. Um pequeno folheto publicado com sermões de Antônio Vieira, muitos anos atrás, em castelhano, chegou às minhas mãos. Eu era um menino sonhador e enchi-me de paixão pelas palavras do jesuíta.”
(...) Mas logo o menino ficou sabendo que aquela publicação em castelhano fora feita a revelia de Padre Vieira e continha “tantas imperfeições quanto asneiras” execradas por ele. Gregório de Mattos estudara com os Jesuítas no Brasil. Recebera instrução humanística e fora aprovado com louvor. (...) Já tinha mesmo cometido seus primeiros
versos nas sabatinas, para horror e pasmo de seu pai. “Como era teu pai?”, perguntou Anica de Melo. “Magro, costas recurvadas, olhos tristes.”
(...) “O velho tinha uma luneta, ficava olhando as estrelas. De dia, quando ele estava no trabalho, eu a usava pra ver as mulheres passando na rua ou às janelas”, disse acariciando as pernas de Anica de Melo.
Ao entrar para o colégio dos Jesuítas, Gregório de Mattos já se interessava pelas mulheres. Desde menino gostava de olhar nos livros imagens femininas: santas, rainhas desenhadas com benevolência e que sempre pareciam mais belas do que deviam ser, altivas condessas e até mesmo bruxas condenadas ao Santo Ofício. Na rua o menino ficava extasiado com as mulheres de carne e osso, com seus rostos e suas formas, alvas como jasmins, vermelhas, azeitonadas, ou escuras como a lascívia. As meninas eram lindas, as índias nuas pareciam-lhe deusas pagãs, as escravas lhe sugeriam estátuas de ferro pronto a incandescer. Sua irmã, um demoniozinho falante tinha um mistério que Gregório de Matos observava quase com fervor religioso. Sentia-se atraído por todas as mulheres. Encantava-se com qualquer gesto, qualquer rufar de saia, detalhes mínimos. Mesmo as feias tinham para ele um encanto qualquer: uma orelha bem-feita, um par de tornozelos sólidos, unhas saudáveis, cabelos abundantes, uma boa estrutura óssea, batatas das pernas grossas, nádegas redondas e fartas, um ar sonhador, timidez, brilho de inteligência ou um nariz que lembrasse uma jovem da dinastia lágida. Como ele gostava de dizer: “são feias, mas são mulheres.” “Ah, tu és um demônio”, disse Anica de Melo. “Não, não, somos bastante diferentes. Demônios sois vós mulheres.” Disse que lera nos livros serem as mulheres diabos disfarçados, circes encantadoras, tentações infernais, peçonhentas no coração e na boca, copuladoras vorazes; que possuir a parte traseira de uma mulher era o mesmo que fazer pacto com o diabo; as que tinham um rosto de anjo e maior donaire eram as mais perigosas. O corpo de uma mulher despertava-lhe  sentimentos penosos e demorados, algo como uma queda, um desar, uma febre maligna, um delírio destruidor.
 “Mas nos livros não havia só mulheres ”, lembrou o poeta. Gregório falou sobre sua formação, sobre a moral jesuíta e o estudo orientado pela Companhia que lhe permitiram tornar-se um homem letrado. Gregório ainda era um menino. Naquele tempo, os jesuítas instalavam-se em toda a Colônia, fortificada em igreja e missões, conquistavam territórios, criavam hospitais e seminários. Na Bahia, não era diferente e Gregório de Mattos almejava ser um deles, não pelo poder, mas pelo conhecimento que dominavam.
Quando via um padre jesuíta na rua era como se estivesse vendo um livro andando. Além  disso, naquele tempo Gregório de Mattos acreditava-se dono de uma grande vocação religiosa. Mas sua passagem pela vida eclesiástica seria dolorosa e breve. Após algum tempo concluíra que o saber dos jesuítas era insosso e atrelado a ideias religiosas e políticas. Depois que dominou a retórica, cansou-se dela e passou a procurar algo diferente. Foi nesse período que partiu para Portugal.
Numa breve descrição da viagem de Gregório para a Europa e do período em que viveu na corte, e ingressou na Universidade de Coimbra onde teve contato com as trovas burlescas, se mantém a estrutura de diálogos entre o poeta e Anica e trechos narrados. Os trechos narrados recuperam sua trajetória e dão fluidez ao diálogo dos personagens.
“Tens um bando delas correndo atrás de ti, todos os tipos de mulheres. Não pensas em casar?” (...) Sou viúvo. Aqui não encontrei nenhuma que me sirva. A única não me quis.”. Anica de Melo desejava que ele não fizesse distinção entre as mulheres para fornicar e as mulheres para casar.
