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15 de nov. de 2016

Análise literária "Olhos d'água", de Conceição Evaristo

ANÁLISE LITERÁRIA"Olhos d’água", de Conceição Evaristo:
a violência e a miséria que vitimam os afro-brasileiros



Nos quinze contos que enfeixam Olhos d’água, de Conceição Evaristo, a temática está relacionada às agruras diárias pelas quais passam os afro-brasileiros numa sociedade excludente como a nossa. Nessas pungentes narrativas, ainda que existam alguns protagonistas masculinos, a ênfase centra-se em personagens femininas, muitas delas figurando parcial ou totalmente nos nomes de alguns dos contos.
Indubitavelmente, questões étnicas e sociais são assuntos recorrentes na obra dessa escritora, visto que ela está envolvida com questões ligadas à igualdade racial desde a década de 1980.
No prefácio da obra, Heloisa Toller Gomes observa que muitas personagens femininas dos contos são “todas a mesma mulher, captada e recriada no caleidoscópio da literatura”. Essa mesma mulher repete os dilemas vividos pela Ponciá do romance, encarnando a face de cada um dos desvalidos da sociedade brasileira, às voltas com a miséria e a violência urbana. Na realidade, essa mulher única em várias outras atua nas narrativas como resposta à indagação que o leitor encontra no poético Olhos d’água, primeiro conto do volume: “De que cor eram os olhos de minha mãe?”. A pergunta obriga a narradora a fazer o caminho de volta para o lar e resgatar sua própria história, sua identidade. E dessa consciência de sofrimento, de “lágrimas e lágrimas”, há a possibilidade de a mulher que narra apreender que ela própria, a mãe, a filha, as tias, “todas as mulheres de minha família” compõem fragmentos de uma mesma mulher que sofre.
O olhar da escritora recai sobretudo na existência difícil de personagens femininas afrodescendentes, que tentam se equilibrar no fio tênue de um cotidiano marcado por humilhação, opressão e preconceito.
As personagens que figuram em cada narrativa pertencem ao universo dos excluídos de nossa sociedade, isto é, são crianças de rua, prostitutas, mulheres pobres e humilhadas, homens que roubam, matam e são capazes de amar. Se a condição social por si só comprova que são pessoas discriminadas, mais ainda o são por serem afrodescendentes.
Sobre a autora: Conceição Evaristo Maria da Conceição Evaristo de Brito
Nasceu em 1946, numa favela de Belo Horizonte (MG). Foi para o Rio de Janeiro em 1973. Ali, atuou no magistério e ingressou na Faculdade de Letras da UFRJ. Fez Mestrado em Literatura na PUC-Rio e Doutorado em Literatura Comparada na UFF. Na década de 1980, estabeleceu contato com o grupo Quilombhoje. Em 1990, os Cadernos negros publicaram alguns de seus poemas. Com o romance Ponciá Vicêncio, de 2003, Conceição Evaristo obteve a merecida consagração literária. Em 2006, lançou o livro Becos da memória e, em 2008, Poemas da recordação e outros movimentos.
 Características da obra: temporalmente os contos abordam o presente, mas não deixam afastar o passado e sempre interrogam o futuro.
A escrita: há uso freqüente do recurso de escrita que se baseia na hifenização, a qual passo a denominar, neste caso específico, palavras siamesas (cuja lista a seguir, aviso, pode estar incompleta): "lava-lava" e "passa-passa" (p. 16); "peitos- maçãs" (p. 22); "gozo-pranto" (p. 23); o nome de uma de suas mais contundentesde sua galeria de personagens, "Duzu-Querença" (p. 31); "florcriança" (p. 46); "borboleta-menina" e "dedos-desejos" (p. 51); "ave-mãe" (p. 55); "corpo-coração", "gozo-dor" e "jorro-d'água" (p. 60); "barrigas-luas", "águaslágrimas", "dança-amor" e "buraco- perna" (p. 61); "alma-menina" (p. 63); "figurinhaflor" (p. 74); "quarto-marquise" (p. 76); "coragem-desespero" (p. 80); "beija- beija" (p. 82); "verdades-mentiras" e "peito-coração" (p. 83); "Deus- menino", "imagem-mulher" e "imagem-homem" (p. 84); "rio-mar" (p. 99); "fumacinha-menina" e "contra-contra" (p. 101); "mar-amor" e "mundo-canal" (p. 104); "mar-amar" e "mar-morrente" (p. 107).
NOMES DOS PERSONAGENS: Os nomes escolhidos para seus personagens são criados a partir da aglutinação de palavras - "Luamanda" - exemplo formado pelo substantivo lua e o verbo "mandar" (conjugado no presente do indicativo, terceira pessoal do singular) - "Dorvi" - novamente utilizando um substantivo "dor", aliado ao verbo "ver" (conjugado na primeira pessoa do pretérito perfeito). Outras fontes preciosas para a denominação de personagens são as culturas Banto e lorubá. E não são utilizadas apenas para este fim, pois as referências às narrativas míticas africanas se apresentam ora como poderosas metáforas, ora como alegorias que podem se referir, direta e/ou Indiretamente, à diáspora africana no passado brasileiro e seus desdobramentos em nosso "presente-cotidiano".
RESUMO DOS CONTOS:  OLHOS D’ÁGUA Verifica-se que, desde o título, a autora utiliza-se da imagem dos olhos para fixar um centro de poeticidade e significação para o conto. É por meio dessa imagem que se desperta, na narradora, as lembranças que remontam sua infância como um belo e doloroso quebra-cabeças. Assim, emerge a necessidade de se reencontrar com a sua mãe, logo, com as suas origens.
Utilizando-se da imagem dos olhos, Conceição Evaristo traz à tona questões de ordem social, cultural e religiosa, relacionadas à miséria em que a narradora se encontra na infância e pensando em sua relação com os orixás e com as Yabás ainda em África. Dessa forma, a autora insere voz autoral, temática e ponto de vista sem abrir mão do trabalho estético em seu texto, fugindo do teor "panfletário". Ao se lembrar e narrar suas lembranças, a narradora-personagem de "Olhos d'água" evoca as experiências que marcaram sua infância e, neste jogo de recordações, acaba por (con)fundir suas próprias memórias com as lembranças de sua mãe:
[...] Às vezes, as histórias da infância de minha mâe confundiam-se com as de minha própria infância. Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da panela subia cheiro algum. Era como se cozinhasse, ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento (EVARISTO, 2010, p. 172).
No fragmento acima, memórias se fundem e um tema presente na vida da narradora vem à tona: a fome. Assumir essa fusão de lembranças é como aceitar uma carga hereditária. Recorrente na prosa de Conceição Evaristo , a hereditariedade que ecoa na geração seguinte revela-se um traço forte no que diz respeito à ancestralidade, como um elo estabelecido entre passado e futuro que se concretizará no desfecho do conto, quando em frente à filha, a narradora brinca de buscar, uma na outra, a verdadeira cor de seus olhos: Justifica-se esta afirmação, a presença do tema nos romances Ponciá Vicêncio e Becos da Memória.
Hoje, quando já alcancei a cor dos olhos de minha mãe, tento descobrir a cor dos olhos de minha filha. Faço a brincadeira em que os olhos de uma são o espelho dos olhos da outra. E um dia desses me surpreendí com um gesto de minha menina. Quando nós duas estávamos nesse doce jogo, ela tocou suavemente o meu rosto, me contemplando intensamente. E, enquanto jogava o olhar dela no meu, perguntou baixinho, mas tão baixinho como se fosse uma pergunta que para ela mesma, ou como estivesse buscando ou encontrando a revelação de um mistério ou de um grande segredo. Eu escutei quando, sussurrando, minha filha falou: _Môe, qual é a cor tão úmida de seus olhos?
Entende-se aqui a indagação acerca da cor dos olhos da mãe como uma forma de voltar às origens e buscar uma identidade perdida, ou desconstruída, pelo afastamento de suas raízes.
O tom acusatório com a qual a indagação vai se contornando ao longo do conto confirma a perda de identidade e a necessidade de reencontrá-la ou reconstruí-la. Mesmo que algumas lembranças da infância estejam nítidas e presentes para a narradora, a cor dos olhos que escapa de suas lembranças permite pensar nessa fragmentação identitária.
Presente desde o título, "Olhos d'água", a repetição da imagem sempre traz consigo uma nova caracterização, seja da mãe ou da própria narradora.
A cada repetição da indagação, uma nova lembrança emerge das memórias da narradora, desde um momento da infância em que a miséria leva a mãe a inventar jogos para distrair a fome das filhas a lembranças em que os traços da mãe são trazidos à tona com minúcia de detalhes, não deixando escapar nem uma verruga escondida sob seus cabelos ou uma unha encravada do dedinho do pé.
A narradora é a filha mais velha de sete filhas, logo fica implícito as responsabilidades assumida ainda na infância. A linguagem poética chega a tornar leve, mas não apagar, as dificuldades e sofrimentos:
"Era como se cozinhasse, ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento. [...] fervia panela cheia de fome [...] salivar sonho de comida.
A musicalidade é um elemento importante no conto, como em: "Chovia, chorava! Chorava, chovia!"
O conto se mostra circular a partir que o final abre caminho para um novo questionamento sobre a cor dos olhos da mãe. Esta característica pode representar o sofrimento e a perseguição que ainda caem sobre os afrodescendentesem nosso pais e no mundo.
ANA DAVENGA
Narrador em terceira pessoa e onisciente narra a história de amor e morte de Ana e Davenga. O conto é marcado pelo ritmo do samba, do candomblé ou do coração. Davenga era um malandro, assaltante e tipo um chefe do morro. Ana era uma dançarina(bailarina) que sambava quando Davenga a encontrou. No início não era bem aceita entre o grupo de bandidos e mulheres que ficavam junto a Davenga. Maria Agonia era crente que pregava na praça com seu pai pastor, de Bíblia na mão e tudo, mas que sempre se entregava aos prazeres de Davenga. Por não querer morar com ele e esnobá-lo, acabou assassinada. A irmandade no crime, quando um precisa, o outro ajuda. Ana encarna as milhares de mulheres de homens no crime. Mora em barraco no morro, recebe constantes batidas policiais:
"Ana sabia bem qual era a atividade de seu homem. Sabia dos riscos que corria ao lado dele. Mas achava também que qualquer vida era um risco e o risco maior era o de não tentar viver". A inversão usada em "E naquela noite primeira..." é uma forma de explicitar a ideia da noite que inicia a vida dos amantes. O fim do conto é marcado com grande ironia pelo fato de Davenga preparou uma festa de aniversário para Ana, a primeira da vida dela, e na mesma noite ambos são mortos pela polícia.
