29 de out. de 2015

Aleijadinho: paixão, glória e suplício

ANÁLISE FÍLMICA

A história do gênio que amou, sofreu e se tornou uma glória das artes brasileiras
  
Direção:
Geraldo Santos Pereira e Renato Santos Ferreira.
Filme lançado em 2000, o longa retrata, através de flashback, a trajetória de Antônio Francisco Lisboa - o escultor mineiro que ficou conhecido como Aleijadinho. Suas obras estão principalmente nas cidades de Ouro Preto, Sabará, São João Del Rei e Congonhas.

Contexto histórico:

Século XVII: epopeia dos bandeirantes: ouro, pedraria e muita ambição nas terras brasileiras. É o momento em que surge a Vila Rica de Albuquerque, antigo nome da atual Ouro Preto.
Século XVIII: chegam ao Brasil artistas, artesãos e arquitetos portugueses, além de milhares de escravos africanos. É o grande momento do resplendor artístico e religioso em Minas Gerais, momento este que terá como figura ilustre Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.
No plano político, há luta pela emancipação e liberdade conduzida pelos inconfidentes e reprimida de forma violenta pelo colonizador.
Século XIX (1858): um historiador, Rodrigo José Ferreira Bretas, ouviu da parteira Joana Lopes, nora de Aleijadinho, a história narrada no filme “Aleijadinho: paixão, glória e suplício”.

A produção fílmica começa com um percurso histórico por Vila Rica. Rodrigo Bretas caminha pela cidade enquanto nos conta sobre o arraial onde Antônio Dias e outros bandeirantes encontraram as primeiras jazidas de ouro. A partir desse fato, vieram para as muitas minas do Brasil levas de portugueses e escravos. O historiador nos conta sobre o Arraial do Ouro Podre, o Morro da queimada... Fala sobre as casas de fundição, onde o ouro era trabalhado, e também conta sobre as revoltas causadas pela cobrança do quinto, o exorbitante imposto. São citados os primeiros revoltosos contras os abusos da metrópole -  Pascoal da Silva, Felipe dos Santos, Chico Rei – e o fim terrível que tiveram. A época é marcada por humilhações, miséria e sofrimento para os brasileiros e escravos do período.
Ainda em seu passeio pela cidade, Bretas apresenta os chafarizes, os quais, além de serem responsáveis pelo fornecimento de água às casas, também eram onde os amantes da cidade se encontravam, a exemplo do enlace amoroso de Maria Doroteia de Seixas e Tomás Antônio Gonzaga, eternizados na obra Marília de Dirceu.
Rodrigo Bretas vai até a casa de Joana, mulher em torno dos cinquenta anos, que fora nora de Aleijadinho (ela era casada com Manuel, filho do artista, que foi morar no Rio de Janeiro assim que a doença do pai iniciara – o filme não o apresenta). Joana foi testemunha ocular de muitos dos sofrimentos de Antônio Francisco.

Enredo do filme:

A primeira cena traz Bretas e Joana sentados na cozinha da casa em que Aleijadinho morrera 40 anos antes. O historiador diz à parteira que tudo o que ela guardou de lembrança sobre o artista precisa ser preservado. A ex-escrava então relata a história do escultor desde o seu nascimento. Joana afirma que Antônio Francisco Lisboa nasceu em 29 de agosto de 1738, no Bairro de Antônio Dias. Filho do arquiteto português Manoel Francisco Lisboa e de uma escrava, Isabel. O pai, Manoel, afirma ao tomar o filho nos braços:
“ – Será um artista e deixará as meninas doidas” – fazendo referência ao fato de que o bebê recém chegado ao mundo continuaria os passos do seu pai, que também era artista. Dessa forma, ainda menino, Antônio Francisco acompanha o pai em seus trabalhos, nas restaurações, e, pouco a pouco, absorve o conhecimento e revela apurado talento.

Há uma passagem de tempo, e Antônio Francisco já aparece adulto.

Influências:
Em sua trajetória, Antônio Francisco Lisboa recebe influência de apreciadores da arte e de artistas de renome como João Gomes da Silva e Francisco Xavier de Brito. João Gomes reconhece a beleza do traçado de Francisco. A primeira obra do jovem artista foi o busto de uma mulher, em 1752: um desenho para o chafariz do pátio do Palácio dos Governadores, em Ouro Preto. Seu estilo aproximava-se do Barroco e do Rococó. Enquanto o primeiro movimento artístico tem como principais características o contraste, a dramaticidade e a exuberância, o segundo privilegia a delicadeza, temas leves e cores claras.

Visão sobre a escravidão:
O artista presencia um negro apanhando e várias pessoas em volta gritando. A cena foi rodada no Pelourinho situado próximo à Igreja São Francisco de Assis, um dos principais pontos turísticos de Mariana – cidade que fica a 11Km de Ouro Preto. Na cena seguinte, o artista discute com seu pai a situação dos negros no país. Apesar de filho de português, Antônio Francisco não esquece seu sangue africano. Alforriado no batismo, o jovem não consegue ficar alheio à situação de sofrimento e desprezo vivida pelos seus irmãos de cor, os negros que viviam em Vila Rica e eram duramente explorados e maltratados nas minas de ouro. Perante seu pai, homem português que acha que Aleijadinho deve simplesmente esquecer suas origens, o rapaz assume sua raça, sua cor. Mas segue o conselho do pai: “- Cuide da tua arte, apenas da tua arte.” Mesmo assim, Antônio Francisco permanece frequentando o lugar de trabalho dos escravos, os quais servirão de inspiração para a originalidade de suas produções.

Vida amorosa: Outro ponto relevante da vida do artista, que é tratado no filme, é o envolvimento amoroso com Helena. Moça negra, bela e cheia de encantos. Nasce então um romance que será o motivo de alegrias e também de desencantos. É durante o desenrolar desse caso de amor que Antônio Francisco será convidado por Claudio Manuel da Costa para produzir a parte artística da capela de São Francisco de Assis juntamente com o pintor Manoel da Costa Athaíde, um dos principais artistas do barroco mineiro. Essa capela se tornará a mais importante obra assinada por Aleijadinho em Ouro Preto, antiga Vila Rica.