                Enquanto isso, Maria Berco preparava a viagem de sua ama para o engenho onde ficaria escondida. O companheiro de viagem seria o poeta Gregório de Mattos. “Sei bem que é desembargador, vai tomar ordens sacras, mas tem uma fama... (...) loquaz sedutor, um letrado que agora está ajoelhado diante da Virgem Maria e em seguida afundado no colo das meretrizes. O poeta foi ao encontro de dona Bernardina, conforme havia combinado com Bernardo Ravasco; ele a levaria em segurança para o engenho. Ao atender a porta, Maria Berco sentiu o coração acelerado, mas logo tratou de anunciá-lo à sua senhora. Ao saber que o pai havia sido capturado, a dama logo se recusou a partir; Gregório tentou acalmá-la, pois Padre Vieira logo tomaria providências; disse também que Gonçalo Ravasco partiria para relatar ao príncipe os desmandos do governo na Colônia. Depois declamou poesias. Maria Berco sentia-se atraída pelo poeta.
Ao anoitecer daquele dia, Gonçalo Ravasco e Donato Serotino (o mestre de esgrima), que estavam refugiados no colégio dos jesuítas, saíram disfarçados de padres e encapuzados e foram ao encontro de Gregório de Matos, que se escondera na casa da prostituta Anica de Melo. Gregório contou a Gonçalo que Bernardina recusara-se a ir para o engenho; ele lamentou e contou ao poeta sobre o ataque frustrado de Donato ao governador. Além disso, o governador havia se apoderado dos escritos de Bernardo Ravasco. “Mas o que há de mal nisso? Escritos vão e vêm. São feitos para o vento e para o fogo”, disse Gregório de Mattos.  Gonçalo explicou que o pai ficaria muito triste em perder os escritos, pois pretendia publicá-los em Portugal ou Holanda. Depois de recuperar os escritos do pai, Gonçalo partiria para o reino e iria tentar intervir pessoalmente junto ao príncipe para livrar o pai da cadeia. O poeta conseguiu credenciais para que Gonçalo se infiltrasse na reunião de desembargadores no paço, para a qual foram convidados os ministros do Tribunal e da Relação Eclesiástica. Gonçalo iria disfarçado na comitiva Eclesiástica.
Enquanto isso, o governador Antônio de Souza, acabara de ouvir as sátiras de Gregório, que o desembargador Mata havia capturado, dizia: “As sátiras são inteligentes. Se não fossem contra mim até mesmo teriam me divertido. Muito me serviria se ele voltasse sua mordacidade contra as pessoas certas”. O governador alimentava seu ódio contra os Ravasco e seus aliados, mas principalmente contra Padre Vieira. O governador contou ao arcebispo que frequentemente sonhava com Vieira. Ele odiava o jesuíta e planejava invadir o colégio. Gregório de Mattos sabia que, se o arcebispo apoiasse a invasão sua situação se complicaria, e ele seria afastado da Sé. “Pouco me importa ficar na Sé. Aquele lugar é um presépio de bestas, se não for uma estrebaria (...) Tinha os mesmos sentimentos para escrever sobre a mulata, o amor, o muleiro, o papagaio, o governador, el Rei ou Deus”. O governador invadiu o colégio à procura dos envolvidos no crime contra o alcaide. Capturaram Antônio de Brito, João de Couros, Francisco Dias do Amaral, Barros de França, Antônio Rolin, alguns jesuítas e estudantes. Gonçalo Ravasco escapou, pois no momento da invasão, ele e Gregório de Mattos estavam na casa da barregã Anica de Melo planejando sua entrada no palácio para recuperar os escritos de Bernardo Ravasco.
Na hora da reunião dos desembargadores, Gonçalo compareceu com hábito de padre e capuz encobrindo o rosto; estava na comitiva do arcebispo. Observava os desembargadores; aproximou-se de um grupo; conversavam sobre a morte do alcaide, sobre os salários dos magistrados, decisões chegadas da Coroa e outros assuntos do mesmo teor. Ele precisava agir rápido ou seria reconhecido e preso. Tratou de encontrar o cofre onde estavam alguns documentos, entre eles, as cartas do governador dirigidas às autoridades da Coroa, relatando o crime contra o alcaide e acusando Padre Vieira de ser o mandante. Além de outros documentos de teor político, Gonçalo foi surpreendido ao ver, entre a papelada, escritos de sátiras de Gregório de Mattos sobre o Braço de Prata. No fundo do cofre, junto a documentos pessoais do governador, encontrou os escritos de Bernardo Ravasco; contente, o jovem guardou- os dentro da camisa e tratou de sair dali, seguindo o plano que havia traçado junto ao poeta.