DUZU-QUERENÇA
Duzu é uma mendiga que relembra sua trajetória, do dia que chegou à cidade grande ao momento que é narrada a história. Ela chega de outras terras com o pai, um pescador sonhador que migra em busca de uma vida melhor para sua família. No entanto, a esperança de uma vida digna se perde nas malhas da cidade grande. Duzu foi trabalhar em casa de família com a promessa da patroa que estudaria, mas a dona não deixou e acabou se tornando prostituta. Querença, neta de Duzu, é que reencontrar os sonhos. Suas estrelas não são apagadas como as da avó. Ela é a esperança de realização dos sonhos que Duzu não conseguiu ter. O conto Duzu - Querença apresenta a dura realidade dos marginalizados e despossuídos econômica e socialmente. Aqui Conceição não só rompe com a estética do belo, quando descreve o cotidiano do favelado e escancara a sujeira e a pobreza: "Duzu lambeu os dedos gordurosos de comida, aproveitando os últimos bagos de arroz que tinham ficado presos debaixo de suas unhas sujas."(p.29). Expõe também a frágil relação que existe entre centro e periferia, entre negros e brancos, entre a cultura do dominante e do dominado: "Um homem passou e olhou para a mendiga, com asco. Ela devolveu um olhar de zombaria . O homem apressou o passo, temendo que ela se levantasse e viesse lhe atrapalhar o caminho". É interessante apontar o fosso social que separa essas duas personagens iniciais. A convivência dessas diferentes realidades é conflituosa, pois há um aparente consenso, uma não aceitação mútua do diferente, percebe-se no gesto do transeunte, a confusão entre diferença e inferioridade. A velha mendiga do conto revela, através das lembranças, o universo "natural" da mulher negra e marginalizada. Quando criança seguiu um caminho predestinado, remanescente do período escravocrata, e que ainda se perpetua nas camadas mais pobres da população - o serviço doméstico, quase que naturalmente reservado à mulher/menina negra: "... Na cidade havia senhoras que empregavam meninas" (p.30).E quando jovem, se bonita, ao serviço sexual, onde convivem com a brutalidade, a violência e a exploração: "Duzu morou ali muitos anos e de lá partiu para outras zonas. Acostumou-se aos gritos das mulheres apanhando dos homens, ao sangue das mulheres assassinadas. Acostumou-se às pancadas dos cafetões, aos desmandos das cafetinas. Habitou-se à morte como forma de vida" (p.33). Embora seja um conto de narrativa crua, este nos oferece um lampejo de esperança quando percebemos em Querença o sonho da avó se tornando possível. Soa como uma transferência ou um legado, a responsabilidade de conseguir uma vida melhor e a neta capta a mensagem: E foi no delírio do avó, na forma alucinada de seus últimos dias, que ela. Querença, haveria de sempre umedecer seus sonhos para que eles florescessem e se cumprissem vivos e reais. Era preciso reinventar a vida. Encontrar novos caminhos. Não sabia ainda como. Estava estudando, ensinava as crianças menores da favela, participava do grupo de jovens da Associação de Moradores e do Grêmio da Escola. Intuía que tudo era muito pouco. A luta devia ser maior ainda... (p.37).
MARIA Conto curto pouco mais de três páginas. Maria empregada doméstica volta para casa depois de uma festa (hora extra) na casa de seus patrões. Carrega consigo os restos da festa para os filhos. Entra na condução a qual sofre um assalto. Um dos assaltantes era pai de seu filho que pergunta pelo garoto. No final do assalto, alguns passageiros acusam Maria de participar de cúmplice dos assaltantes. Maria é linchada até a morte. O enredo é bem comum dos noticiários policiais com o crescimento da intolerância nos grandes centros. As pessoas se colocam no papel de acusação, de juiz e de executor. Maria é um nome comum no Brasil, este caráter genérico ajuda a entender que a exploração do trabalho da doméstica e o julgamento de pessoas negras e pobres formam a realidade brasileira Maria segue a trajetória de tantas outras Marias que também são abandonadas com os filhos e tendo que se virar para sustentá-los. Ter filhos de homens diferentes é uma realidade nas regiões mais pobres, como acontece com a personagem. O narrador é onisciente e revela os pensamentos e as lembranças da personagem. A preocupação dela se os filhos gostariam de melão revela a limitação alimentar deles. O fato de um jovem negro ter incentivado as agressões à Maria serve para mostrar como o sistema é cruel. As pessoas acabam não percebendo que convivem com as mesmas dificuldades daquela que é agredida. Selva de pedra.
QUANTOS FILHOS NATALINA TEVE?
Conto narrado em terceira pessoa e com onisciência. Conta a história de Natalina e suas gravidez. Não podemos falar filhos, pois dos quatro que ela pariu, apenas um ela quis para ela. A primeira gravidez foi acidental aos 14 anos com seu namoradinho Bilico. "Brincava gostoso quase todas as noites com seu namoradinho e quanto deu fé, o jogo prazeroso brincou de pique- esconde lá dento de sua barriga". Não queria o filho, tentou evita-lo de todas as formas. Porém quando a mãe disse que a levaria para Sá Praxedes, uma espécie de parteira que fazia abortos, Natalina fugiu. Uma parte que apresenta a inocência da menina foi quando confundiu prisão de ventre com gravidez e tomou chá errado. Não podia ficar com a mãe, afinal tinha vergonha e além disso já moravam na casa a mãe, o pai, ela e mais seis irmãos. O primeiro filho de Natalina, nome ligado à ideia de nascimento, ficou com a enfermeira do hospital onde deu a luz. O segundo filho, também acidental, da relação com o trabalhador da construção civil, Tonho, também foi abando nado por ela. Embora o rapaz tenha ficado feliz e proposto a construção de uma família com ela, porém esta não era a vontade de Natalina. Tonho foi embora com o filho, voltando para sua terra. O terceiro filho foi um pedido do casal para quem Natalia trabalhava. Eles viajavam muito o que fazia a protagonista até se sentir dona da casa. Como o casal não conseguia ter filhos, a patroa pediu que Natalina se deitasse com seu marido para que ela engravidasse um filho para eles. Foi a pior gravidez dela. Foi tratada com todo zelo pelo casal, mas vomitou até na hora do parto e quase morreu. Não teve leite no peito e logo foi esquecida por eles. O quarto filho veio depois de um sequestro de bandidos que a confundira com outra mulher, pois perguntavam para ela onde estava seu irmão. Como ela há muito já se afastara da família negou que houvesse um irmão. Mas eles não se convenceram e ficou a cabo daquele que estava no volante eliminar Natalina. Antes porém ele a violentou e depois do gozo, em uma distração, deixou o revólver cair no chão. Natalina pegou matou o seu sequestrados. Mas a semente invasora desse homem já estava guardada e ela engravidou. O toque de sarcasmo está no fato que o filho feito na violência foi o única que ela quis para ela, principalmente por não ter que o dividir com ninguém. " Brevemente iria parir um filho. Um filho que fora concebido nos frágeis limites da vida e da morte.
Conceição Evaristo aborda neste conto a sexualidade feminina com a mesma crueza com que Machado problematiza a maternidade em "Pai contra mãe" Nascida na pobreza e marcada pela carência de afeto e informação, a adolescente favelada torna-se mãe precoce obrigada a entregar os filhos indesejados, num processo de rejeição e embrutecimento que passa até pela "barriga de aluguel" para o feto surgido do sexo com o patrão. O calvário de Natalina atinge um nível tragicamente irônico quando do novo estupro da garota, a que se segue o assassinato do agressor pela vítima. A jovem foge, mas "guarda a semente invasora" daquele homem, que logo frutifica. Ao final, constata que o filho estava para arrebentar no mundo a qualquer hora. Estava ansiosa para olhar aquele filho e não ver a marca de ninguém, talvez nem dela. (...) Sabia que o perigo existia, mas estava feliz. Brevemente ia parir um filho. Um filho que fora concebido nos frágeis limites da vida e da morte. (EVARISTO, 1999, p. 28) Como se vê, sexo, maternidade e violência não se separam, mas agora vitimam também o homem. O texto afro-brasileiro inscreve a mulher num outro diapasão, no qual o corpo mais do que nunca expressa sua condição de vítima de uma ordem social calcada na exploração e no preconceito.
BEIJO NA FACE
Narrador em terceira e com onisciência que revela todos os pensamentos, lembranças e fantasias da protagonista Salinda. A história começa após o retorno de uma viagem Chã de Alegria, ela ainda não desfizera às malas e as crianças haviam ficado com a tia Vandu. As lembranças da noite de amor no dia anterior não saiam de sua cabeça: "Salinda tombou suavemente o rosto e com as mão em concha colheu, pela milésima vez, a sensação impregnada do beijo na face. Depois com um gesto lento e cuidadoso, abriu as palmas das mãos, contemplando-as. Sim, lá estava o vestígio de carinho. Tão tênue, como os restos de uma asa amarela, de uma borboleta-menina". Salinda e o marido já haviam se separado antes. Ela já havia tido vários amantes. Nessa nova união, o marido se tornou muito controlador e vigiava cada passo que ela dava e lógico tinha muito ciúme. Salinda até assume que viveu bons momentos com ele, mas agora só pensa em se separar dele assim que as filhas crescerem. A saída para seu desejo de carinho e prazer se contruiu na cumplicidade da tia Vandu, em um dos quartos Chã da Alegria onde recebia seu amantes. Na última viagem para casa da tia, levou os filhos ao circo e lá viu a equilibrista, a atração que ela mais gostava no circo, pois via alguma semelhança com sua vida. E foi com esta equilibrista que ela conheceu uma nova forma de amor. "No princípio a aprendizagem lhe custara muito. Acostumada ao amor em que tudo ou quase tudo pode ser gritado, exibido aos quatro ventos, Salinda perdeu o chão. Habituada ao amor que pede e permite testemunhas, inclusive nas horas do desamor, viver silente tamanha emoção, era como deglutir a própria boca, repleta de fala, desejosa de contar as glorias amorosas. E por que não gritar, não pichar pelos muros, não expor em outdoor a grandeza do sentimento? Não, não era ostentação que aquele amor pendia. O amor pedia o direito de amar somente". O marido descobre e vai para casa da mãe. Salinda sabia que uma guerra começaria pela guarda dos filhos, mas ela não tinha mais temor. Sentiu porém um certo alívio. E ao olhar para o espelho viu refletido o rosto da outra, ambas se pareciam. Altas, negras e com dreads no cabelo. Um amor entre iguais. Neste conto nota-se a configuração de formas alternativas de amor e prazer, das quais o homem está excluído, onde o homoerotismo surge em registro terno para se contrapor à conjugalidade da família monogâmica desprovida de desejo e afeto. A literatura afrobrasileira dessas autoras subverte imagens e procedimentos cristalizados no discurso hegemônico e envereda por novas representações do amor, em que um outro erotismo marca presença.
Deste modo, uma nova mulher e um novo homem vêm surgindo aos poucos nos escritos de autoria afrodescendente. E surgem para agregar um perturbador suplemento de sentido ao conjunto de figurações marcadas desde sempre pela expressão das fantasias sexuais aqui plantadas pelo discurso do colonizador, e a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pela e da memória.
