Análise literária
SOBRE O AUTOR:
A
carreira literária de José de Alencar principia, realmente, com as crônicas que
depois reuniu sob o título de “Ao correr da pena”(1856). Mas a notoriedade foi
devida aos artigos polêmicos do mesmo ano, contra o poema épico A confederação dos tamoios, de Gonçalves
de Magalhães, nos quais traçava o programa de uma literatura nacional, baseada
nas tradições indígenas e na descrição da natureza, mas norteada por uma
rigorosa consciência estética. Para juntar o exemplo à teoria, publica em 1857 O Guarani, que fora precedido por um
pequeno romance, Cinco Minutos.
A partir
daí não cessaria mais de escrever e publicar com relativa abundância, em três
fases mais ou menos distintas.
Na
primeira, que vai de 56 a 64, publica alguns de seus romance mais importantes e
quase todo o teatro. De 66 a 69, apenas escritos políticos, inclusive as
famosas Cartas a Erasmo, nas quais exortava o imperador a exercer efetivamente
seus poderes, a fim de pôr cobro à tirania das cliques governamentais. De 70 a
75, postos de lado a política e o teatro, entra em nova fase criadora,
publicando oito livros de ficção. O último romance, acabado em 77, Encarnação,
foi publicado depois da sua morte, assim como o belo fragmento autobiográfico,
como e por que sou romancista.
A obra de Alencar permite a seguinte classificação:
a)
Romance Urbano ou Social: Cinco Minutos ( 1856
), A Viuvinha ( 1860 ), Lucíola ( 1862 ), Diva ( 1864 ), A Pata da Gazela (
1870 ), Sonhos d’ouro (1872) , Senhora
( 1875 ), Encarnação ( 1893 ).
b)
Romance Regionalista: O Gaúcho( 1870 ), O Tronco do ipê (
1871 ), Til (1872) , O Sertanejo ( 1875 ).
c)
Romance Histórico: As Minas de Prata ( 1865 ), Guerra dos
Mascates ( 1873 ).
d)
Romance Indianista: O Guarani ( 1857 ), Iracema ( 1865
), Ubirajara ( 1874 ).
e)
Teatro: Demônio Familiar ( 1857 ), Verso e Reverso (
1857 ), As asas de um anjo ( 1860 ), Mãe ( 1862 ), O Jesuíta ( 1875 ).
Alencar escreveu ainda obras de não-ficção e
poesias. Devido à diversidade de temas, Alencar é considerado o mais
importante escritor do Romantismo Brasileiro.
O ESTILO DE EPOCA
O
movimento romântico brasileiro coincide com o momento decisivo de autonomia da
pátria. Os escritores tomam para si a
missão de reconhecer e valorizar o passado brasileiro, conferindo à literatura
cores locais, esforçando-se para criar
uma literatura legitimamente brasileira, capaz de revelar as qualidades
grandiosas da pátria que se tornara independente. Neste sentido, José de
Alencar aparece na literatura brasileira como o consolidador do romance,
realizando na prosa de ficção a tendência nacionalista que vinha sendo
reclamada pela crítica, sobretudo em romances como O Guarani e Iracema. O
gosto pelo teatro foi uma das características marcantes do romantismo em todos
os países. No brasil, coube a Gonçalves
de Magalhães a encenação da primeira tragédia, intitulada Antônio José ou O poeta e a inquisição, no dia 13 de março de
1863, no palco do Constitucional Fluminense, no Rio de Janeiro, sob os cuidados
do ator João Caetano. O grande nome do teatro romântico brasileiro é o de
Martins pena, considerado o inventor da comédia de costumes brasileira.
O
teatro de José de Alencar é marcado por uma preocupação moral. A comédia O
demônio familiar apresenta a figura do menino escravo Pedro, o “demônio
familiar”, como um malandro e
aproveitador, capaz apenas de fazer o mal
para a família brasileira.