O poeta iria para encontrar Gonçalo e juntos iriam falar com o arcebispo sobre a invasão do colégio; queria certificar-se de que a notícia da invasão chegasse corretamente às autoridades religiosas da Europa. Disse à Anica de Melo que precisavam informar não só sobre o governador, mas também sobre a situação da Colônia: “E o que vais falar sobre a Colônia? Que de dois efes se compõe essa cidade, a meu ver: um furtar e o outro foder”.
Gonçalo Ravasco contou ao poeta que o governador guardava suas sátiras no cofre. “Verdade? Se as leu estou em perigo”. Os dois continuaram ali conversando e bebendo, enquanto o poeta declamava versos. Viram Maria Berco passar carregando o marido cego; o poeta lamentou a condição e o destino da moça. Gonçalo e o poeta caminharam demoradamente até o palácio do arcebispo, enquanto falavam de Maria Berco e das mulheres:
“Se me deixassem uma noite, uma noite só, apenas umazinha com essa potranca envernizada, eu dava um jeito nela”, disse Gregório de Mattos. “As mulheres devem cumprir sua parte.” “Fornicar, fornicar, dia e noite fornicar.” “Nada disso. Que sejam todas alegres e recatadas. Não se deve permitir que a mulher se torne uma igual. Devem ser conservadas sempre a uma discreta distancia, tratadas com severidade, alimentadas com um regime escasso de carícias temperado com ameaças, de acordo com o manual de Tiraqueau”. “Sou um escravo das mulheres, sufoco-me de vê-las passar”. “Mas só lhes permites a volúpia” “E o que mais elas querem? E não é bem o que dizes, tenho meus amores líricos. Ah! Coração louco, suspirai, dai vento ao vento! Não vedes que o suspiro diminui o sentimento?”
Gregório gostava de conversar com seu amigo, porque Gonçalo sabia contestar suas observações, levando o assunto para temas mais leves, ou para a política, ou para a poesia; no entanto, não se recusava a levar adiante uma conversa depravada. Gonçalo não é corrompido pela hipocrisia inaciana, pensava Gregório. Enquanto caminhavam,
Gregório falou mal de Antônio Vieira, dissertou sobre os perigos da sífilis, que ele mesmo corria, falou da maravilha de Gomorra, da impertinência da menstruação (contou que havia épocas em que não podia fornicar, pois todas as mulheres estavam menstruadas ao mesmo tempo numa conspiração universal contra os homens), da devassidão dos padres; falou de um frei que apelidara de Foderibus Mulieribus, dos meirinhos mesquinhos, de um capitão toleirão. Nada escapou, como sempre, à sua verve. E em meio a essas variedades sustentava o assunto sempre de maneira cáustica e atraente. Não era atoa que tantos homens e mulheres fossem seus inimigos.
O arcebispo João da Madre de Deus recebeu o poeta e o jovem Gonçalo Ravasco. "Creio que o ilustríssimo não ignora o vendaval que arrasa a cidade”, disse o poeta. O arcebispo afirmou que sabia das disputas entre as facções Menezes e Ravasco. O arcebispo perguntou então, como havia começado a desavença entre as duas facções.
“O alcaide Francisco Teles de Menezes, após comprar o cargo, passou a prevaricar e a atacar com sua língua viperina importantes cidadãos que estranhavam seus excessos, inclusive os Ravasco. Quando Chegou Antônio de Souza para governar, no ano passado, sentindo-se protegido o alcaide, iniciou uma campanha de vingança contra seus opositores. Todos os que tinham ligações com esses homens ficaram ameaçados pelos Menezes. Os perseguidores foram obrigados a se homiziar, muitos no colégio dos jesuítas. Na véspera de Natal, padre Vieira  visitou o governador numa tentativa de reconciliação. Antônio de Souza expulsou-o com palavras ofensivas. A briga prosseguiu pelas ruas. Um jovem sobrinho do alcaide Francisco Teles de Menezes emboscou os irmãos Antônio e André de Brito pelas bandas do Carmo, na descida do Pelourinho. De uma casa, o moço e alguns companheiros atiraram de bacamarte contra os irmãos Brito, quase matando Antônio. Uns covardes. O provedor André de Brito, vendo o irmão caído no chão, sozinho entrou no valhacouto e pôs em fuga os agressores, que escaparam saltando a cerca do colégio dos padres. O resto o ilustríssimo já sabe.”