LUAMANDA
Outro conto em terceira pessoa em que o narrador é onisciente e nos apresenta as lembranças eróticas-amorosas da protagonista. A protagonista, Luamanda, é uma cinquentona que aparenta ser mais jovem e gosta que os outros pensem assim. Em um processo nostálgico, começa a refletir sobre sua vida e, principalmente, sobre suas paixões. A descoberta do amor e do erotismo passa por fatos e questionamentos dela. "Amor dói?" - primeira paixão, ainda menina, terminada com a surra da mãe. "Amor é terra morta?" - tinha onze anos e corpão de moça e seus amores eram distantes, platônicos. "Amor é terremoto?" - tinha treze anos e teve sua primeira relação. "Amor é um poço misterioso onde se acumulam águas-lágrimas?" - Ela teve sua paixão e cinco filhos. Fica implícito a ausência do homem. "O amor se guarda só na ponta de um falo ou nasce também dos lábios vaginais de um coração de uma mulher para a outra?" - Luamanda teve sua primeira relação com outra mulher. "O amor não cabe em um corpo?" - Ela já madura teve uma relação com um jovem, marcada pela intensidade e virilidade dele. "O amor é um tempo de paciência?" - Ela se apaixonou por um velho e a relação exigia a espera e o contemplamento do corpo, das rugas e o embranquecimento do pelo do outro. "O amor comporta variantes sentimentos?" - Luamanda teve que conviver com as cicatrizes de uma agressão de um amante que não soube aceitar o fim da relação. E durante tempo se recolheu em si mesma. Nessa reflexão, mesmo sendo mãe, avó, companheira, amiga e amante, afirma que ainda tem uma alma- menina. "Alma menina no tempo? Não, ela não se envergonhava de seu narcisismo". Luamanda ao contemplar o espelho se lembrou do poema de Cecília Meireles retrato, onde a voz poética não se reconhecia naquela imagem refletida, perguntou onde estava o que era antes. Porém, a protagonista não era assim, se reconhecia e se autodescobria sempre.  Esse fluxo de consciência da protagonista é interrompido e ela lembrou-se do compromisso pelo qual se preparava. As portas para o amor estavam abertas. Outro conto que retrata a independência amorosa e sexual da mulher. O homem é mero coadjuvante que não recebe nem nome. A condução é toda feita pela mulher, alterando assim o lugar que sempre fora destinado ao homem.

Um conto que faz reflexão à correría do dia-dia nas grandes cidades. A personagem Cida - embora saída do interior, onde o ritmo de vida é cadenciado e vivido - vive a rotina de trabalho, estudo e pouca entrega afetiva que os grandes centros nos impõe. Embora a história deixe pensar, o início, que Cida é alguém desconcertada para a vida pacata de sua cidade natal, ela tinha a alegria e a plenitude de sua vida lá. "Cida desse pequena guardava um sentimento de urgência. Seu corpo maturou-se no sangue mensal de mulher. As brincadeiras prediletas, ainda nessa época, eram a de apostar corrida com as crianças e a de desafiar grandes e pequenas, no tempo gasto para a execução de qualquer tarefa". Foi ao Rio de Janeiro a primeira vez aos 11 anos e bebeu enlouquecida a velocidade de tudo e todos. Aos 17, por causo de trabalho, mudou-se definitivamente para o Rio de Janeiro. Incorporou-se à cidade logo de cara. Ela fazia tudo rápido. Ir para trabalho, voltar do trabalho, cooper, prazer, amizades, missa, banco etc. Nado poderia lhe tomar tempo. Mas um dia, sem perceber, diminui seu ritmo e viu o mar pela primeira vez e uma profunda reflexão e admiração lhe caiu. Avistou um nadador a quem julgou rico para desperdiçar o tempo. Lembrou- se dos mendigos que eram extremamente pobres e não mediam o tempo. " Ou o tempo não se media com moeda, ou as horas, os dia, os anosnão seriam medidas justas do tempo". Cida se permitiu pisar na areia e contemplar mais um pouco o mar. E entre pensamentos chegou à porta de seu prédio. Pedro, seu amigo, esperava para lhe dar carona e a indagou sobre o atraso no cooper: "Ela estava atrazadérrima”. O final do conto quebra a rotina, o ciclo no qual Cida estava presa. Ela percebera que dera tempo demais para todas as outras coisa. Já tinha vinte nove anos e, enfim, resolveu dar um tempo:
Se distraíra, esquecera das horas. Ele poderia ir, já estava bastante atrasado. Hoje ela não iria trabalhar, queria parar um pouco, nâo fazer nada de nada talvez. E só então falou significativamente uma expressão que tantas vezes usara e escutara. Mas falou tão baixinho, como se fosse um momento único de uma misteriosa e profunda prece. Ela ia dar um tempo para ela.
ZAÍTA ESQUECEU DE GUARDAR OS BRINQUEDOS
Conto que faz uma abordagem do cotidiano dos morros e aglomerados. Pobreza, tráfico e violência. Zaíta é a protagonista, tem uma irmã gêmea e parte atrás da irmã para recuperar sua figurinha de uma garotinha abraçada em flores. Ela procurou na caixa de restos de brinquedos e outras coisa com que brincava e deixou tudo espalhado, mesmo sabendo que a mãe não gostava. Acaba morrendo em um tiroteio entre o grupo de seu irmão e a polícia. A família de Zaíta é formada pela sua mãe (Benícia), seu pais, sua irmã gêmea, seu irmão que estava no crime e o irmão mais velho que estava no exército querendo fazer carreira. Os rapazes eram filhos de outro pai, igualmente pobre como o pai dela. Conceição Evaristo aborda aqui a realidade de inocentes morto na favela. A falta de preocupação com moradores, crianças ou trabalhadores. A miséria leva ao crime quanto a desigualdade (o salário recebido pela mãe por seu trabalho) é inferior que as oportunidades que o tráfico oferece (o dinheiro que seu filho tem). Mesmo o irmão que está no exército depende da ajuda da mãe. Um toque de inocente sarcasmo acontece quando a irmã gêmea de Zaíta a vê morta não consegue entender a gravidade da situação, levando a consideração que a raiva da mãe para ela era mais grave ainda, grita para sua irmã : " - Zaíta, você esqueceu de guardar os brinquedos". As mulheres ficcionais apresentadas pela escritora Conceição Evaristo não se cansam de nos surpreender e, o público já deve refletir sobre as três forças femininas presentes em "Zaita esqueceu de guardar os brinquedos" todas elas tecidas pelo tom sutil da narradora moldada por Conceição Evaristo e surpreendidas quando ultrapassam algumas das imaginárias, mas não irreais, linhas de "cor", gênero e classe. As principais personagens de "Zaita esqueceu..." são crianças, duas meninas, moradoras de uma das centenas de periferias espalhadas nas metrópoles... Os aspectos mais evidentes são o ambiente no qual se passa a trama (um bairro na periferia de alguma grande cidade), personagens negros e/ou afrodescendentes, a pobreza, o crime, o tráfico de drogas. Porém, os mesmos elementos podem ser encontrados em textos de autores brancos, de classe média alta... Nenhum deles, entretanto, teceu uma trama com a delicadeza e perspicácia de Conceição Evaristo. Passo a palavra à narradora elaborada por Conceição Evaristo para a apresentação do núcleo familiar de Zaita: A mãe de Zaito estava cansada. Tinha trinta e quatro anos e quatro filhos. Os mais velhos já estavam homens. O primeiro estava no exército. Queria seguir carreira. O segundo também. As meninas vieram muito tempo depois, quando Benícia pensava que nem engravidaria mais. Entretanto, lá estavam as duas. Gêmeas. Eram iguais, iguaizinhas. A diferença estava na maneira de falar. Zaita falava baixo e lento. Naita, alto e rápido. Zaita tinha nos modos um quê de doçura, de mistérios e de sofrimento. Fica explícita a falta de nomeação dos irmãos de Zaita, retomando o recurso utilizado por Graciliano Ramos, em Vidas secas, os filhos não possuem nomes próprios ("o menino mais novo" e "o menino mais velho"). Essa metonimização possibilita algumas conjecturas: no caso dos filhos de Fabiano e Sinhá Vitória uma hierarquização pela experiência, por tempo de estada naquele mundo de escassas palavras. Quanto aos filhos homens de Benícia indicaria uma indeterminação quanto às possibilidades de futuro para ambos. De acordo com as estatísticas do local eles seriam os alvos preferenciais das balas sem ou com endereço certo: jovens negros, moradores de periferia e pobres... Outro elemento que se destaca no tocante aos irmãos é a irônica referência, feita pela narradora, às escolhas por carreiras distintas no campo militar: lutariam sob bandeiras opostas... Um era soldado efetivo do Exército Brasileiro, outro se sentara praça em diferente "arma": "soldado do morro"... Já a sonoridade presente no nome de cada uma das gêmeas remete à língua árabe. Enquanto Naita seria a musicalidade agitada e aguda de algumas composições árabes, Zaita seria blues ou samba-canção. O fato de serem gêmeas idênticas possibilita ainda uma leitura a partir da tradição ioruba: elas são ibejis (gêmeas em ioruba). E mais importante: Zaita seria um abiku - criança nascida para morrer... O desenvolvimento e desfecho da trama praticamente ficam por conta da voz narrativa e de Naita que se propõe a encontrar a irmã e pedir-lhe que retornasse para casa. Ela saíra e deixara de cumprir uma tarefa importante que, no entanto, permanecerá inacabada.
DI LIXÃO
No conto Di Lixão, a autora narra à história de um garoto pobre, que morava nas ruas e sem perspectiva de vida. No entanto, destaca o esforço de sua mãe que ainda tentou o alertar para que lutasse e seguisse outro caminho na vida, diferente daquele que ela já estava acostumada a levar. Mesmo com o alerta da mãe, o garoto não dá ouvidos a seus conselhos, assim como não acha que ela seja um exemplo para ele devido a vida que levou. O garoto havia ganhado o apelido "Di Lixão", devido a sua mania de chutar os latões de lixo na área onde circulava, diante das peripécias da vida acaba morrendo ainda jovem, aos 15 anos de idade, vítima que foi de um pequeno tumorzinho na boca, assim como de não ter buscado ajuda a tempo. Não gostava mesmo da mãe. Nenhuma falta ela fazia. Não aguentava a falação dela. "Di, vai para a escola! Di, não fala com meus homens! Di, eu nasci aqui, você nasceu aqui, mas dá um jeito de mudar o seu caminho!". Desocupada que vivia querendo ensinar a vida para ele. Depois, pouco adiantava. Zona por zona, ficava ali mesmo. Lá fora, o outro mundo também era uma zona. Sabia quem tinha matado a mãe. E daí? O que ele tinha com isso?[...] O dente de Di Lixão latejava compassadamente. Ele era uma dor só. As dores haviam se encontrado. Doía o dente. Doíam as partes de baixo. Doía o ódio. O dente latejou fundo no profundo da boca. Dor de dente matava? Não sabia. Sabia, porém, que ia morrer. Mas isso também, como a morte da mãe, pouca importância tinha.Às nove horas o rabecão da polícia veio recolher o cadáver. O menino era conhecido ali na área. Tinha a mania de chutar os latões de lixo e por isso ganhara o apelido. Sim! Aquele era o Di Lixão. Di Lixão havia morrido.