 Estilo brasileiro: A amizade com Claudio Manuel da Costa, poeta árcade e um dos líderes da Inconfidência Mineira, propiciará a Antônio Francisco visitas à biblioteca do poeta. Com isso, Aleijadinho tem a possibilidade de ampliar seus conhecimentos e ainda, com base nos ensinos, estar seguro para abandonar o barroco e desenvolver um estilo próprio, um estilo brasileiro, uma abordagem rococó. Sua pretensão é desenvolver uma obra original, duradoura e que reflita o caráter do povo brasileiro. Sua produção é dividida em dois momentos: um são: as obras são serenas, delicadas; e o outro da fase enferma: as produções trazem expressões de angústia, de dor.

Período de lástimas
A doença: O pai de Antônio Francisco sofre um ataque e morre. Porém o maior sofrimento começaria ali, em torno dos quarenta e sete anos: uma doença terrível o assola, trazendo uma carga de dor quase insuportável, e o pior: a atrofia das mãos. Mestre Antônio, como era chamado, torna-se motivo de curiosidade entre as pessoas da cidade. A doença o fez perder os dentes, a boca entortou, o queixo e o lábio “caíram”, assumiu uma expressão de fera. Passa a sair de casa com trajes que encobriam todo o seu corpo; vai trabalhar muito cedo, na escuridão do fim da madrugada, para que não seja visto pela população. Mesmo assim, muitos veem vê-lo trabalhar. Vila Rica se pergunta qual seria a doença que atormenta Antônio Francisco, homem dado ao vinho, às mulheres e festejos: lepra, zamparina, febre tifóide, sífilis, escorbuto...? Para continuar produzindo, ata os instrumentos à mão e recebe a ajuda de Maurício, Januário e Agostinho, seus fiéis escravos e ajudantes.

A traição: No reduto familiar, sua esposa sente nojo daquele homem: a doença lhe deu uma aparência monstruosa, assustadora. Helena começa a trair Antônio Francisco com José Romão, tenente do governador Luis da Cunha Meneses, governador de Vila Rica.

Em certa ocasião, Luis da Cunha Meneses encomenda a Aleijadinho uma imagem de São  Jorge para uma procissão que ocorreria nos próximos dias. Tomado pelo ódio da traição, Antônio Francisco produz sim uma imagem, porém o “são Jorge” possuía a cara abobalhada e assustada de Zé Romão, amante de Helena e oficial de Meneses. Toda a cidade assiste ao ocorrido. Zé Romão vira motiva de piada. O fato desagrada Cunha Meneses. O governador envia Romão para o Rio de Janeiro. No entanto, Romão levará consigo Helena, esposa de Antônio Francisco Lisboa.
Aleijadinho não mostra nenhum tipo de reverência ao governador Meneses. Em uma das cenas do filme, Cunha Meneses é enxotado da igreja em que Antônio Francisco trabalha, no caso a capela de São Francisco de Assis.
O sofrimento físico, em decorrência da doença, e moral, pela traição de Helena, abatem ainda mais o artista mineira.
A inconfidência Mineira
A narrativa fala sobre um importante episódio da História do Brasil: a Inconfidência Mineira. Como Antônio Francisco era amigo do poeta Cláudio Manuel da Costa, presenciou algumas reuniões em que o escritor Tomás Antônio Gonzaga e outros intelectuais planejavam uma revolta pela independência de Minas Gerais. Quando os envolvidos são denunciados, Aleijadinho visita Cláudio Manuel na prisão. A cena parece ter sido rodada na Mina da Passagem, localizada no distrito de Passagem de Mariana. Atualmente, a mina transformou-se em um famoso ponto turístico da cidade, recebendo visitantes de todo o país. Durante a visita de Antônio Francisco, Cláudio Manuel fala ao amigo que foi Joaquim Silvério quem delatou o movimento. O poeta dá a entender que já sabia do interesse de Joaquim em pagar suas dívidas à coroa portuguesa, e não nos ideais dos parceiros.

Congonhas do Campo: Após os acontecimentos, o longa-metragem mostra Antônio Francisco de partida para Congonhas do Campo, em Minas Gerais. Ali ele construirá os famosos “profetas de Aleijadinho”: o conjunto de esculturas em pedra sabão feitas entre 1794 a 1804. Durante a construção, um dos escravos e ajudantes de Aleijadinho morre. Aos 72 anos Antônio Francisco retorna de Congonhas do Campo. Já bastante debilitado pela doença, perde a visão e fica dois anos acamado. Falece em 1814, aos 74 anos.

Fim do filme: Nesse momento a narrativa se desloca para o ano de 1858, quando a nora de Aleijadinho conversa com o historiador.
Joana mostra a Bretas o quarto no qual o escultor morreu e entrega a ele recibos e desenhos do artista que ainda estavam na casa. A ex-escrava desabafa sobre a possibilidade da obra de Aleijadinho estragar-se e do artista não ser lembrado com o passar do tempo. O historiador lembra à Joana que irá escrever sobre o escultor e que, além dele, muitos outros o farão e, assim, o artista e sua obra não serão facilmente esquecidos. A fala do historiador deixa clara a intenção do diretor em mostrar ao espectador a importância de registrar os patrimônios que temos – materiais, culturais ou imateriais – através de livros ou filmes (já que o enredo do longa é inspirado nos escritos do historiador Rodrigo José Ferreira Bretas). É possível deduzir, portanto, que além de preservar os patrimônios presentes no conteúdo da película - de extrema importância para a história do país - também é essencial a preocupação em conservar os meios pelos quais tal conteúdo foi registrado.