A OBRA
O
objetivo de José de Alencar era produzir uma peça original e de efeito moral,
capaz de revelar a singularidade da comédia brasileira e de educar as famílias
no combate ao vício, o de permitir, no interior das casas, a figura do escravo.
Quanto ao aspecto formal, a peça não apresenta novidades, pois emprega recursos
típicos da tradição teatral para a solução dos problemas de enredo.
Na peça
em questão, o recurso do inesperado como solução para os problemas surge na
forma de uma carta de alforria ao moleque Pedro, funcionando como um
instrumento de punição para a personagem. A técnica que liga um ato ao outro da
peça é conhecida como “técnica do gancho”, porque cria um pequeno suspense no
final do ato para prender a atenção do espectador.
Quanto ao
aspecto temático, O demônio familiar
apresenta uma ideia curiosa. A peça, aparentemente, é avançada para a época. Em
1857 (ano da estreia da peça), trinta anos antes da abolição da escravidão, o
tema do abolicionismo soaria aos ouvidos da plateia como algo avançado e
contrário aos interesses da elite dominante. Entretanto, a apologia da
liberdade é apenas aparente, pois a liberdade na peça é vista como um
instrumento de punição. A liberdade traria para o escravo consequências
severas, porque ele teria que aprender com a vida o que não conseguiu assimilar
como escravo, como o respeito e a educação.
Em outras
palavras, a escravidão é um mal não porque o branco subjuga o negro, mas porque
a maldade vem do negro. Este paga com tramas e desejos mesquinhos o bem que
lhes queria seus senhores.
Em suma:
não se trata de livrar o negro da crueldade do branco, mas de preservar o
branco das maldades do negro.
Como a
“classe” branca era econômica e politicamente a dominadora, podia falar e
escrever o que quisesse, como a mensagem interpretada acima.
José de
Alencar emprega recursos convencionais para se fazer entender pelo público,
objetivando a educação moral das famílias brasileiras. As principais lições
são: a escravidão é um mal, porque expõe a família à falta de escrúpulo dos
negros; a família é mais importante que a sociedade, pois é ela que fornece as
bases para que o indivíduo possa evitar os prazeres excessivos da vida social;
na família, a mulher, por desconhecer os perigos do mundo, deve sempre agir em
nome do verdadeiro amor; o dinheiro interfere de forma negativa nas relações
afetivas.
Em O
demônio familiar, todas as lições de moral são dadas pelo personagem Eduardo.
PERSONAGENS
Eduardo:é
o protagonista da peça. Órfão de pai, tornou-se o chefe da família,
conduzindo-a sempre através dos princípios da justiça e da bondade, o que o faz
ter o respeito de todos. Por trabalhar como médico, conhece as dores do mundo
e, por isso mesmo, sabe dar importância à vida família.
Carlotinha:é
a irmã de Eduardo. Suas ações revelam esperteza e inteligência. Como típica
mulher romântica, é bonita e deixa-se levar pelo sentimento amoroso.
Jorge:
irmão caçula de Eduardo e Carlotinha. Sua proximidade das artimanhas de Pedro
determina sua pequena importância na peça.
D. Maria:
viúva, mãe de Eduardo, Carlotinha e Jorge. Sem grande importância na trama, D.
Maria é apresentada como mãe zelosa.
Pedro: escravo
de Eduardo. Pedro é um “moleque” capaz de aprontar grandes confusões no seio da
família, sendo, por isso mesmo, o “demônio familiar”. Sua grande ambição não é
deixar de ser escravo; pelo contrário, o que almeja é ser cocheiro e, por isso,
arma as tramas para que seus senhores obtenham posses e ele possa conduzir uma
carruagem.
Alfredo:é,
ao lado de Eduardo, outro ‘bom moço” da peça. Pretendente de Carlotinha, sua
sinceridade e honestidade, bem como seu apego à cultura brasileira, logo
angariam a amizade de Eduardo e o amor de Carlotinha.