O conto denuncia o abando de crianças à sua própria sorte. Di lixão morreu sozinho, entre pessoas que iam e vinham sem notar sua presença. Foi uma morte sofrida e silenciosa. Só foi notado pelas pessoas quando morto. Foi levado pelo rabecão. Ele era um estorvo vivo ou morto para a cidade egocêntrica e cega. Como diz Chico Buarque: E se acabou no chão feito um pacote tímido/ Agonizou no meio do passeio náufrago/Morreu na contramão atrapalhando o público
LUMBIÁ
O menino negro Lumbiá que trabalha nas ruas de alguma cidade urbana vendendo amendoim e flores, é observador atento do burburinho cotidiano dos transeuntes, e também das vitrines hipnóticas em seus diversos apelos de compras. Na época do Natal, fascinado pelas luzes e cenas de presépio exposto numa loja, adentrou no recinto aproximou-se da imagem do "Deus-menino", que estava nu e de braços abertos, repousado na manjedoura. Lumbiá sentiu semelhança e se identificou em necessidade de afeto e acolhida que aquela imagem despertava nele. Retirou a imagem da cena do presépio para agasalhá-la e formar uma outra cena, assim descrita por Conceição Evaristo: "Tomou-o rapidamente nos braços. Chorava e ria. Era seu. Saiu da loja levando o Deus-menino. O segurança voltou. Tentou agarrar Lumbiá. O menino escorregou ágil, pulando na rua. O sinal I O carro! Lumbiá! Pivete! Criança! Erê, Jesus-menino. Amassados, massacrados, quebrados! Deus- menino, Lumbiá morreu!". O conto apresenta a denúncia de um genocídio não declarado e banalizado. Nos grandes centros urbanos em que é comum a invisibilidade social, morrem-se entre os profissionais de saúde que são estranhos ao moribundo ou moribunda, ou seja, uma morte socialmente asséptica e solitária
Os AMORES DE KIMBÁ
O conto retrata um triângulo amoroso entre Zezinho (Kimbá), Beth e Gustavo que acaba com ambos mortos. Zezinho era amigo de Gustavo que o apelidou de Kimbá (nome de alguém na África que lhe causava saudade). Zezinho morava na favela, em um barro cheio de gente. Família grande. O irmão mais velho que era alcoólatra, duas irmãs menores, avó e mãe. Não gostava de lá, queria ter a vida luxuosa do amigo. O conta retrata uma agonia constante em favela, a chuva forte que pode fazer escorregar o barranco e matar. A mãe passa a noite acordada e a avó só fica rezando. Beth foi apresentada a Kimbá por Gustavo, era prima dele. Em um encontro os três se relaciona sexualmente. Kimbá se surpreende por ser desejado também por homem. Tenta entender todo aquele sentimento que conflitavam dentro dele. A temática aborda vários temas como pobreza, a falta de infraestrutura nas favelas e a desigualdade social. Zezinho (Kimbá) foi atraído para esse triângulo amoroso pelo desejo de se ver fora da favela, de ter uma vida melhor diante da vida abastada dos outros dois. Chega a odiar a família por ele estar na favela e ter que conviver com suas manias, vícios etc.
Embora a relação de Kimbá e Gustavo seja descrita na narrativa, não é possível afirma que esta seja a opção sexual dele. Ele estava descobrindo tudo e em relação ao amigo fica implícito que consentia por um certo interesse. Gostou mesmo foi de Beth. Na impossibilidade de escolher entre Gustavo ou Beth, resolve selar o pacto de amor deles com a morte por envenenamento. Beth tinha dinheiro, O amigo, dinheiro e fama. Kimbá, a noite e o dia. A decisão seria, portanto, de Kimbá, que não tinha nada a perder. Só a vida. Era só ele querer. Já que não estava dando para viver, por que não procurara morte? Seria fácil. Primeeira Beth, depois o amigo e em seguida ele. A morte selaria o pacto de amor entre eles. A morte pelo amor dos três.
EI, ARDOCA
O conto apresenta um narrador em terceira pessoa, o qual possibilita ao leitor entender melhor a história e o sofrimento do personagem negro. Ardoca representa os afrodescendentes moradores de subúrbio que diariamente passam por dificuldades, como percebemos no seguinte trecho: Cresceu em meio aos solavancos, ao empurra-empurra, aos gritos dos camelôs, às rezas dos crentes, às vozes dos bêbados, aos lamentos e cochilos dos trabalhadores e trabalhadoras cansadas. Assistiu inúmeras vezes, como testemunha cega e muda, a assaltos, assassinatos, tráfego e uso de droga nos vagões superlotados. Ardoca desde criança utiliza o trem como único meio de transporte, o que sugere uma situação financeira desfavorecida. O conto também mostra um conflito do personagem consigo mesmo, pois se sente cansado da vida que leva no subúrbio. Assim, resolve por fim ao seu "sofrimento" interior e toma uma decisão: Ardoca abandonava o corpo, que pendia lentamente para um lado. O passageiro do banco próximo encolheu o pé. Um camelô, que vendia água, pulou por cima dele, para atender uma pessoa. Ardoca respirava com dificuldade, debaixo do negro de sua pele um tom amarelo desbotado aparecia. [...] Naquela tarde, ainda no trabalho ele resolvera tudo. Num gesto desesperado e solitário bebera lentamente um veneno e decidira levantar para morrer no trem. O narrador descreve o sofrimento de um homem negro e suburbano. Por um momento passamos a alimentar a esperança de que a vida desse homem está prestes a mudar, pois há uma pessoa tentando ajudá-lo. “Nesse momento entrou no vagão um passageiro correndo e gritando. Desesperado, saiu empurrando em direção ao rapaz desfalecido, chamando por ele: - Ei, Ardoca! Ei, Ardoca!" Mas a história é outra, e o homem que socorre Ardoca, na verdade estava o assaltando. Agora o sofrimento parecia ser maior, porque mesmo depois de tentar morrer no trem, ele estava perdendo junto com a vida, o que lhe restou nos bolsos. Por fim, percebemos a intromissão do narrador, em um comentário sentimental: o outro levava os pertences de alguém que já despertencia à vida e jazia no banco da estação. O barulho da máquina sobre os trilhos entoava uma música réquiem de descanso eterno para Ardoca. Amém Este conto pode, legitimamente, ser considerado como pertencente ao corpus literário afro-brasileiro uma vez que atende aos critérios já citados, como: a autoria, visto que se trata de uma escritora negra que busca escrever histórias ficcionais, nas quais se percebe o olhar do negro e não o do branco racista e dono de escravos. Apresenta também o ponto de vista, pois Conceição Evaristo escreve mostrando o olhar da sociedade a respeito dos afrodescendentes e dos próprios personagens negros a respeito da vida que vivem. E, além disso, está evidente que essa escritora escreve com a intenção de ser porta-voz de um público desfavorecido socialmente. Percebe-se, assim, que mesmo sem usar explicitamente a palavra "negro", nem remeter amplamente à descrição de suas peculiaridades físicas, uma narrativa pode ser considerada como literatura negra ao exprimir, como se analisou, anseios e vivências de excluídos, pessoas à margem da sociedade, com os quais os afrodescendentes, por viverem os mesmos problemas, podem se identificar.
A GENTE COMBINAMOS DE NÃO MORRER
O conto varia do narrador em primeira pessoa e terceira pessoa. Apresenta também várias vozes: Narrador, Dorvir, Bica e Mãe. Cada personagem descreve o que está acontecendo na favela e na vida dos outros personagens sob sua ótica. A narrativa é fragmentada, pois não há uma linearidade. O espaço é uma favela em guerra, tiros são ouvidos toda hora. Cada personagem narrador está em um ponto. Bica lembra do irmão morto porque falou demais. A mãe gostava de novela, as quais ela implicava, mas sabia que a mãe sabia separar muito bem ficção da realidade. Tinha acabado de dar a luz e tinha muito leite, logo alimentava também outras crianças. Se preocupava com seu homem, Dorvir. Achava que o irmão deu motivo para morrer. A mãe fala sobre a televisão e sua programação preferida, novela. Lembra do filho e das brincadeira que fazia com ele e vice-e-versa. Se preocupava com o destino de Bica, sua filha. Não acreditava que Dorvir seria bom futuro para ela e o neto. Dorvir está encrencado pois emprestou dinheiro do tráfico, dos homens de Baependi, e a pessoa não lhe pagou. Sabia que seu fim estava próximo, mas queria acertar contas com o seu devedor primeiro. Comenta sobre o prazer de viver no perigo que chegou a gozar nas calças quando, pela primeira vez, atirou. O conto termina com a narração de Bica: Deve hover outro caminhos, saídas mais amenas. Meu filho dorme. Lá fora a sonata seca continua explodindo balas. Neste momento, corpos caídos no chão, devem estar esvaindo em sangue. Eu aqui escrevo e relembro um verso que li um dia. " Escrever é uma maneira de sangrar". Acrescento: e de muito sangrar, muito e muito...
O conto retrata elementos e características de uma comunidade negra que passa por uma crise. A primeira parte do conto se refere ao momento em que as personagens se encontram desamparadas. A segunda que se inicia com a notícia do nascimento de uma criança (Ayoluwa), é o momento em que se devolve à comunidade a esperança. A narração ocorre em primeira pessoa o que revela na literatura negra a determinação do narrador em desvencilhar-se do anonimato e da "invisibilidade" a que o relegou sua condição de descendente de escravos ou de ex-escravos. Na grande maioria dos casos o eu individual funde-se ao nós coletivo, evidenciando um empenho em delinear uma identidade comunitária. O narrador deste conto participa e compartilha com a comunidade angústias e anseios, e a utilização da primeira pessoa do plural corrobora essa afirmação: "À noite, quando nos reuníamos sem volta de uma fogueira mais de cinzas do que de fogo, a combustão vinha de nossos lamentos" Nesta poética, o eu-enunciador, ao se declarar negro e evidenciar essa identidade, deixa de ser objeto da escritura para se tornar sujeito; ele conta as inquietações de sua comunidade, sem tomar de empréstimo a voz de um branco ou ser referido como "o outro", aquele que é observado e sobre o qual se fala. Partindo do momento presente, o narrador volta ao passado, às suas memórias, para descrever esta crise que tomou conta de sua comunidade e que, no momento da narração, já havia sido superada devido ao nascimento de mais um membro: "Quando a menina Ayoluwa, a alegria do nosso povo, nasceu, foi em boa hora para todos". O narrador pormenoriza as lembranças dos tempos difíceis, em que os dias "passavam como um café sambango, ralo, frio, sem gosto. Cada dia sem quê, nem porquê. E nós ali amolecidos, sem substância alguma para nos deixar de pé" 0 conto se atem a descrever os elementos da comunidade que foram afetados pela crise. O depois ou o antes disso configura-se como uma incógnita e o que sabemos, ao final da narrativa, é que o nascimento de Ayoluwa trouxe contribuições para a comunidade, mas este estado pode não ser permanente. A comunidade de que o conto trata é composta por muitos membros e a autora menciona todos eles na tentativa de caracterizar de forma totalizadora a organização social do grupo de ascendência africana. E ela obtém êxito. Através dos nomes selecionados e da explicitação de seus significados, expostos sempre ao longo do texto, podemos deduzir qual o papel desempenhado por cada personagem. Os nomes têm sempre origem africana e o narrador não detalha a função de cada um deles ou se atém a descrições do tipo psicológicas. É a partir do entendimento do significado do nome que podemos reconhecer a função atribuída a cada indivíduo. No dia do nascimento de Ayoluwa, Omolara foi a responsável pelo parto. Para descrever a personagem e para tomarmos conhecimento de sua função de parteira, o narrador assim nos descreve o nome da personagem e seu significado: "E no momento exoto em que a vido milogrou no ventre de Bomidele, Omolara, aquela que tinha o dom de fazer vir as pessoas ao mundo, a conhecedora de todo ritual do nascimento, acolheu a criança de Bamidele" Bamidele e Ayoluwa são as duas principais personagens e representam o momento de restabelecimento da ordem. É a partir do anúncio da gravidez de Bamidele que a comunidade volta a ter esperança. Ayoluwa, "aquele que veio para trazer alegria para o nosso povo" O ciclo não estava em harmonia o que encerra as angústias e descrenças das personagens: "agora nenhuma família mais festejava a esperança que renascia no surgimento de sua prole" Os personagens com maior idade também carregam consigo a força da resistência negra; estes indivíduos representam a história através de uma outra versão e nesta o protagonismo do homem negro é ressaltado. Conforme o narrador nos descreve, no momento da crise: Os mais velhos acumulados de tanto sofrimento olhavam para trás e do passado nada reconheciam no presente. Suas lutas, seu fazer e saber, tudo parecia ter se perdido no tempo (...). Todos estavam enfraquecidos e esquecidos da força que traziam em seus próprios nomes. As velhas mulheres também. Elas, que sempre inventavam formas de enfrentar e vencer a dor, não acreditava mais na eficácia delas próprias. Deslembravam a potência que se achava resguardada a partir de suas denominações 0 conto "Ayoluwa, a alegria do nosso povo" e a obra em geral permitem observar a emergência da literatura negra e a revelação de uma poética que busca corporificar as demandas dos afrodescendentese o processo de afirmação da identidade destes.