25 de out. de 2015

O DEMÔNIO FAMILIAR, José de Alencar

Análise literária

SOBRE O AUTOR:
José Martiniano de Alencar nasceu no dia primeiro de maio de 1829, em Mecejana, Ceará, e faleceu no Rio de Janeiro, em 12 de dezembro de 1877, aos 48 anos de idade. Morreu de tuberculose, doença que se fez presente durante grande parte da sua vida. Filho de um senador do império, foi ainda menino para a então capital federal do Brasil, o Rio de Janeiro. Aos catorze anos, em 1843, mudou-se para São Paulo, formando-se em Direito no ano de 1850. Formado, retornou ao Rio de Janeiro e exerceu a profissão de advogado. Foi jornalista, político (sendo repetidas vezes deputado conservador pela sua Província) e ministro da Justiça, não conseguindo, entretanto, chegar a senador, que era sua grande meta.
A carreira literária de José de Alencar principia, realmente, com as crônicas que depois reuniu sob o título de “Ao correr da pena”(1856). Mas a notoriedade foi devida aos artigos polêmicos do mesmo ano, contra o poema épico A confederação dos tamoios, de Gonçalves de Magalhães, nos quais traçava o programa de uma literatura nacional, baseada nas tradições indígenas e na descrição da natureza, mas norteada por uma rigorosa consciência estética. Para juntar o exemplo à teoria, publica em 1857 O Guarani, que fora precedido por um pequeno romance, Cinco Minutos.
A partir daí não cessaria mais de escrever e publicar com relativa abundância, em três fases mais ou menos distintas.
Na primeira, que vai de 56 a 64, publica alguns de seus romance mais importantes e quase todo o teatro. De 66 a 69, apenas escritos políticos, inclusive as famosas Cartas a Erasmo, nas quais exortava o imperador a exercer efetivamente seus poderes, a fim de pôr cobro à tirania das cliques governamentais. De 70 a 75, postos de lado a política e o teatro, entra em nova fase criadora, publicando oito livros de ficção. O último romance, acabado em 77, Encarnação, foi publicado depois da sua morte, assim como o belo fragmento autobiográfico, como e por que sou romancista.
A obra de Alencar permite a seguinte classificação:
a)     Romance Urbano ou Social: Cinco Minutos ( 1856 ), A Viuvinha ( 1860 ), Lucíola ( 1862 ), Diva ( 1864 ), A Pata da Gazela ( 1870 ), Sonhos d’ouro   (1872) , Senhora ( 1875 ), Encarnação ( 1893 ).
b)    Romance Regionalista: O Gaúcho( 1870 ), O Tronco do ipê ( 1871 ), Til (1872) , O Sertanejo ( 1875 ).
c)     Romance Histórico: As Minas de Prata ( 1865 ), Guerra dos Mascates ( 1873 ).
d)    Romance Indianista: O Guarani ( 1857 ), Iracema ( 1865 ), Ubirajara ( 1874 ).
e)     Teatro: Demônio Familiar ( 1857 ), Verso e Reverso ( 1857 ), As asas de um anjo ( 1860 ), Mãe ( 1862 ), O Jesuíta ( 1875 ).

Alencar escreveu ainda obras de não-ficção e poesias. Devido à diversidade de temas, Alencar é considerado o mais importante escritor do Romantismo Brasileiro.

O ESTILO DE EPOCA
O movimento romântico brasileiro coincide com o momento decisivo de autonomia da pátria. Os escritores tomam para  si a missão de reconhecer e valorizar o passado brasileiro, conferindo à literatura cores locais, esforçando-se  para criar uma literatura legitimamente brasileira, capaz de revelar as qualidades grandiosas da pátria que se tornara independente. Neste sentido, José de Alencar aparece na literatura brasileira como o consolidador do romance, realizando na prosa de ficção a tendência nacionalista que vinha sendo reclamada pela crítica, sobretudo em romances como O Guarani e Iracema. O gosto pelo teatro foi uma das características marcantes do romantismo em todos os países. No brasil, coube a  Gonçalves de Magalhães a encenação da primeira tragédia, intitulada Antônio José ou  O poeta e a inquisição, no dia 13 de março de 1863, no palco do Constitucional Fluminense, no Rio de Janeiro, sob os cuidados do ator João Caetano. O grande nome do teatro romântico brasileiro é o de Martins pena, considerado o inventor da comédia de costumes brasileira.
O teatro de José de Alencar é marcado por uma preocupação moral. A comédia O demônio familiar apresenta a figura do menino escravo Pedro, o “demônio familiar”,  como um malandro e aproveitador, capaz apenas de fazer o mal  para a família brasileira.


A OBRA

A peça O demônio familiar foi encenada pela primeira vez no Teatro do Ginásio do Rio de Janeiro, no dia 5 de setembro de 1857, fundindo uma temática europeia, como a interferência do dinheiro nas relações afetivas, com uma temática brasileira, a atuação do escravo no interior das casas das famílias brasileiras.
O objetivo de José de Alencar era produzir uma peça original e de efeito moral, capaz de revelar a singularidade da comédia brasileira e de educar as famílias no combate ao vício, o de permitir, no interior das casas, a figura do escravo. Quanto ao aspecto formal, a peça não apresenta novidades, pois emprega recursos típicos da tradição teatral para a solução dos problemas de enredo.
Na peça em questão, o recurso do inesperado como solução para os problemas surge na forma de uma carta de alforria ao moleque Pedro, funcionando como um instrumento de punição para a personagem. A técnica que liga um ato ao outro da peça é conhecida como “técnica do gancho”, porque cria um pequeno suspense no final do ato para prender a atenção do espectador.
Quanto ao aspecto temático, O demônio familiar apresenta uma ideia curiosa. A peça, aparentemente, é avançada para a época. Em 1857 (ano da estreia da peça), trinta anos antes da abolição da escravidão, o tema do abolicionismo soaria aos ouvidos da plateia como algo avançado e contrário aos interesses da elite dominante. Entretanto, a apologia da liberdade é apenas aparente, pois a liberdade na peça é vista como um instrumento de punição. A liberdade traria para o escravo consequências severas, porque ele teria que aprender com a vida o que não conseguiu assimilar como escravo, como o respeito e a educação.
Em outras palavras, a escravidão é um mal não porque o branco subjuga o negro, mas porque a maldade vem do negro. Este paga com tramas e desejos mesquinhos o bem que lhes queria seus senhores.
Em suma: não se trata de livrar o negro da crueldade do branco, mas de preservar o branco das maldades do negro.
Como a “classe” branca era econômica e politicamente a dominadora, podia falar e escrever o que quisesse, como a mensagem interpretada acima.
José de Alencar emprega recursos convencionais para se fazer entender pelo público, objetivando a educação moral das famílias brasileiras. As principais lições são: a escravidão é um mal, porque expõe a família à falta de escrúpulo dos negros; a família é mais importante que a sociedade, pois é ela que fornece as bases para que o indivíduo possa evitar os prazeres excessivos da vida social; na família, a mulher, por desconhecer os perigos do mundo, deve sempre agir em nome do verdadeiro amor; o dinheiro interfere de forma negativa nas relações afetivas.
Em O demônio familiar, todas as lições de moral são dadas pelo personagem Eduardo.