Azevedo:é
o oposto de Alfredo e Eduardo. Homem rico, excessivamente frívolo e afrancesado
nos modos, é avesso ao amor e despreza as mulheres e tudo o que diz respeito ao
Brasil. Sua função na peça é a de despertar a antipatia do público.
Henriqueta:amiga
de Carlotinha e apaixonada por Eduardo. Os obstáculos que a separam do amado
são as artimanhas de Pedro e as dívidas do pai com o moço Azevedo. Não tem o
brilhantismo das mocinhas românticas.
Vasconcelos:pai
de Henriqueta. Sua situação financeira instável o leva a negociar o casamento
da filha como forma de quitação das dívidas. Insinua desejo de casar-se com D.
Maria.
ESPAÇO
O
registro espacial do drama de Alencar reproduz a preocupação central da peça,
que é a de destacar a vida familiar.
Assim,
todos os atos se passam na “casa de Eduardo”.
Cenário: Ambientada em casa de Eduardo
·
Ato Primeiro: Gabinete de estudo ( cena primeira a
XV )
·
Ato Segundo: Jardim ( cena primeira a IX )
·
Ato Terceiro: Sala interior ( cena primeira a XVIII
)
·
Ato Quarto: Sala de visitas ( cena primeira a XVII )
Vida
urbana: Passeio Público, Rio de Janeiro.
Os
espaços externos aparecem apenas indiretamente.
Temos
referências à rua do Catete , aos hábitos urbanos, como o teatro, as lojas da
moda, e outros recantos mundanos da cidade.
TEMPO
Os três
primeiros atos da peça ocorrem em um único dia. O quarto ato ocorre um mês após
os acontecimentos do final do terceiro ato.
LINGUAGEM
A
linguagem do texto, especialmente na voz de Eduardo, é marcada pela
grandiloquência, o didatismo pouco sutil, a expressão declamatória e a
reprodução da sintaxe lusitana:
“(...)
O coração que ama de longe, que concentra o seu amor por não poder exprimi-lo,
que vive se parado pela distância, irrita-se com os obstáculos, e procura
vencê-los para aproximar-se. Nessa luta da paixão cega todos os meios são bons:
o afeto puro muitas vezes degenera em desejo insensato e recorre a esses ardis
de que um homem calmo se envergonharia; corrompe os nossos escravos, introduz a
imoralidade no seio das famílias, devassa o interior da nossa casa, que deve
ser sagrada como um templo, por que realmente é o templo da felicidade
doméstica.”
·
A
coloquialidade e as gírias de Pedro quebram esse discurso de Eduardo.
·
Uso
de onomatopeias: “Pedro puxou as rédeas;
chicote estalou; tá, tá, tá; cavalo, toc, toc, toc; carro trrr”.
·
O
uso de pronome pessoal do caso reto como objeto direto (quando vê ele passar”,
“a moça só espiando ele”).
Ainda o tratamento de intimidade que Pedro
dedica aos amos ao chamar Carlotinha de “nhanhã”, é a manifestação linguística
da familiaridade com que o demônio é recebido na casa.
·
O
aspecto linguístico da personagem
Azevedo, que tem no uso e no abuso de estrangeirismos, principalmente de
origem francesa, um dos símbolos da afetação que o caracteriza.
·
Uso do ditado popular: Pedro – Moça é como
carrapato, quanto mais a gente machuca, mais ela se agarra.
·
Uso da metalinguagem: Pedro – Quando é esta coisa
que se chama prosa, escreve-se o papel todo; quando é verso, é só no meio,
aquelas carreirinhas.
·
Uso de Intertexto: Pedro – É isso mesmo. Esse
barbeiro, Sr. Fígaro, homem fino mesmo, faz tanta cousa que arranja casamento
de sinhá Rosinha com nhonhôLindório.