A Obra Olhos D'água contribui enquanto literatura que desmantela o discurso centralizador que coloca o branco em uma posição superior e os negros, índios e asiáticos, inferior; que relaciona a brancura de um indivíduo ao seu grau civilizatório e à sua capacidade evolutiva.

Análise A falência, Júlia Lopes de Almeida


A Autora: Júlia Valentim da Silveira Lopes de Almeida nasceu no Rio de Janeiro, em 24 de setembro de 1862. Poeta, cronista, romancista e dramaturga, Júlia Lopes começou a escrever ainda na adolescência, quando foi descoberta pela irmã, que “denunciara” ao pai, o médico português Valentim José da Silveira, produções literárias da autora de A Falência. Mas ao contrário do que esperava a jovem Júlia Lopes – que escrevia às escondidas por acreditar que aquele ofício poderia ser mal visto por seus pais –, o futuro Visconde de São Valentim acolheu com entusiasmo o talento da filha e a inseriu no círculo literário da época. Nos anos 1880, Lopes de Almeida já contribuía com críticas e crônicas literárias para o Gazeta de Campinas, periódico da cidade paulistana, para onde se mudara com a família nos anos 1860. Enquanto morava em Portugal, onde passara a residir a partir de 1886, passou escrever também para o Gazeta de Notícias, periódico carioca. Em 1887, de volta ao Rio de Janeiro, casa-se com o escritor português Filinto de Almeida (1857 – 1945), ao lado de qual passa a conviver com os principais nomes da literatura daqueles anos. Lopes de Almeida, então, destaca-se pela produção de dramas, romances e crônicas, que tratam principalmente da figura feminina na sociedade brasileira, quando a publicidade em torno da escrita produzida por mulheres era raríssima nesse meio dominado pelos homens. Nesse período, a escritora fez parte do grupo de escritores que fundou a Academia Brasileira de Letras, mas ficou de fora de sua primeira formação. Em seu lugar, tomou posse o marido, que, em entrevista concedida ao cronista João do Rio (1881 – 1921), reconheceu o talento da esposa, afirmando que não era ele “quem deveria estar na Academia [Brasileira de Letras], era ela”. Ao lado da irmã, a escritora Adelina Lopes Vieira (1865 – 1918), Júlia Lopes de Almeida também foi pioneira na produção de literatura infantil no Brasil, tendo publicado, entre outros títulos, a antologia Contos Infantis, que veio a lume em 1886. Júlia Lopes de Almeida faleceu em 30 de maio de 1934, na mesma cidade onde nascera. Principais Obras: A Viúva Simões (1897 – Romance), A Falência (1904 – Romance), A Intrusa (1908 – Romance), Eles e Elas (1910 – crônicas).

A Obra: Publicado em 1901, o romance urbano A Falência, de Júlia Lopes de Almeida, discute a condição da mulher brasileira no final do século XIX, em uma sociedade machista e hipócrita, conservadora e provinciana, que entre outras distrações, entretém-se bisbilhotando e divulgando principalmente os fatos indiscretos sobre a vida alheia. Embora não se declarasse como uma militante da causa feminista, Lopes de Almeida pode ser considerada uma escritora a frente de seu tempo pelo olhar crítico com que encara o tratamento dispensado à mulher na sociedade patriarcal do final do século XIX e início do século XX.
Principais Temáticas: Adultério Feminino: O romance traz como tema central o adultério. O enredo de Almeida não se quer uma visão amoralista do adultério, mas evita se esconder por trás de um farisaísmo superficial e decide não ignorar esse tema delicado. Por meio de uma linguagem realista, crítica, A Falência nos mostra que, enquanto a infidelidade masculina era encarada com certa condescendência pela sociedade, os relacionamentos extraconjugais protagonizados pelas mulheres era alvo de uma severa censura coletiva. Na trama, ao contrário do marido, que matinha um relacionamento com a prostituta Sidônia desde o início do casamento, o relacionamento de Camila com o Dr. Gervásio, ainda que não seja divulgado publicamente – e por isso o marido não toma conhecimento desse caso –, é alvo das constantes recriminações dos conhecidos. Esse é o crítico ponto de vista de Camila no Cap. II, quando desabafa para Gervásio sobre o moralismo dos romances que lia, os quais sempre culpavam as mulheres pelas infrações conjugais. Camila, como uma Emma Bovary dos trópicos, vive um farsesco triângulo da qual para aquela sociedade ela parece ser a única digna de punição. Júlia Lopes de Almeida, embora não apoie o adultério, denuncia que temos aqui dois pesos e duas medidas, ou, como ela mesma afirma em sua obra Eles e Elas, uma “malha” de dois tamanhos, em que a mulher sempre ficara com a parte de tamanho inferior a do homem. Mas o ponto contundente da abordagem desse tema em A Falência é ilustrado pelo do homicídio cometido pelo pai de Catarina e Capitão Rino que matara a esposa quando descobrira que ela matinha um relacionamento extraconjugal. O crime que acabara por ficar impune mostra a intolerância daquela sociedade quando o assunto era a infidelidade feminina e que não tratava com o mesmo rigor as traições cometidas pelos homens, algo tão comum naquela época – o que revolta a jovem Catarina, que jamais perdoara o pai pelo que este fizera. Segundo Ivana Ferrante Rebello, no ensaio “Com malhas de dois tamanhos”, o adultério que já fora tema de diversas narrativas realistas – com destaque para a obra Dom Casumurro (1899), de Machado de Assis – é aqui exposto de forma mais legítima na obra de Lopes de Almeida: “Ainda que o criador de Capitu tenha legado à literatura brasileira uma galeria de mulheres fortes que, por via da ironia ou do deboche, desestabilizaram os padrões e convidaram aos questionamentos, a questão  do  adultério  feminino  –  tão fortemente arraigada nos princípios morais da sociedade civilizada – só teria tratamento diferenciado e mais abrangente na voz de uma mulher.”
O poder das aparências:  Em uma sociedade provinciana, os personagem e fatos apresentados em A Falência resultam em realista metonímia da elite brasileira do século XIX. Na verdade, por trás dessa contextualização geográfica e cultura, o que obra aborda é tema inegavelmente universal: a força das aparências em uma sociedade que cria para si um status quo, um ideal de valor a ser reverenciado e buscado: “Sabia Teodoro que o espírito e a posição de um homem se espelham nas roupas; por isso as dele eram sempre graves”. Nesse sentido, a família de Teodoro é fruto desse desejo de criar um quadro social no qual o chefe daquela casa poderia ser contemplado e admirado por todos como um exemplo de lar ideal, vivendo no luxo e no cumprimento aparente das regras comportamentais em voga. Com isso, a frustração de Teodoro com a falência não é só por que se veria em dificuldades para sustentar as filhas, mas principalmente por ver comprometida a imagem de homem bem sucedido de que sempre se gabara diante dos amigos e colegas de profissão. Teodoro é um gastador inveterado, sempre buscando atender a todos os caprichos da mulher e das filhas. Francisco sempre está promovendo festas luxuosas (“festas pantagruélicas”) para mostrar a todos seu poderio econômico: “Todos os anos Francisco Teodoro celebrava os aniversários dele, de sua mulher e dos filhos com banquetes de três e quatro mesas, vinho a rodo e danças até a madrugada”. Seus gestos públicos de caridades, para se apresentar socialmente como um homem “generoso”, suas atitudes espalhafatosas, as roupas compradas para Mila, os brinquedos caros para as gêmeas, as aulas de música para Ruth, tudo era uma forma de publicar seu portentoso patrimônio. Mas não é só ele que vive refém dessa imagem social. Camila também é escrava da imagem social que tenta construir. Depois da falência e da morte do marido, ela se esconde de seus antigos pares de classe social, envergonhada com a miserável condição a que agora precisa se submeter. A obra A Falência denuncia, pois, não só a falência financeira de Teodoro, mas do status quo criado pela burguesia ascendente, vítima das adversidades da vida, que desmascara as poses e as imagens.
Resultado de imagem para a falência julia lopes de almeidaEmancipação feminina: Durante a conversa narrada no Cap. VI tomamos conhecimento do surgimento do pensamento feminista no Brasil: a luta pelo direito ao voto e as críticas, por parte da militância em prol da emancipação feminina, a uma visão reducionista do papel da mulher na sociedade. Esse discurso é representado por Catarina, personagem que optou por não se casar para não se expor a uma “ditadura machista”. Entre as reivindicações do ousado discurso da irmã do Capitão Rino (que para Francisco Teodoro se resumiam na “na emancipação e outras patranhas”), está principalmente o direito à participação ativa da mulher na sociedade. Ao ser indagada por Gervásio se ela “lamenta não ser eleitor”, Catarina, entre irônica e indignada, diz não fala por ela, não está legislando por um desejo egoísta, mas estava pensando nas outras mulheres que “tenham atividade e coragem”. Embora não seja uma “manual” radical de defesa dos direitos feministas, como pregava o nascente movimento do século XIX, ou de apologia do celibato feminino, a obra Júlia Lopes de Almeida defende que a mulher precisaria ser bem educada para não depender das vicissitudes e dos homens e lutar por um lugar em mundo mais justo e respeitoso. Segundo Rebello, no ensaio acima citado, a obra tenta explicitar o regime de desigualdade entre homens e mulheres, onde a mulher era um simples objeto de manipulação de uma sociedade de aparências. A obra evita o tom panfletário, mas, nas palavras de Rebello, “alfineta” um arranjo social em que a mulher era apenas um ser submisso, sustentado por um marido que tinha direito a uma liberdade privada à figura feminina: “[...] ao provedor é dado o dever do trabalho e o direito à liberdade, a quem se deixa prover, o direito ao ócio e o dever da silenciosa resignação”.