PERSONAGENS
Eduardo:é o protagonista da peça. Órfão de pai, tornou-se o chefe da família, conduzindo-a sempre através dos princípios da justiça e da bondade, o que o faz ter o respeito de todos. Por trabalhar como médico, conhece as dores do mundo e, por isso mesmo, sabe dar importância à vida família.
Carlotinha:é a irmã de Eduardo. Suas ações revelam esperteza e inteligência. Como típica mulher romântica, é bonita e deixa-se levar pelo sentimento amoroso.
Jorge: irmão caçula de Eduardo e Carlotinha. Sua proximidade das artimanhas de Pedro determina sua pequena importância na peça.
D. Maria: viúva, mãe de Eduardo, Carlotinha e Jorge. Sem grande importância na trama, D. Maria é apresentada como mãe zelosa.
Pedro: escravo de Eduardo. Pedro é um “moleque” capaz de aprontar grandes confusões no seio da família, sendo, por isso mesmo, o “demônio familiar”. Sua grande ambição não é deixar de ser escravo; pelo contrário, o que almeja é ser cocheiro e, por isso, arma as tramas para que seus senhores obtenham posses e ele possa conduzir uma carruagem.
Alfredo:é, ao lado de Eduardo, outro ‘bom moço” da peça. Pretendente de Carlotinha, sua sinceridade e honestidade, bem como seu apego à cultura brasileira, logo angariam a amizade de Eduardo e o amor de Carlotinha.
Azevedo:é o oposto de Alfredo e Eduardo. Homem rico, excessivamente frívolo e afrancesado nos modos, é avesso ao amor e despreza as mulheres e tudo o que diz respeito ao Brasil. Sua função na peça é a de despertar a antipatia do público.
Henriqueta:amiga de Carlotinha e apaixonada por Eduardo. Os obstáculos que a separam do amado são as artimanhas de Pedro e as dívidas do pai com o moço Azevedo. Não tem o brilhantismo das mocinhas românticas.
Vasconcelos:pai de Henriqueta. Sua situação financeira instável o leva a negociar o casamento da filha como forma de quitação das dívidas. Insinua desejo de casar-se com D. Maria.

ESPAÇO
O registro espacial do drama de Alencar reproduz a preocupação central da peça, que é a de destacar a vida familiar.
Assim, todos os atos se passam na “casa de Eduardo”.
Cenário: Ambientada em casa de Eduardo
·         Ato Primeiro: Gabinete de estudo ( cena primeira a XV )
·         Ato Segundo: Jardim ( cena primeira a IX )
·         Ato Terceiro: Sala interior ( cena primeira a XVIII )
·         Ato Quarto: Sala de visitas ( cena primeira a XVII )
Vida urbana: Passeio Público, Rio de Janeiro.
Os espaços externos aparecem apenas indiretamente.
Temos referências à rua do Catete , aos hábitos urbanos, como o teatro, as lojas da moda, e outros recantos mundanos da cidade.

TEMPO
Os três primeiros atos da peça ocorrem em um único dia. O quarto ato ocorre um mês após os acontecimentos do final do terceiro ato.

LINGUAGEM

A linguagem do texto, especialmente na voz de Eduardo, é marcada pela grandiloquência, o didatismo pouco sutil, a expressão declamatória e a reprodução da sintaxe lusitana:
“(...) O coração que ama de longe, que concentra o seu amor por não poder exprimi-lo, que vive se parado pela distância, irrita-se com os obstáculos, e procura vencê-los para aproximar-se. Nessa luta da paixão cega todos os meios são bons: o afeto puro muitas vezes degenera em desejo insensato e recorre a esses ardis de que um homem calmo se envergonharia; corrompe os nossos escravos, introduz a imoralidade no seio das famílias, devassa o interior da nossa casa, que deve ser sagrada como um templo, por que realmente é o templo da felicidade doméstica.”
·               A coloquialidade e as gírias de Pedro quebram esse discurso de Eduardo.
·               Uso de onomatopeias:  “Pedro puxou as rédeas; chicote estalou; tá, tá, tá; cavalo, toc, toc, toc; carro trrr”.
·               O uso de pronome pessoal do caso reto como objeto direto (quando vê ele passar”, “a moça só espiando ele”).
Ainda o tratamento de intimidade que Pedro dedica aos amos ao chamar Carlotinha de “nhanhã”, é a manifestação linguística da familiaridade com que o demônio é recebido na casa.
·         O aspecto linguístico da personagem  Azevedo, que tem no uso e no abuso de estrangeirismos, principalmente de origem francesa, um dos símbolos da afetação que o caracteriza.
·         Uso do ditado popular: Pedro – Moça é como carrapato, quanto mais a gente machuca, mais ela se agarra.
·         Uso da metalinguagem: Pedro – Quando é esta coisa que se chama prosa, escreve-se o papel todo; quando é verso, é só no meio, aquelas carreirinhas.
·          Uso de Intertexto: Pedro – É isso mesmo. Esse barbeiro, Sr. Fígaro, homem fino mesmo, faz tanta cousa que arranja casamento de sinhá Rosinha com nhonhôLindório.
·          Uso de Figuras de Linguagem: Eduardo – A mulher não é, nem deve ser, um objeto de ostentação que se traga como um alfinete de brilhante ou uma jóia qualquer para chamar a atenção!