·
Uso de Figuras de Linguagem: Eduardo – A mulher não
é, nem deve ser, um objeto de ostentação que se traga como um alfinete de
brilhante ou uma jóia qualquer para chamar a atenção!
Ironias antirromânticas
·
A
maneira como desfaz a imagem da mulher idealizada , comprova que Azevedo
encarna o ceticismo antirromântico:
“(.,.)
Um círculo de adoradores cerca imediata mente a senhora elegante, espirituosa,
que fez a sua aparição nos salões de uma maneira deslumbrante! Os elogios, a
admiração, a consideração social acompanharão na sua ascensão esse astro
luminoso, cuja cauda é urna crinolina, e cujo brilho vem da casa do Valais ou
da Berat, à custa de alguns contos de réis!”
Apologia da arte nacional
·
Chama
a atenção, no texto, uma discussão qual Alfredo e Azevedo discutem a existência
ou não de uma genuína arte brasileira:
Azevedo:“A nossa Academia de Belas-Artes’? Pois
temos isto aqui no Rio?(...) Uma caricatura, naturalmente,., Não há arte em
nosso país.
Alfredo: A arte existe, Sr. Azevedo, o que não existe
é o amor dela.
Azevedo: Sim, faltam os artistas.
Alfredo: Faltar,, os homens que os compreendam; e
sobram aqueles que só acreditam e estimam o que vem do estrangeiro.
Azevedo: (com desdém) Já foi a Paris, Sr. Alfredo?
Alfredo: Não, senhor; desejo, e ao mesmo tempo receio
ir.
Azevedo:Porque razão?
Alfredo: Porque tenho medo de, na volta, desprezar o
meu país, ao invés de amar nele o que há de bom e procurar corrigir o que é
mau.
·
As
posições estão aí estabelecidas sem sutilezas, com maniqueísmo bem demarcado:
Alfredo, um dos heróis, por ser um dos sustentáculos da moral da peça, defende
a arte brasileira, enquanto Azevedo, seu antagonista imediato na disputa do
amor de Carlotinha, e um representante do amoralismo, ataca esta arte.
CONCLUSÃO
Nota-se
que José de Alencar, na obra em questão, mostrou alguns comportamentos cariocas
do século XIX: o rico influenciado pela
cultura europeia e vivendo em função dela ( Azevedo ), o falso rico ( Sr.
Vasconcelos ), o casamento por interesse financeiro ou social ( Vasconcelos e
Azevedo ), a moça virginal e sonhadora ( Carlotinha ), o serviçal negro e
fofoqueiro ( Pedro ), a viúva e mãe exemplar ( Dª Maria ), o verdadeiro amor (
Eduardo e Henriqueta ), e o jovem humilde e nacionalista ( Alfredo ).
A
trama é leve, a linguagem é objetiva, mesclando termos da língua francesa e da
língua portuguesa.
O
objetivo da comédia é provocar riso no público e de forma graciosa mostrar os
comportamentos ridículos de uma sociedade.
Diferente
da crença de que os demônios são causadores do mal, Pedro, o serviçal, age de
maneira pensada, desejando o bem para
ele e para os demais; quando percebe que causou algum mal ele volta e repara. O
personagem está mais para anjo do que para diabo. É ele quem dá o tom de humor
à narrativa através de uma série de confusões.
Nota-se,
também, que era totalmente improvável o criado Pedro ser tratado como membro da
família de Dª Maria, visto que era escravo.
As
mulheres da época, superficiais e artificiais eram bonecas enfeitadas a fim de
laçarem um marido o mais rapidamente possível e domesticá-los
Sem
dúvida alguma, a peça O Demônio Familiar é abolicionista, vendo sobretudo a
questão pelo lado do senhor ( o escravo Pedro introduz na casa de Eduardo a
mentira, a fofoca e a intriga ), então, cabe à família, alforriá-lo ( punição )
pelo mau comportamento do negro escravo.
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