Desigualdade social: A obra de Lopes de Almeida apresenta um outro tema muito importante naquele período: a marginalização dos pobres e negros em virtude de um agudo quadro de desigualdade social e econômica. Ainda que em alguns casos a narrativa revele um clima amigável entre os empregados e patrões na casa de Francisco Teodoro – como vemos na relação entre a negra Noca e os integrantes daquela família – ou a aparente amabilidade dispensada pelo mesmo Francisco Teodoro a alguns funcionários da Casa Teodoro – em especial o mal-humorado seu Joaquim –; o que vemos, em linhas gerais, é um claro distanciamento entre as partes que compõem dois extremos dessa sociedade antitética. Se de um lado, temos os ricos – os patrões – gozando uma vida de luxo, inacessível a grande maioria daquela população; de outro, vemos a vida miserável de homens e mulheres que tentam sobreviver de forma digna expostos aos serviços mais degradantes. Várias passagens da narrativa, vemos os personagens pertencentes à elite – o Dr. Gervásio e o Capitão Rino – transitando pelos subúrbios do Rio de Janeiro, vendo com seus próprios olhos a miséria a que estavam relegados os socialmente desprovidos de qualquer assistência social, sustentando os poderosos com sua força de trabalhando e vivendo de migalhas que lhes ofereciam os rico. No Capítulo IV, por exemplo, quando precisa subir o morro da Saúde para prestar assistência médica ao Mota, funcionário de Francisco Teodoro, o arrogante Gervásio precisa encarar a miséria que vitimava essa gente esquecida pelo governo e ignorada pela elite da época. O que para ele poderia ser um “turismo” por um lugar “exótico”, acaba por se transformar em uma visita a um “inferno” para seu mundo de conforto. O que temos, enfim, nessa obra é uma crítica à cegueira da elite que “lucra” com esse agudo quadro de desigualdade, muito bem representado pelo discurso da baronesa da Lage: “Se não fosse coisa de religião, eu não me meteria nisto. Já me têm pedido para organizar festas em beneficio de escolas e de hospitais para pobres, como se na nossa América houvesse pobreza... Creia, minha amiga, no Brasil não há miseráveis, há ateus. Precisamos de regenerar o povo com exemplos de fé cristã”.
Negro e a sociedade pós-abolicionista: Nessa sociedade dominada por uma elite cega, insensível, vemos que, apesar do tratamento dispensado à Noca na casa de Teodoro, o negro ainda é um ser fadado à marginalidade. Habitante dos subúrbios, relegado ao serviço braçal, o negro recém-liberto com a Lei Áurea, ainda é o ser subalterno, sujeito às vontades dos brancos. Ilustra esse regime a forma como é tratada a negra órfã Sancha, que vive em um regime de semiescravidão na casa da avarenta D. Itelvina, e da beata D. Joana. Enquanto a primeira espanca a negra sob qualquer pretexto; a segunda, apesar da aparência de caridade cristã, consente que a aquela perversidade seja perpetuada por acreditar que a negra a roubava, quando, na verdade, quem o fazia era a própria irmã. A vontade de se matar expressa por Sancha, que pede a Noca que lhe compre arsênico, pode ser interpretado como um claro sentimento de impotência do negro ante a consciência de que nesse mundo não havia ninguém que se condoesse com sua situação de oprimido.
Estrutura: Apresentada a partir do foco narrativo de 3ª pessoa, a trama de A Falência é estruturada no tempo cronológico, cobrindo, durante o presente enfocado pelo narrador, aproximadamente três anos da vida dos personagens a partir dos anos de 1891. Mas, ao utilizar do recurso da introspecção psicológica, adentrando no universo mental desses personagens, o narrador nos apresenta vários flashbacks, por meio dos quais nos inteira sobre fatos anteriores ao ano de 1891.
A linguagem proposta nessa narrativa, vemos a predominância de uma linguagem culta (mas não eruditista a ponto de comprometer um entendimento dos fatos narrados) no discurso do narrador, que, apesar de algumas descrições de considerável teor poético – marcas de uma sutil influência das narrativas românticas, principalmente na descrição do ambiente luxuoso da casa de Teodoro e na caracterização de algumas personagens femininas como Camila, Ruth e Catarina –, prevalecem a linguagem objetiva e direta da prosa realista e os traços das narrativas naturalistas. Na fala dos personagens, a autora, busca por dar maior verossimilhança aos diálogos descritos, evita o rebuscamento excessivo e atribui a esses personagens uma linguagem mais espontânea, como “o brasileiro de verdade” se expressa.
Enredo: A narrativa se inicia com a apresentação da Casa de Teodoro, um próspero armazém de depósito e comercialização do café no Rio de Janeiro no ano de 1891. Enquanto os homens – negros e brancos – trabalham no despache e registro das sacas de café que entram e saem do estabelecimento do imigrante português Francisco Teodoro, este se encontra em seu escritório ao lado de João Ramos, Inocêncio Braga, Gama Torres e Negreiro, na costumeira conversa vespertina, tomando um café servido por Isidoro. Os comerciantes falam de política, a alta do café e da prosperidade do orgulhoso Francisco Teodoro, um homem que se gabava ter chegado ao Brasil sem um vintém no bolso, e que depois de muito trabalho, tornara-se um dos mais ricos negociantes de café da capital. Durante essa conversa, Inocêncio fala do Gamas Torres – referido como o Rottschild brasileiro –, destaque entre os negociantes de café, por ter ascendido naquele ramo utilizando-se unicamente da percepção inteligente das oportunidades, da esperteza (“conquistas nobres do pensamento e do cálculo”) com que soube aproveitar dos benefícios das especulações financeiras, ao contrário de outros que, como Teodoro, trabalhava “como um negro”, seguindo a “rotina de seus antepassados analfabetos”. Embora não se mostre ofendido, Francisco Teodoro se sente ressentido diante da prosperidade daquele homem que construíra a sua fortuna invejável sem ter passado por todo o sofrimento que ele, Francisco, passara. Despedidos os companheiros de ramo, Francisco não esconde certo sentimento de inveja do Gamas Torres, que parecia não ter medo de arriscar naquele mercado volátil das bolsas de valores.
A caminho de sua casa em Botafogo, Teodoro se lembra de tudo que passara desde sua chegada ao Brasil, a vida de pobreza e trabalho duro, morando em um sobradinho miserável “do beco de Bragança”, à consolidação de seu patrimônio como negociante de café e, depois da comenda recebida, a busca por se inserir de vez naquela sociedade de aparência – o almejado status social – arranjando um casamento com uma “esposa dedicada” que lhe desse “meia dúzias de filhos”, principalmente um filho homem que seria sua “estátua viva”. Os relacionamentos com “mulheres fáceis” como a prostitua Sidônia não era compatível com visão que era queria apresentar à sociedade. É verdade que mesmo depois de casado continuaria a se encontrar com Sidônia, mas esta não lhe servia para casar. Foi aí que, por meio de seu amigo Matos, conheceu Camila, a filha mais velha dos Rodrigues e “a mais instruída” (segundo a mãe, D. Emília) de uma família de sergipanos, que morava em uma casa pobre no morro do Castelo. Sem fazer uma leitura maliciosa dos fatos que se sucederam, Teodoro se lembra do seu primeiro encontro com a família da esposa; as articulações de sua sogra para lançar sua filha naquela “loteria” matrimonial; a exploração financeira promovida pelos pais de Camila que, a partir dali, sempre enviarão do Sergipe – para onde voltaram depois do casamento de Camila – cartas lamuriosas solicitando cada vez mais recursos ao rico genro; os problemas criados por Joca, o irmão vagabundo e beberrão de Camila.
Na casa de Francisco Teodoro, um rico palacete em Botafogo, vivem Camila (tratada na intimidade como Mila), apontada por todo Rio “como uma mulher formosa”; os filhos (o Mário; as gêmeas, Lia e Rachel; e Ruth); a sobrinha Nina – fruto do relacionamento de Joca com uma “mulher da vida” –; e os empregados, entre eles, a Noca, uma senhora negra responsável por organizar os afazeres da casa. A vida de luxos – porém superficial – dessa família é denunciada por meio de seus comportamentos mais triviais entre as ricas salas e o jardim. O marido era um homem orgulhoso da fortuna construída com muito trabalho. A mulher Camila é uma senhora aparentemente fútil, acomodada àquela vida de luxo que nunca tivera na infância e adolescência. Já no Cap. III – quando nos é narrado mais uma recepção na casa de Teodoro, em que se encontram o Dr. Gervásio, Capitão Rino, o maestro Lélio – tomamos conhecimento do caso amoroso com o médico, o Dr. Gervásio, que aparecera pela primeira vez naquela casa para prestar assistência médica a uma de suas filhas. No fundo Camila tem consciência da futilidade da vida que leva e da farsa daquele arranjo social, no qual a mulher era apenas um ente decorativo. Prova disso é sua identificação com o discurso ousado de Catarina, no Cap. VI, quando a irmã de Rino discorda da visão compartilhada pelos outros homens sobre o papel da mulher na sociedade. Acontece que Catarina se resignou naquela zona de conforto ao lado do amante e da fortuna que tinha a seu dispor. Camila não querer perder o que conquistara e muito menos não quer se indispor com um sistema que já está consolidado e do qual se beneficia depois de uma infância pobre. Assim, pode desfrutar do dinheiro do marido – a quem respeita como o provedor da casa – e das carícias do amante.
Francisco Teodoro é um dos poucos integrantes daquela casa que ignora o relacionamento extraconjugal da esposa com o médico que goza de seu mais alto respeito. Era Gervásio quem instruía Camila e os de sua casa quanto à maneira digna de se portarem publicamente, apresentando-lhe uma série de regras de etiqueta condizente com a fortuna que detinham. O médico ensinou Mila a se vestir bem, a agir publicamente com elegância e sempre estava ao lado dela e de suas filhas dando dicas de como soar respeitáveis àquela sociedade. O poder da influência de Gervásio – que se orgulhava da “revolução” que promovera naquela casa – era tão notório que ele estipula um dia da semana em que Camila poderia promover as costumeiras e requintadas recepções em sua casa, quando recebia seus amigos e amigas da elite – as esposas e filhas da família Braga, Gomes, entre outras – em conversas regadas a música e pratos finos.