 

Ironias antirromânticas

·         A maneira como desfaz a imagem da mulher idealizada , comprova que Azevedo encarna o ceticismo antirromântico:
“(.,.) Um círculo de adoradores cerca imediata mente a senhora elegante, espirituosa, que fez a sua aparição nos salões de uma maneira deslumbrante! Os elogios, a admiração, a consideração social acompanharão na sua ascensão esse astro luminoso, cuja cauda é urna crinolina, e cujo brilho vem da casa do Valais ou da Berat, à custa de alguns contos de réis!”

 Apologia da arte nacional

·         Chama a atenção, no texto, uma discussão qual Alfredo e Azevedo discutem a existência ou não de uma genuína arte brasileira:
Azevedo:“A nossa Academia de Belas-Artes’? Pois temos isto aqui no Rio?(...) Uma caricatura, naturalmente,., Não há arte em nosso país.

Alfredo: A arte existe, Sr. Azevedo, o que não existe é o amor dela.

Azevedo: Sim, faltam os artistas.

Alfredo: Faltar,, os homens que os compreendam; e sobram aqueles que só acreditam e estimam o que vem do estrangeiro.
Azevedo: (com desdém) Já foi a Paris, Sr. Alfredo?

Alfredo: Não, senhor; desejo, e ao mesmo tempo receio ir.

Azevedo:Porque razão?
Alfredo: Porque tenho medo de, na volta, desprezar o meu país, ao invés de amar nele o que há de bom e procurar corrigir o que é mau.
·         As posições estão aí estabelecidas sem sutilezas, com maniqueísmo bem demarcado: Alfredo, um dos heróis, por ser um dos sustentáculos da moral da peça, defende a arte brasileira, enquanto Azevedo, seu antagonista imediato na disputa do amor de Carlotinha, e um representante do amoralismo, ataca esta arte.

CONCLUSÃO
Nota-se que José de Alencar, na obra em questão, mostrou alguns comportamentos cariocas do século XIX:  o rico influenciado pela cultura europeia e vivendo em função dela ( Azevedo ), o falso rico ( Sr. Vasconcelos ), o casamento por interesse financeiro ou social ( Vasconcelos e Azevedo ), a moça virginal e sonhadora ( Carlotinha ), o serviçal negro e fofoqueiro ( Pedro ), a viúva e mãe exemplar ( Dª Maria ), o verdadeiro amor ( Eduardo e Henriqueta ), e o jovem humilde e nacionalista ( Alfredo ).
A trama é leve, a linguagem é objetiva, mesclando termos da língua francesa e da língua portuguesa.
O objetivo da comédia é provocar riso no público e de forma graciosa mostrar os comportamentos ridículos de uma sociedade.
Diferente da crença de que os demônios são causadores do mal, Pedro, o serviçal, age de maneira pensada, desejando o  bem para ele e para os demais; quando percebe que causou algum mal ele volta e repara. O personagem está mais para anjo do que para diabo. É ele quem dá o tom de humor à narrativa através de uma série de confusões.
Nota-se, também, que era totalmente improvável o criado Pedro ser tratado como membro da família de Dª Maria, visto que era escravo.
As mulheres da época, superficiais e artificiais eram bonecas enfeitadas a fim de laçarem um marido o mais rapidamente possível e domesticá-los
Sem dúvida alguma, a peça O Demônio Familiar é abolicionista, vendo sobretudo a questão pelo lado do senhor ( o escravo Pedro introduz na casa de Eduardo a mentira, a fofoca e a intriga ), então, cabe à família, alforriá-lo ( punição ) pelo mau comportamento do negro escravo.




 OBRA


Contos gauchescos – João Simões Lopes Neto

Análise da obra

A obra Contos Gauchescos, editada pela primeira vez em 1912, é uma coleção de 19 contos que tem como ambientação no pampa gaúcho. Contadas pelo envelhecido vaqueano Blau Nunes, as histórias narram aventuras de peões e soldados. As narrativas são sempre sobre o gaúcho, guerreiro, trabalhador, rústico. Nelas a linguagem é sempre um dialeto característico do interior do Rio Grande do Sul e existe um enorme respeito pelos elementos deste estilo de vida: os animais, os instrumentos, a paisagem. Existe também uma grande exaltação do espírito guerreiro do gaúcho, especialmente nas narrativas de guerra, ambientadas na maioria das vezes na Revolução Farroupilha.
Ao fazer de Blau Nunes o narrador de Contos Gauchescos, Simões Lopes Neto enfrentou um problema que nenhum outro escritor brasileiro até então solucionara: que linguagem utilizar? A norma culta soaria falsa e artificial. O linguajar do peão romperia a convenção literária e se isolaria na forma de expressão de um grupo. Simões Lopes Neto solucionou esse problema da seguinte forma: fez largo uso do léxico e eventualmente da sintaxe próprios da linguagem da campanha, mas submetendo-os a morfologia da norma culta. Assim, ele manteve a “cor local”, própria do regionalismo, sem romper com a tradição literária, fazendo universal também a sua linguagem.
A linguagem utilizada no conto "Trezentas Onças" demonstra bem essa universalidade. Através de Blau é que percebemos o presente e o passado, estruturados na narrativa. Há o Blau moço, militar e o Blau velho, "genuíno tipo – crioulo – rio-grandense". Os demais que protagonizam os contos narrados por Blau são, quase sempre, iguais a ele. Isso pode ser identificado no primeiro conto da obra de Lopes Neto, "Trezentas Onças". Blau Nunes, que além de narrador (em 1ª pessoa) também é personagem do conto, é um vaqueano igual, tanto nas condições sociais como na honestidade, aos tropeiros que acharam e devolveram a sua guaiaca com as trezentas onças.
Blau Nunes põe-se a relatar as dezenove histórias (e mais um conjunto de adágios: "Artigos de fé do gaúcho") que integram os Contos gauchescos. Histórias que ele viveu diretamente ou apenas presenciou ou simplesmente ouviu narrar por outras vozes que agora ele recupera para recontá-las a seu interlocutor. Mais do que evocações líricas do passado, da terra e do povo rio-grandenses, estas lembranças do vaqueano estão impregnadas de uma tentativa de explicação do homem do pampa.