Os homens lamentaram a situação da Bahia e da Colônia, mas o arcebispo asseverou que os Ravasco poderiam se defender, pois eram muito influentes. João da Madre de Deus lembrou também a influência de Padre Vieira em Portugal. O poeta rebateu falando da inescrupulência dos desembargadores Palma e Gois e da corrupção no governo com compra de cargos e apadrinhamentos, além da perseguição e tirania contra seus opositores. O arcebispo afirmou que havia dito publicamente ao governador que não concordava com a invasão ao colégio e lembrou o poeta que pouco podia fazer, pois estava a serviço da Igreja e não do governo. O poeta contou-lhe sobre as acusações contra o Padre Viera deixando o arcebispo preocupado. O poeta queria que o arcebispo enviasse uma ordem ao governador para que se retirasse o cerco do colégio e se libertasse todos que haviam sido presos durante a invasão. O arcebispo disse que iria pensar antes de tomar qualquer decisão, o que fez com que o poeta insistisse. João da Madre de Deus dispensou os visitantes e afirmou que não viera para a Colônia para pelejar, já havia conversado com outros desembargadores e nem todos pensavam como Gregório. O poeta saiu dali irritado e esbravejando contra o arcebispo e os padres que o acompanhavam.
No capítulo intitulado “A vingança”, Antônio de Brito é torturado e acaba entregando os envolvidos. Entre eles, Bernardo Ravasco. O governador planejava prender alguém da família Ravasco para forçar a captura de Gonçalo. Antônio de Souza, que buscava a todo custo proceder à devassa contra os Ravasco, mandou perseguir e interrogar todos os que tinham ligação com a família.
O governador mandou chamar Bernardina Ravasco, com o intuito de usá-la para chegar a Gonçalo. Bernardo já estava preso; Maria Berco temia ser presa por ter penhorado o anel do alcaide, pois o joalheiro havia sido preso com a joia e entregou Maria. A ordem era prender e torturar Gonçalo e arrancar dele uma confissão. Braço de Prata mandou que perseguissem também o poeta e desembargador da Sé, Gregório de Mattos. “Acossa-o. Escorraça-o e, se não educar a língua, mete-o também na enxovia, degreda-o para Angola, São Tomé, para qualquer lugar bem longe daqui. Não fará nenhuma falta. Já temos letrados demais na Colônia, como disse sua Majestade.”
Iniciaram-se os interrogatórios, Bernardo Ravasco foi interrogado por Antônio Teles, irmão do alcaide morto. Enquanto isso, Dona Bernardina era interrogada pelo governador, ele prometera que, se Gonçalo se entregasse, o secretário Bernardo Ravasco seria solto. Bernardina foi ao encontro do padre Vieira e contou sobre o ocorrido. Irritado, o jesuíta disse que era ele quem ameaçava o Braço de Prata.
Bernardina enviou Maria Berco para falar com o poeta e avisar da perseguição contra o irmão. A jovem perguntou sobre Gonçalo e o poeta disse que não sabia de seu paradeiro. Mesmo que soubesse não diria, ele afirmou, pois sabia das intenções de Dona Bernardina de entregar o irmão em troca do pai. Gregório foi ao encontro do amigo e o alertou.
Na manhã seguinte, Maria Berco acordou com fortes batidas na porta de sua casa, os soldados tinham uma ordem de prisão contra ela. João Berco esbravejou, mas Maria foi levada para a prisão. Não demorou muito para que Bernardina Ravasco também fosse levada para a enxovia. Maria estava numa situação mais complicada, seria enforcada pelo roubo do anel. Luís Bonicho e Gonçalo Ravasco já haviam partido para
Portugal. Anica de Melo tentava convencer o poeta a fazer o mesmo; há dias ele se escondia dos soldados do Governador, pois não tinha mais imunidades nem emprego. Os escritos do secretário Bernardo Ravasco haviam sido entregues ao judeu Samuel da Fonseca, para que ele os guardasse.
O governador não estava satisfeito, pois nem todos os envolvidos estavam presos; alguns estavam refugiados e o alcaide havia assassinado Donato Serotino, o que não ajudava em nada os planos do governador de incriminar os Ravasco e ainda piorava sua situação. Além disso, o govenador não tinha nenhuma prova contra a facção oponente.
No capítulo intitulado “A Devassa” o desembargador Rocha Pita assume as investigações do crime. Faz alguns interrogatórios, mas não consegue chegar a um desfecho aceitável.
Metido em seu gabinete, Rocha Pita passara a noite folheando os depoimentos, anotando pontos de interesse. Relera várias vezes o processo da morte do alcaide-mor, observando falhas: incoerências, mentiras evidentes, obscuridades e ambiguidades que permitiriam impressões diversas; frequentemente contradições, sonegações de indícios, provas duvidosas. Não teria percebido aqueles grosseiros erros o famoso jurista colonial Palma?