Mário, o filho mais velho do casal é um fanfarrão hedonista, que, no começo da narrativa, vive um caso amoroso com uma certa Luiza (uma francesa “bonita [...] e muito chic”, segundo o chofer Dionísio), a quem sustenta com o dinheiro do pai. Arrogante, ele não aceita as exortações nem do pai – decepcionado com aquele varão que jamais seria o homem de trabalho com que ele, o pai, sonhara – nem da mãe. E no dia em que esta, sob a exigência colérica de Francisco, exige que ele dê um ponto final no seu relacionamento com Luzia, Mário joga na cara de Camila o relacionamento dela com o Dr. Gervásio. A partir desse dia Camila teme confrontar o filho por acreditar que este poderia revelar a Francisco Teodoro o seu caso com o Dr. Gervásio. Mas não era só Mário que tinha conhecimento daquele “vergonhoso” caso da mãe. Com exceção de Francisco e das filhas do casal, todos sabiam daquele “idílio amoroso”. No Cap. IV, por exemplo, voltando de sua visita à casa do Mota, funcionário de Teodoro que morava no subúrbio da Saúde, o Dr. Gervásio se encontra com D. Joana, a tia beata de Camila, que o exorta dizendo que, com aquele caso, ele “estava empurrando Camila para o Inferno”. Com isso, Camila, mais do que nunca, passa a temer que aquelas conversas indecorosas cheguem aos ouvidos de seu marido. Gervásio tenta tranquilizar a amante, mas apesar da aparente frieza, ele também reconhece as consequências trágicas que poderiam advir de qualquer publicidade quanto àquele “idílio amoroso”. Mário, que não tolera a presença do médico em sua casa, evita estar nos mesmos locais onde o médico se encontrava, mas não tem coragem de revelar ao pai o que acontece às ocultas entre a mãe e o amigo da família. Francisco, sempre cego para tudo que acontece sob seu nariz, jamais compreendeu a antipatia de Mário pelo médico.
Pouco tempo depois, tomamos conhecimento que Mário deixara a francesa, mas não largara, no entanto, a vida de devassidão. Era sempre visto de braços dados com outras mulheres, frequentando casas de jogo e sempre chegando tarde em casa. Revoltado, Francisco quer punir o filho, confrontá-lo, mas seus projetos de correção esbarram na condescendência dos outros membros da casa, que tentam a todo custo proteger o mimado Mário. Tentam protegê-lo a mãe (a certa altura motivada pelo temor de que Mário revelasse ao pai o caso extraconjugal dela com Gervásio), a negra Noca e a prima Nina, apaixonada por Mário e ignorada por ele. Nina que ajuda nos afazeres da casa, é uma jovem apagada, cuja presença na casa é pouco notada pelos tios. Ela devota a Mário um verdadeiro sentimento de adoração e sofre com a rejeição do primo. Certa feita, no dia em que Teodoro exige que a porta da casa fosse trancada para que Mário, quando chegasse de suas farras noturnas, não pudesse entrar, Nina, que passara a noite em claro esperando o amante, abre a porta para Mário, salvando-o de ficar ao relento, fustigado pela chuva que caía naquela noite.
Além desses personagens da família de Teodoro, vale destacar a jovem Ruth. Amante de música, que tem a seu dispor um professor particular, o maestro Lélio, essa jovem vive em uma redoma social, tendo tudo o que queria a seu dispor. Entre livros e as músicas que executa, o mundo lhe figura sempre perfeito. Embora seja uma moça sensível, boa, em alguns momentos, parece-nos alheia aos problemas do mundo que a cerca. Era comum encontrá-la sob uma árvore do quintal da casa, feliz ou melancólica, lendo um livro ou tocando um violino.
Um outro personagem de destaque nessa trama é o Capitão Rino. Amigo da família, esse comandante da Marinha é apaixonado por Camila, mas reconhece que não tem lugar para ele no coração de Mila, preenchida pelo arrogante Gervásio, que o tem como um simples homem bruto do mar, sem instrução ou sensibilidade. No Cap. VI, a família de Teodoro e o Dr. Gervásio são convidados por Rino para um passeio em seu navio Netuno. É lá que eles conhecem Catarina, a irmã de Rino. Entre conversas sobre política e comportamento social, os presentes discutem a condição da mulher na sociedade brasileira, dando a oportunidade para que Catarina exponha suas ousadas opiniões. Nesse passeio, Gervásio equivocadamente passa a desconfiar que Camila poderia se interessar por Rino. O que o deixa bastante enciumado. A partir dali se dão alguns desentendimentos entre o casal de amantes, mas nada que viesse a comprometer a continuidade daquele caso. Já em terra firme, Gervásio acompanha Camila e Ruth até a casa da família, quando cruzam com uma mulher toda vestida de preto. Camila percebe uma sugestiva troca de olhares entre Gervásio e essa misteriosa mulher. Mordida de ciúmes, Camila passa a desconfiar que o médico possa ter outra. E ela que jamais se revoltara com os casos do marido, mostra-se ressentidas com a suposta traição do amante.Paralelo a isso, vemos as tentativas de Rino de se aproximar de Camila querendo tomar o lugar de Gervásio naquele triângulo amoroso. Mas a certa altura, consciente de que não teria o amor de Camila, Rino resolve partir mais uma vez a bordo do seu Netuno, enterrando de vez o desejo de ter um relacionamento com Mila.
Enquanto isso, Mário resolve abrir mão da vida boêmia e aceita, depois de muito relutar, casar-se com Paquita, irmã da baronesa da Lage e integrante da família Meireles. Com esse casamento, Mário pode gozar da vida de luxos que sempre desejara sem precisar aturar o pai e a vexame de ter que viver sob o mesmo teto que a mãe adúltera. Depois do casamento, Mário parte com a geniosa esposa para a Europa, onde vão ficar uma longa temporada.
No Cap. XI temos um fato que dá um novo mundo à narrativa: com a alta do preço do café, Inocêncio Braga tenta convencer Francisco a investir no mercado especulativo da bolsa, um universo de risco responsável pelo abrupto enriquecimento de Gama Torres. Por um longo período, Francisco teme se expor àquela “loteria”, e adia o momento em que daria uma resposta definitiva a Inocêncio. Depois de muito relutar consigo mesmo, Teodoro resolve entrar naquela sociedade, repassando a Inocêncio uma vultosa quantia em dinheiro, sendo que parte dela veio de empréstimos de seus credores. Pouco depois, vem a grande decepção. Com uma repentina baixa do preço do café – no contexto histórico conhecido como Encilhamento, ocorrido durante o governo de Deodoro da Fonseca (1889 – 1891) –, Teodoro se vê em apuro. É a falência anunciada no título da obra. Inocêncio, que deve ter se resguardados de futuras surpresas, e possivelmente desviado dinheiro de seus sócios, está partindo para a Europa, deixando o falido sócio na mão. Fugindo dos credores e envergonhado diante dos funcionários, Francisco sente vergonha de dizer para sua família que está quebrado. Seus funcionários tomam cada um seu rumo, e Francisco sente que seu mundo está ruindo. Orgulhoso, ele não quer depender da esmola ou da piedade de ninguém. Pensa em pedir ajuda à baronesa da Lage, cunhada de Mário, mas vê naquela atitude um gesto de humilhação para um homem como ele. Entre as cartas que escreve durante aqueles dias, endereça duas missivas ao Meireles e a seu filho Mário, informando-lhes do ocorrido. Resistindo assumir para a família sua atual condição financeira, resolve procurar Gervásio que servirá de mediador junto à esposa e às filhas daquela triste nova. No outro dia Gervásio procura Camila e lhe conta tudo. E é naquela noite que Teodoro se mata com um tiro na cabeça na frente de Camila. Camila agora está sozinha no mundo com as duas filhas. Fugindo de seus antigos pares de classe social, ela resolve se mudar para uma casinha que então pertencia a Nina, presente de Teodoro. As tias, Joana e Itelvina, não lhe oferecem nenhum auxílio, embora tenham dinheiro guardado. O único ponto de apoio é mesmo do Dr. Gervásio. Ruth resolve ajudar a família dando aulas de música. As gêmeas parecem estar se acostumando com aquela vida modesta e com a gente simples da periferia. Em um gesto de empatia com seus novos vizinhas, certo dia, as duas caçulas de Camila pedem a mãe um ajuda para uma família necessitada que residia na redondeza. Já Nina e Noca auxiliam Camila naquele duro período. Dias depois da morte de Francisco, uma irônica cena: chega mais uma das cartas vindas do Sergipe, em que os pais de Camila, solicitam ao genro alguma quantia em dinheiro.
É nesse período que Mário retorna da Europa. Esbanjando superioridade, ele acusa a mãe de estar sendo um péssimo exemplo para suas irmãs, vivendo em fornicação com Gervásio, e envergonhando o legado da família e o nome que ele, genro do senhor Meireles, tinha por zelar. Depois de decidir sobre o futuro das gêmeas, que iriam morar com ele, Mário sugere que sua mãe se case de vez com Gervásio.
Apesar de ressentida com a arrogância do filho, Camila resolve propor ao médico que eles se casem. Mas Gervásio assume que já era casado. Não vivia mais com a mulher – aquela senhora vestida de luto com que cruzaram na rua tempos antes –, mas estava judicialmente vinculado a ela. Ciente de que não teria de Gervásio o que desejava, ela resolve recomeçar a vida de forma autônoma, sustentando com o suor de seu rosto a si e suas filhas. Exige que Ruth vá pegar as meninas na casa de Mário e que elas serão alfabetizadas pela irmã mais velha sob aquele teto. O romance termina com Rino, retornando ao Rio de Janeiro dois anos depois do suicídio de Teodoro. Em conversa com Catarina, eles falam de Camila e a irmã sugere que ele a visite – ao que Rino afirma: “ – Para quê?” Passado tanto tempo, ela já não está no seu campo de desejos. Interessava-lhe apenas a imagem da Camila casada vivendo uma casa de luxo.
Personagens:
Francisco Teodoro – De origem portuguesa, Francisco Teodoro chega ao Brasil ainda muito jovem. Não sendo um homem culto, trabalhou “como um negro” em seus primeiros anos em terra estrangeira e consegue com muito esforço construir seu enorme patrimônio. Depois de criar um império no ramo cafeeiro, ele se mostra um ser orgulhoso de suas riquezas, querendo mostrar para todos o fruto de seu árduo trabalho. Ele que jamais ajudaria uma pessoa que precisasse de algum valor para “um começo de vida” como a dele no passado, não poupava dinheiro para suas festas luxuosas e para atender aos caprichos da esposa e dos filhos. Seus gestos caridosos são motivados por uma personalidade tipicamente farisaica, pois suas contribuições para a construção de escolas, igrejas e outras obras filantrópicas são uma forma de atrair para si os holofotes, e pousar como homem generoso. Sua dedicação obsessiva ao trabalho o torna cego para pequenos detalhes que se desenrolam em sua casa: o filho, que tornara o oposto do que sonhara, e a esposa que vive nos braços de outro. Embora se mostre afetuoso para com as filhas e a esposa, Teodoro acredita que o dinheiro é a única forma de demonstrar seu cuidado para com filhos. Teodoro é declaradamente machista e possui um discurso marcadamente conservador. Antirrepublicano, esse personagem está sempre criticando o novo regime que levou ao poder o Marechal Deodoro, alegando que aqueles que expulsaram dali o Imperador D. Pedro II iriam afundar o país. Depois de sua falência, sem dinheiro para pagar os credores e envergonhado por ter sido vítima da própria ganância, Teodoro se mata.