O gaúcho: um homem ambíguo

A perspectiva de Blau Nunes a respeito do gaúcho é ambígua. Por um lado, celebra-lhe as virtudes: a hombridade, a bravura, a honestidade etc. No conto "Trezentas onças", por exemplo, ele perde uma bolsa carregada de moedas de ouro que seu patrão lhe confiara para comprar uma tropa de bois. Diante da hipótese de ser considerado ladrão, Blau pensa objetivamente no suicídio. Um lampejo de consciência, desencadeado pela noite estrelada, impele-o à vida. Naturalmente as moedas de ouro lhe serão restituídas por tropeiros honestos e tudo acaba bem.
Por outro lado, Blau Nunes é essencialmente um gaudério, um homem que tem de seu apenas o cavalo e as habilidades campeiras e guerreiras. Alguém que pertence ao núcleo dos “de baixo” e que olhas para os “de cima” com certa desconfiança. Mais de uma vez, ele expressará a nostalgia de uma época em que a hierarquia social não fora totalmente estabelecida.
No conto "Correr eguada", o vaqueano lembra do tempo em que o gado ainda era xucro e sem dono. Lembra também que, quando os peões campeavam estes animais soltos na vastidão das coxilhas, tinham direito à sua “tropilhita nova”. A jornada dos contos não estabelece apenas um itinerário geográfico em busca das paragens típicas; também é um percurso existencial, pois o tapejara narra os casos de que participou, traçando a própria autobiografia. Mas esta coincide, ainda, com um período crucial da história do Rio Grande do Sul e a sucessão episódica oferece um panorama ao leitor: as lutas de fronteira, o desenvolvimento do contrabando, a Revolução Farroupilha, a Guerra do Paraguai, finalmente a transformação dos campos abertos em propriedade dos estancieiros-soldados que tudo mandam e tudo podem.

Linguagem e expressão artística

Ao ceder a voz narrativa a Blau Nunes, em Contos Gauchescos, Simões Lopes Neto resolveu um problema contínuo da ficção brasileira: como pode um narrador culto e citadino, expressar-se na forma quase dialetal de determinada região, sem cair no pitoresco e sem parecer falso?
O velho gaudério assume a narração de seus casos, valendo-se de uma espécie de linguagem popular campeira, imperante na campanha, pelo menos durante o século XIX, e que, certamente, já estava em desuso no início do século XX, quando o escritor a fixou literariamente. A fala de Blau Nunes é saborosa, sugestiva, em função de inúmeras e criativas metáforas, e nos dá a impressão de total naturalidade. Nela avultam espanholismos (despacito, entrevero etc.); arcaísmos (escuitar, peor etc.); corruptelas (vancê, desgoto etc.); e uma grande quantidade de termos específicos da região (china, bagual, chiru etc.); sem contar algumas variantes do próprio escritor. O discurso simoniano ultrapassa, portanto, o mero localismo pitoresco e, na sua abrangência, engloba a tradução de um código ético, o testemunho histórico, a revelação psicológica. No fundo de tudo isto reside o substrato folclórico, a utilização literária da fala dialetal, sempre confrontando o homem e a natureza, infundindo uma qualidade simbólica ao mundo imaginário. No resultado final encontramos um desses raros momentos em que o regionalismo brasileiro se desprende do simples documentário para beirar o território do mito.

O narrador
Em Contos Gauchescos percebemos as qualidades do narrador e paralelamente, os seus limites. Tornam-se nítidos a fixação do mundo gauchesco, a oralidade e o regionalismo da linguagem. Para isso, muito vale a estratégia do autor, cedendo a palavra ao vaqueano Blau Nunes.
Contribui para o encantamento verbal a que o narrador nos submete o fato de falar com alguém, um homem mais jovem, possivelmente o próprio Simões Lopes Neto, a quem o gaúcho está contando o seu percurso existencial. Como ele tem um ouvinte, permite-se a indagações, assertivas, reticências, silêncios, criando uma expressão própria inconfundível e que, muito depois, seria retomada – na questão da forma de narrar – por João Guimarães Rosa.
Blau Nunes é o vaqueano que conduz o viajante através dos pagos. Trata-se aqui do portador de um conjunto de valores que expressa a imagem do gaúcho gerada pela tradição coletiva: a grandeza, a hospitalidade, a amizade, a confiança, a audácia e a perspicácia.  O vaqueano contará os seus casos, recolhidos no "trotar sobre tantíssimos rumos". E a sua fala - por ser teoricamente a de um gaudério, a de um peão sem trabalho fixo - se esquivará, por vezes, da exaltação dos pampas e da condição gaúcha, que no fundo, foi sempre uma autoexaltação dos oligarcas sulinos.
Há no tom narrativo de Blau certa neutralidade, destruída aqui e ali pela saudade dos antigos tempos e por certo moralismo de origem cristã. Porém a sua nostalgia vincula-se a uma época na qual o gado ainda xucro era campeado - conforme o relato "Correr eguada" - e os peões tinham direito a sua tropilha nova, fato que não se repetiria numa sociedade cada vez mais dividida entre fazendeiros e trabalhadores.
Por outro lado, a significação moral das histórias exige-se sobre um sentimento de relativo desconforto no narrador com a violência imperante no território gaúcho: a destruição do boi em serventia ("O boi velho"), a carnificina guerreira ("O anjo da vitória") etc.
Ainda que um esforço documental presida a obra, o registro dos costumes nunca é gratuito. Liga-se à ação dos contos e a psicologia simples dos indivíduos. Em três ou quatro narrativas, contudo, o valor do documento é superado por uma legítima sensibilidade artística: "Trezentas onças", "O contrabandista" e "O boi velho" transcendem à condição de espelho da região, atingindo a chamada universalidade das grandes produções literárias.
Se muitos contos permanecem apenas como registro de costumes ou como anedotas bem contadas, a linguagem em todos eles é viva e cheia de dialetismos, o que, em parte, dificulta a leitura. O linguajar gauchesco é reproduzido pelo escritor. Mas a utilização que Simões Lopes Neto faz do regionalismo lingüístico não visa o pitoresco, como acontece na maioria das manifestações artísticas dita regionais. Nele, a expressão típica é uma decorrência dos conteúdos trabalhados, e, por isso mesmo, somos capazes de superar as dificuldades de seu vocabulário.
Há em sua obra o cuidado de reconstruir o timbre familiar das vozes. E isso forneceria a mesma um efeito surpreendente de oralidade, encanto e frescor.
Simões Lopes Neto controla magistralmente os pontos de tensão de cada relato, açulando e, ao mesmo tempo, postergando a expectativa do leitor. A busca do dramático, em certos momentos, é tão intensa que os textos parecem ameaçados pelo excesso, isto é, pelo melodrama barato. No entanto, a intuição do artista mantém os contos nos limites verossímeis daquilo que é autêntica tragédia humana.
Em "Contrabandista", por exemplo, um pai atravessa a fronteira para buscar um vestido de noiva para a filha, mas no dia do casamento, enquanto o noivo, o padre e dezenas de convidados vão chegando, o pai não retorna com o presente. A espera, em plena festa matrimonial, pelo velho contrabandista e seus asseclas é uma das cenas mais exasperantes da ficção brasileira. Também o mísero destino de um animal, cruelmente morto por ricos fazendeiros a quem sempre servira com abnegação, em "O boi velho", é narrado de forma tão meticulosa por Blau Nunes que não há como fugir da comoção que o conto desperta:
O peão puxou da faca e dum golpe enterrou-a até o cabo, no sangradouro do boi manso; quando retirou a mão, já veio nela a golfada espumenta do sangue do coração...
Houve um silenciozito em toda aquela gente.
O boi velho sentindo-se ferido, doendo o talho, quem sabe se entendeu que aquilo seria um castigo, algum pregaço de picana, mal dado por não estar ainda arrumado... – pois vancê creia! – soprando o sangue em borbotões, já meio roncando na respiração, meio cambaleando, o boi velho deu uns passos mais, encostou o corpo ao comprido no cabeçalho do carretão, e meteu a cabeça, certinha, no lugar da canga... e ficou arrumado, esperando... (...)
E ajoelhou... e caiu... e morreu...