Todos os envolvidos foram libertados por falta de provas. Sabendo dos benefícios da posição dos Ravasco e sua própria, o poeta Gregório decidiu interceder por Maria Berco. Após analisar o processo de Maria Berco, foi falar com Rocha Pita. Gregório de Matos conseguiu inscrever Maria Berco no livro de fianças e livrá-la da forca. Depois disso, o poeta decidiu procurar o esposo da jovem, na tentativa de convencê-lo a pagar sua fiança; o marido apenas concordou em testemunhar a favor da esposa. O poeta procurou então o judeu Samuel da Fonseca para pedir- lhe os recursos. O poeta não descansou até conseguir libertar a jovem; depois disso, Maria Berco foi levada para o engenho de Samuel da Fonseca, no Recôncavo.
No último capítulo do livro, intitulado “A Queda”, a autora relata a destituição do Braço de Prata do cargo de Governador e a restituição do cargo de secretário a Bernardo Ravasco. O édito dizia:
A Antônio de Souza Menezes. Eu, el rei, vos envio muito saudar. Atendendo aos vossos anos, e aos muitos que tendes de serviço desta Coroa, parecendo-me que desejais ver-vos fora do Brasil, para vir descansar ao reino, fui servido nomear ao Marques de Minas que vos houvesse de ir suceder. De que vos mando avisar para que o tenhais entendido. Escrita em Lisboa a 9 de março de 1684. Rei.
Contudo, não foram só notícias contra o governador que chegaram da metrópole. El Rei mandara execuções secretas para o padre Vieira, destituindo-o de todos os privilégios que não fossem eclesiásticos. O fato é que durante a sindicância contra o governador, testemunhas falsas depuseram contra a facção dos Ravasco. O sindicante partiu para Portugal com muitas cartas de aprovação a Antônio de Souza e a imagem do governador em Portugal era bem diferente da que se via na Colônia.
Por fim, numa espécie de posfácio, a autora relata o destino das personagens. Gregório de Mattos permaneceu um tempo no Recôncavo, esqueceu-se de Maria Berco; durante o governo do Marquês de Minas, voltou a advogar e casou-se com Maria dos Povos. Após o casamento, voltou à vida descuidada, teve novas contendas com o poder e foi degredado para Angola por continuar suas sátiras contra o governo. Um tempo depois retorna ao Brasil, mas, desta vez, se estabelece em Pernambuco, onde viveu até sua morte, em 1695.
Após ser libertada, Maria Berco ficara viúva e recebera uma boa herança, bens ocultados pelo marido avarento até sua morte. Esses recursos lhe permitiram retornar a Portugal; entretanto, seu fim é trágico, pois embora tenha recebido muitas propostas de casamento acabara sozinha e condenada por heresia. Sob suspeita de práticas judaizantes, foi excomungada por dizer a vizinhos que os judeus no Brasil eram pessoas boas, palavras que “ofendiam muito as orelhas dos cristãos.”A pena, no entanto, foi relativamente branda para os padrões inquisitoriais: perdeu todos os seus bens e foi abjurada com hábito penitencial perpétuo; degredada para São Tomé por dois anos e proibida de retornar a Portugal, Maria Berco morreu pobre e sozinha em São Tomé.
Antônio Vieira prosseguiu com seus sermões, envolveu-se em diversas intrigas contra o governo do Brasil. Já em idade avançada assumiu o cargo de Visitador Geral das Missões. Defendeu mais de uma vez a liberdade dos índios. Comunicava-se frequentemente com amigos de Portugal. Morreu em 1697.
Bernardo Ravasco morreu dois dias depois do irmão. Doente, não soube da morte de Vieira. Dez anos antes de morrer, recebeu, juntamente com o irmão jesuíta, a sentença sobre a morte do alcaide - foram ambos inocentados. Bernardo Ravasco deixou numerosa obra poética em português e castelhano.
Antônio de Souza jamais esqueceu o ódio pelos Ravasco.
Anica de Melo continuou na Bahia até o degredo de Gregório de Mattos, quando partiu para Angola na esperança de reencontrá-lo. Mas sua embarcação naufragou perto da costa da África, num ataque de corsários holandeses. Anica morreu a poucas léguas do amado; mas o poeta nunca soube como ocorreu sua morte. A cidade da Bahia cresceu e modificou-se, continuava a ser cenário de prazer e pecado, encantando a todos que ali viviam ou visitavam, mas jamais deixaria de ser a cidade onde viveu o “Boca do inferno.






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