Camila – Essa personagem esférica representa o drama e a complexidade da mulher da elite brasileira do século XIX. Se por um lado ela é conivente com as futilidades de seu meio; por outro, tem uma leve consciência de quão medíocre era a vida que levava. Embora simpatize com os discursos feministas que questionam a posição “decorativa” da figura feminina, ela não ousa questionar esse sistema que lhe garante o conforto e o luxo. Embora fosse de origem humilde, Camila era uma jovem bem instruída, segundo a mãe, a D. Emília, preparada para ser a mulher que Francisco desejava. Apaixonada por Gervásio, Camila vê no médico a imagem do amante refinado que a instruiria e a conduziria naquele mundo de luxo que jamais conhecera em sua infância pobre. Refém das aparências e de suas culpas, essa mulher se comporta segundo as conveniências do seu meio e das circunstâncias. Em um dado momento da narrativa, porém, ela assume ao amante que amava o marido, apesar de todos os pesares: o fato de Francisco a trair e não obstante ter um caso extraconjugal. Ao final da trama, essa mulher nos surpreende assumindo uma posição mais autônoma quando se recusando a depender da esmola afetiva e financeira de qualquer homem.
 Dr. Gervásio – Médico da família e amante de Camila. Esse homem se destaca pela arrogância e pela personalidade controladora. Chegou naquele família depois que foi chamado para atender a uma das filhas de Francisco, e dali nunca mais saiu. Gabava-se do seu refinamento intelectual e esnobava qualquer pessoa que aparentemente não detivesse seu nível cultural, como é o caso do Capitão Rino, a quem despreza por ser a certa altura para ele apenas um rude homem do mar. Quando percebe que Rino não era tão inculto quanto ele pensava, Gervásio se sente afrontado e se torna obcecado com a ideia de descobrir quem de fato era aquele homem. É Gervásio o responsável pela mudança de comportamento de Camila e dos de sua casa, instruindo-os a como se comportar publicamente, demonstrando a elegância esperada de uma família com alto poder aquisitivo. Em suas conversas com Ruth – uma verdadeira “tábula rasa” de seus ensinamentos – vemo-lo tentando convencer a filha de Camila que a educação que recebe não serviria apenas para o amadurecimento intelectual, mas principalmente para o refinamento comportamental, a funcionalidade social dessa instrução, consolidada por uma formação que deveria vir de berço: “A instrução é a força com que aparelhamos o nosso espírito para a vida, lança e escudo para ataque e defesa; a educação é o perfume que os pais inteligentes derramam na alma dos filhos e que por tal jeito se infiltra neles, que nunca mais se evapora, seja qual for o ambiente em que vivam depois.”. O médico goza da irrestrita confiança de Teodoro que jamais descobrira que o médico tinha um caso com sua esposa. No final da trama sabemos que ele é casado com a senhora com que certa feita ele e Mila cruzaram na rua. Não vivia mais com a esposa, mas estava judicialmente vinculado a ela e por isso alega que não poderia se casar com a viúva Teodoro.
Nina – Filha de Joca com uma mulher da vida, Nina é uma agregada da família. Uma jovem apagada, um ser modesto e praticamente invisível naquela casa de luxo, ela é apaixonada por Mário, que, em sua arrogância, simplesmente a ignora. No Cap. XXII somos informados que quando criança Mário surrava Nina com chicote, o que jamais comprometeu a paixão que nutria pelo primo. Vista mais como uma empregada do que um membro legitimo da família, é ela quem ajudava Noca nos serviços domésticos, principalmente cuidando das filhas de Camila e Francisco, algumas das poucas criaturas que ali lhe dispensavam algum afeto. Em um dado momento da narrativa, Ruth pede ao pai que no aniversário de Nina lhe dê um presente a altura de sua importância naquela casa. É quando Francisco transfere para o nome de Nina um de seus imóveis, de cujo aluguel ela poderia tirar algum renda. É para essa casa que Camila e suas filhas se mudariam depois do suicídio de Francisco e da venda da mansão do Botafogo.
Noca – Empregada da casa de Francisco Teodoro. Testemunha e “leitora” de todos os fatos protagonizados pelos membros daquela casa, a negra Noca – que goza do respeito de Camila e Teodoro – é uma personagem importante nessa narrativa, que constantemente, por meio do olhar introspectivo do narrador, enfoca seu ponto de vista e mostra sua sábia percepção de mundo. Embora estejamos diante de uma obra realista, não percebemos por parte do narrador em 3ª pessoa uma leitura depreciativa das crenças e crendices expostas por Noca. “Alegre, forte, faladora e arrongange”, ela jamais hesita em expor suas opiniões, embora em nenhum momento confronte seus patrões. Noca representa na obra a sabedoria sofrida do povo negro.
Mário – O filho mais velho de Francisco e Camila. Esse jovem fanfarrão, arrogante e hedonista é a grande decepção do pai que queria um filho homem para prosseguir com seu legado comercial. Mário odeia o Dr. Gervásio e acusa a mãe de envergonhar a família com aquele caso vergonhoso. Hipócrita, Mário não vê que suas aventuras amorosas também servem de opróbrio para seus pais. Casa-se com a viúva Paquita, de quem poderia explorar financeiramente sem precisar prestar satisfação a ninguém.
Ruth – Uma das filhas de Camila e Francisco. Amante de arte, ela quase sempre é vista acompanhada de seu violino, dedicando-se com disciplina à música, sua maior paixão. Acostumada com o luxo, ela parece não ter noção da vida dura para além dos muros de sua casa. Mas ao contrário do irmão, ela não é arrogante e demonstra um surpreendente senso de justiça social. Quando está na casa de suas tias Itelvina e Joana, ela descobre que sua tia-avó espanca a negra Sancha. Tomando as dores da jovem órfã, ela sugere que Sancha fuja e promete dar a ela um emprego na casa de Botafogo. No final dessa narrativa, depois da morte do pai, ela nos surpreende ao tomar uma radical atitude: irá ministrar aulas de música para ajudar no sustento da família.
Catarina – Irmã do Capitão Rino, ela carrega um grande trauma em sua vida: a morte da mãe, assassinada pelo pai. Por ter consciência da “ditadura” machista de seu tempo, optou por não se casar, e sempre é vista defendendo ideias ousadas. É a favor do voto feminino e da emancipação da mulher. Essa personagem simboliza os ideais feministas de Almeida e suas críticas ao machismo.
Lia e Rachel – As filha gêmeas de Camila e Francisco. Pequenas, elas ainda foram alfabetizadas. São a grande preocupação da mãe depois do suicídio de Francisco.
D. Itelvina – Tia de Camila, ela é símbolo da avareza. Ao contrário da irmã, a D. Joana, ela não tem qualquer apego às crenças católicas. Perversa, ela vive castigando a negra Sancha, negra órfã, que vive em um regime de semiescravidão na casa do Castelo. Ruth descobre que quem rouba as esmolas recolhidas por D. Joana para os trabalhos da igreja é Itelvina e não Sancha, como acreditava Joana.
D. Joana – Uma típica beata provinciana que representa o rigor moral de alguns representantes do catolicismo, que buscam a salvação por meio de preceitos moralistas e de sacrifícios extremos e se esquece de que o Cristianismo também é misericórdia. Viúva, sua vida se resume às práticas que envolvem a fé que professa, perambulando durante todo dia de um templo a outro para assistir às missas, rezas constantes e possivelmente sessões de autoflagelo. Segundo dizem, ela já declarara que quando morresse seus bens seriam destinados para um líder dos capuchinhos. É comum vê-la pelas ruas do Rio a cata de esmolas para os trabalhos da igreja ou vendendo bilhetes para alguma festividade religiosa. Como a narrativa não nos esclarece sobre a fonte de sustento dela e da irmã, é possível que D. Joana desvie os valores arrecadados em suas andanças pelo Rio de Janeiro. No Cap. XVIII Francisco Teodoro se indaga onde elas escondiam suas “fortunas”. Apegando a seus princípios éticos, está sempre censurado os personagens que não coadunam em sua praticas àquilo em que ela acredita, entre eles, a sobrinha Camila. Cega em seu farisaísmo religioso, ela não vê o que o Cristianismo é ações supostamente caridosas que ela protagoniza, mas também zelo pelos desassistidos, permitindo que a irmã espanque a negra Sancha.
Capitão Rino – Amigo da família, Rino é apaixonado por Camila, mas se esbarra no relacionamento dela com o Dr. Gervásio. Embora aparente ser mais um homem rude do mar, por suas leituras – que surpreende o arrogante Gervásio – vemos seu nível cultural e sua sensibilidade poética. Entre os personagens pertencentes à elite, ele é um dos poucos que ainda demonstra simpatia pelos mais humildes. Ele é um homem solitário, que buscou no mar uma forma de se distanciar dos conflitos com os homens, mas em um dado momento se arrepende por ter optado por um estilo de vida que o distanciava de sua gente. Republicano e nacionalista, Rino contesta as opiniões de Francisco, acreditando que o Brasil pode ser um dia um país muito próspero. Frustrado em seu plano de conquistar Camila, ele parte para uma longa viagem no Netuno, o seu navio. No final da trama, percebemos nele um caráter meio obscuro quando afirma que não havia por que procurar Camila agora que ela era apenas uma viúva pobre. Por meio desse personagem, Almeida nos deixa entrever um poético nacionalismo, retratando de forma sensível as belezas tropicais desse país depreciado por imigrantes arrogantes.
Inocêncio Braga – Negociante de café. Ao contrário do que possa sugerir o seu nome, ele é um ardiloso negociante que se aproveita da inocência de Francisco para empurrá-lo para um negócio arriscado. Depois do episódio do Encilhamento que leva Francisco à falência, ele parte para Londres, fugindo do falido sócio.
Gamas Torres – Um rico negociante de café que fez sua carreira aproveitando-se, com esperteza, do mercado de especulações. Esse personagem, apresentado como o novo Rottschild brasileiro, é apenas evocado na narrativa.
Sancha – Negra órfã que trabalha na casa das tias de Camila. Humilhada e surrada por Itelvina, ela é uma metonímia do tratamento dispensado aos negros em uma sociedade que os submete ainda a um regime de quase escravidão. Sua frustração é tão grande que ela deseja se matar com arsênico.
Mota – Funcionário da Casa Teodoro. Vive com sua filha em uma favela. Ao longo da narrativa tomamos conhecimento que ele quebrara uma perna e ficara impedido de trabalhar. Francisco demonstra certa preocupação com o funcionário e pede que Gervásio preste assistência medica a ele.
Baronesa da Lage – Cunhada de Mário, a irmã de Paquita é uma viúva rica que representa o pragmatismo e a insensibilidade da elite brasileira.
Matos – Amigo de Francisco, é ele quem apresenta o rico negociante de café à família de Camila
Seu Joaquim – Funcionário da Casa Teodoro. Ele é caixeiro e se destaca pelo jeito espontâneo e aparentemente ranzinza. Apesar desse seu jeito, é muito respeitado por Francisco.
Negreiros – Negociante de café.
Lemos – Negociante de café.
Paquita – Esposa de Mário, Paquita é uma mulher mimada e geniosa.

Ribas – Funcionário da Casa Teodoro. É ele que, no Cap. IV, conduz Gervásio à casa de Mota. 


Autor do estudo: Guilherme Rodriguês
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