O drama humano
Os principais relatos do autor pelotense são aqueles denominados "contos de sangue e paixão". Apesar de todos estes contos documentarem os costumes e as singularidades da região pastoril e apresentarem personagens inseridos na “vida bárbara dos gaúchos”, há neles uma ciranda tão cega e intensa de sentimentos elementares que o puramente regional é ultrapassado por algo maior: o homem universal, com sua cegueira e seus desatinos.
A maldade dos estancieiros, em "O boi velho"; a luta fratricida entre dois comandantes farroupilhas provavelmente por causa de uma mulher, em "Duelo dos Farrapos"; a devoção do pai a sua filha em "Contrabandista"; o ódio e a vingança ilimitada, em "No manantial", "Os cabelos da china" e em "O negro Bonifácio"; a loucura do orgulho ferido, em "Jogo do osso"; o horror da guerra em "O Anjo da Vitória" são exemplos de relatos em que paixões humanas, instintivas e profundas, corrompem a ordem natural e lançam os seres no desconcerto e no aniquilamento.
O Anjo da Vitória, apelido do heróico general Abreu, que lutou contra as forças uruguaias de Artigas, por exemplo, é um desses “contos de sangue e paixão”. Escrito ao que tudo indica para celebrar a valentia épica do guerreiro rio-grandense, o texto acaba dilacerado entre a audácia do comandante que, mesmo após um brutal erro militar – o exército imperial bombardeara e destruíra suas próprias tropas – convoca a soldadesca à luta, e o desespero de Blau Nunes, então um menino de 10 anos que acompanhava um capitão (seu padrinho e protetor) durante o confronto. Assim, ele assiste a todo desastre bélico. No final da história, o canto do heroísmo é substituído pelo tormento do menino, solitário no campo de batalha, entre mortos e feridos.
Trata-se de uma cena devastadora:
Campeei o meu padrinho morto, também, caído ao lado do azulego, arrebentado nas paletas por um tiro de peça; ali junto, apertando ainda a lança, toda lascada, estrebuchava o Hilarião, sem dar acordo, só aiando, só aiando...
Deitado sobre o pescoço do cavalo, comecei a chorar.
Peguei a chamar:
- Padrinho! Padrinho!...
- Hilarião! Meu padrinho!...
Apeei, vim me chegando e chamando – padrinho!... padrinho!... E tomei-lhe a benção, na mão já fria... Puxei a manga do chiru, que já nem bulia.
Sem querer fiquei vendo as forças que iam-se movendo e se distanciando... E num tirão, quando ia montar de novo sem saber pra quê... foi que vi que estava sozinho, abandonado, gaudério e gaúcho, sem ninguém para me cuidar!... (...)
Comi do ruim... Veja vancê que eu era guri e já corria mundo...

ALGUNS CONTOS

Trezentas Onças
Conto narrado em 1ª pessoa, com muita descrição de paisagem. O narrador Blau Nunes conta que, certa vez, viajando sozinho a cavalo, acompanhado apenas de seu cachorro, levava na guaiaca trezentas onças de ouro, destinadas a pagar um gado que compraria para seu patrão. Um certo ponto da viagem, pára para sestear num passo, onde, depois de uma boa soneca, vai refrescar-se com alguns mergulhos na água fresca.
Tornando a vestir-se e a encilhar o zaino, parte em direção à estância da Coronilha, onde devia pousar. Logo que sai a trotar pela estrada, o gaúcho nota que seu cachorro estava inquieto, latindo muito e voltando sobre o rastro, como se quisesse chamar seu dono para o pasto outra vez. Mas Blau Nunes segue seu caminho até chegar à estância da Coronilha. Lá chegando, ao apear do cavalo e cumprimentar o dono da casa, nota que não estava com sua guaiaca. Anuncia que perdera trezentas
onças do patrão e, preocupadíssimo, monta o cavalo outra vez para voltar ao lugar onde teria deixado a guaiaca.
Depois de nova cavalgada, sempre acompanhado do fiel cãozinho, Blau Nunes chega ao passo, já de noite, e não mais encontra a guaiaca no lugar onde tinha certeza de que havia colocado quando se despira para o banho. Desespera-se tanto por imaginar que seu patrão o consideraria um desonesto, que pensa em suicidar-se. Chega a engatinhar o revólver e colocá-lo no ouvido, mas o cusco lambendo-lhe as mãos, o relincho de seu cavalo, o brilho das Três Marias, o canto de um grilo, tudo lhe invoca a presença e a força divina, que o demove daquele ato transloucado.
Assim, o gaúcho reequilibra-se e decide que venderá todos os seus bens e dará um jeito de pagar ao patrão o prejuízo da perda das trezentas onças. E volta para a pousada na estância da Coronilha. É então que tem uma feliz surpresa: sobre a mesa da sala do estanceiro, ao lado da chaleira com que se servia a água do mate, estava a sua guaiaca 'empanzinada de onças de ouro'. Uma comitiva de tropeiros, que chegava à estância no momento em que ele voltava ao passo de sesteada, havia encontrado a guaiaca e a trouxera intacta. E esta foi a saudação que ele recebeu quando entrou na sala: - Louvado seja Jesus Cristo, patrício! Boa noite! Entonces, que tal le foi de susto?
Há nessa narrativa um desequilíbrio ocasionado pela perda da guaiaca, que tenta recuperar-se quando Blau Nunes volta pelo trajeto que havia tropeado a fim de encontrá-la. Há, aí, outro desequilíbrio, através da vontade de se matar por não ter encontrado as trezentas onças. Através da natureza, dos animais, das estrelas, há um novo equilíbrio e Blau Nunes volta pra estância para prestar contas ao seu patrão.

No Manantial
Conto narrado em 3ª pessoa.
Na tapera do Mariano há um manantial. Bem no meio dele, uma roseira, plantada por um defunto, e gente vivente não apanha flores por ser mau agouro. Carreteiros que ali perto acamparam viram duas almas: uma chorava, suspirando; outra, soltava barbaridades. O lugar ficou mal-assombrado.  
Com Mariano morava a filha Maria Altina, duas velhas, a avó da menina e a tia-avó, e a negra Tanásia. Tudo em paz e harmonia. Certa vez foram a um terço na casa do brigadeiro Machado. Maria Altina encontrou o furriel André, e os dois se apaixonaram [conchavo entre o pai e o brigadeiro]. André lhe deu uma rosa vermelha. Em casa, ela plantou o cabo da rosa e a roseira cresceu e floresceu. Surgiu o trato do casamento...o enxoval...
Chicão, filho de Chico Triste, andava enrabichado pela Maria Altina, que não se interessava por ele e tinha-lhe medo. Na casa de Chico Triste houve um batizado. O pai e a tia-avó foram ajudar. Chicão aproveitou-se, foi à casa do Mariano, matou a avó e quis pegar à força Maria Altina. Esta, vendo a avó morta, pegou o cavalo e saiu às disparadas, entrando no manantial. Chicão atrás. Ela some e só fica a rosa do chapéu boiando.
Mãe Tanásia, que se escondera e vira tudo, vai à procura de Mariano. Nesse meio-tempo chegaram a casa os campeiros para comer. Viram a velha morta. Uns ficaram, e outros foram avisar Mariano e procurar Maria Altina...
Mariano apavorou-se, pensando que a filha fugira com o Chicão. Nisso chegou a mãe Tanásia e conta o sucedido. Todos vão ao manantial e encontram Chicão atolado, boiando. Mariano atira e acerta Chicão. O padre que ali está, coloca a cruz na boca da arma e pede que não atire mais. Mariano entra no lamaçal, luta com Chicão e os dois afundam e morrem.
A avó foi enterrada também na encosta do manantial. Uma cruz foi benzida e cravada no solo pelos quatro defuntos.
Mãe Tanásia e a tia-avó foram por caridade, morar na casa do brigadeiro Machado. E como lembrança do macabro acontecimento, ficou, sobre o lodo, ali no manantial, uma roseira baguala, roseira que nasceu do talo da rosa que ficou boiando no lodaçal no dia daquele cardume de estropícios.

O Contrabandista
Narração em 1ª pessoa. Informações históricas. O contrabandista é Jango Jorge. Mão aberta e por isso sem dinheiro. Foi chefe de contrabandistas. Conhecia muito bem lugares pelo cheiro, pelo ouvido, pelo gosto. Fora antes soldado do General José Abreu.
Estava pelos noventa anos, afamilhado com mulher mocetona, filhos e uma filha bela, prendada etc.
O narrador pousa na casa dele, era véspera do casamento da filha. Tudo preparado, Jango Jorge parte para comprar o vestido e os outros complementos de contrabando. É atacado, na volta, pelo guarda que pega o contrabando, mas ele não solta o pacote contendo o vestido e, por isso, é morto. Os amigos levaram o cadáver para casa, contaram como ocorreu e a alegria da festa vira tristeza geral.
No meio do conto é contada a história do contrabando na região, do comércio entre os lugares, os mascates...

Jogo do Osso
Narrado em 1ª pessoa, o conto é bastante descritivo. Começa, dizendo que já viu jogar mulher num jogo. Depois descreve a vendola do Arranhão, um pouco para fora da vila, de propriedade de um meio-gringo, meio-castelhano, que tem faro para negócios: bebida, corrida, jogos etc.
Certo dia choveu e atrapalhou a jogatina. Cessada a chuvarada, resolvem jogar o osso. Explica como se desenvolve a jogatina. Os jogadores eram Osoro, mulherengo, compositor; e Chico Ruivo, domador e agregado num rincão da Estância das Palmas; vivia com Lalica.
Chico só perde e acaba apostando Lalica. Esta com raiva de ter sido incluída na aposta, começa a dançar com Osoro,o ganhador, provocando Chico Ruivo, que não agüentando mais, vara os dois ao mesmo tempo com um facão.
O povo à volta grita para que peguem Chico Ruivo, mas ele foge no cavalo de Osoro. -Pois é, jogaram, criaram confusão, mas nenhum pagou a comissão... Que trastes!..., falou o meio-gringo do bolicho.




Fonte: http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/c/contos_gauchescos
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