A CINDERELA DA LITERATURA
BRASILEIRA
A VISÃO DE MUNDO ROMÂNTICA EM “A
PATA DA GAZELA”, DE JOSÉ DE ALENCAR
SOBRE O AUTOR: O romancista e político brasileiro, José Martiniano de Alencar nasceu no dia 01 de Maio de 1829, em Messajana, no
Ceará. Filho “ilegítimo” do então padre José Martiniano Pereira de Alencar com
uma prima, a D. Ana Josefina de Alencar, o autor de Lucíola se mudou em 1830 com a família para o Rio de Janeiro, a
capital do Império, onde o pai iria assumir o cargo de deputado. Em 1844
ingressa na Faculdade de Direito, na cidade de São Paulo, onde estabelece
profícuo contato com os intelectuais e artistas que contribuíram para a difusão
do Romantismo no Brasil, entre eles, o poeta Álvares de Azevedo (1831 – 1852).
Nos anos 50 inicia sua carreira literária com a narrativa Cinco Minutos (1856), texto que segue a linha do chamado romance urbano. Sua consagração veio um
ano depois com a publicação – primeiro em folhetim e depois em livro – do
romance histórico-indigenista O Guarani.
Em sua prosa Alencar tratou da vida na Corte, de amores conflituosos, exaltou a
figura heroica do índio, idealizou com intenso lirismo as paisagens
brasileiras, além de ter tematizado o interior do país e o nosso passado
colonial. Entre a produção de romances e peças teatrais, a advocacia e a
política, José de Alencar atuou como deputado do Partido Conservador e ministro
da Justiça, durante o Segundo Império, tendo colecionado diversas polêmicas com
o Imperado D. Pedro II, que o chamou, certa feita, de um “homenzinho teimoso”.
Em 1864 casou-se com Georgina Cochrane com quem teve seis filhos, entre eles, o
também escritor Mário de Alencar. José de Alencar faleceu em 12 de Dezembro de
1877. Principais Obras: O Guarani (1857), Lucíola (1862), Iracema
(1865), O Sertanejo (1870), Senhora (1875).
SOBRE A OBRA: romance urbano publicado em
1870, expressa a vida da burguesia, seus hábitos e costumes, valorizando a
honra, o desprendimento da vida de aparências e o desapego ao dinheiro. A
história construída por Alencar dialoga com o conto “Cinderela”, de Perrault, e
a fábula “O leão amoroso”, de La Fontaine. É uma obra leve e divertida que
trata do amor à primeira vista com doses de suspense e um final feliz. A Pata da Gazela foi considerada “A Cinderela
da literatura brasileira”. Alencar como Machado de Assis também se especializou
na análise psicológica de suas personagens femininas, revelando seus conflitos
interiores. Essa análise de caráter mais psicológico do interior das
personagens remete sua obra a características peculiares dos romances
realistas.
A PATA DA GAZELA E O ROMANCE
URBANO: Alencar
produz, ao redor da história de um triângulo amoroso entre Amélia, Horácio e
Leopoldo, uma reflexão sobre algumas dimensões das práticas culturais da burguesia carioca de meados do século XIX,
contrapondo posturas dos segmentos abastados dessa sociedade com aquelas das
gentes modestas, pois, para o romântico, a pureza e o ideal de homem está no
popular. Traz da alta sociedade do Rio
de Janeiro seus espaços de reunião, personagens e costumes, para o centro
da trama romanesca, seguindo o intuito de implementar um romance brasileiro,
tecendo algumas apreciações críticas às práticas sociais dos elegantes, sobretudo seu
fetichismo erótico e materialista, que Horácio simboliza. Em oposição a tais
aspectos, desenvolve um discurso de
elogio ao amor puro, verdadeiro e
imaterial, assim como à espiritualidade elevada, por meio de Leopoldo.
Nessa discussão, emergem imagens da mulher e do homem românticos que se opõem
àquelas de homens e mulheres do mundo burguês, tal como ainda as noções de
amor, de casamento, de beleza e espiritualidade românticos contra aquelas convencionais.
RESUMO DA OBRA:
- A
primeira cena do livro é determinante para o seu prosseguimento.
- Horácio,
um jovem sedutor encontra um pé de botina delicado e pequeno caído no chão,
derrubado por um lacaio que passa por ele.
- Horácio
então decide encontrar a dona daquele pequeno sapato, imaginando que a dona
possua os mais perfeitos e pequenos pés, os considerados patas de uma gazela.
- Apaixonando-se
assim pela ideia da mulher perfeita que estivesse por trás do calçado.
- Do
outro lado da rua durante esta cena, se encontra Leopoldo, um jovem sem uma
beleza exuberante como a de Horácio, e nada sedutor, porém de bom coração,
que vê Amélia passando e se apaixona por seu sorriso.
Na
carruagem estavam Amélia e sua prima Laura.
Horácio
acredita que Laura é a dona daqueles delicados pés e faz de tudo para se
aproximar da moça.
- Horácio
começa a cortejar Amélia, quem ele acredita ser o dono dos sapatos, e a pede em
casamento, como uma tentativa de ver seus pés.
- Leopoldo
fica arrasado com a notícia, porém tenta não demonstrar.
- Certo
dia, Amélia ouve Horácio contando a Leopoldo que ela nunca havia chamado sua
atenção, que apenas estava com ela por acreditar que ela era a dona do sapato.
- Ela
então convida Horácio para ir a sua casa, e deixa aparecer um pouco dos pés
mostrando um calçado para pés defeituosos. Ele foge e passa a procurar Laura,
quem acreditar ser agora a dona do sapato.
- É então
que ele descobre a verdade, que Laura possuía pés aleijados e Amélia era
realmente a dona dos calçados.
- Ambas
eram primas e muito amigas, e usam um vestido cobrindo os pés, uma para
disfarçar os pés aleijados e a outra os pés pequenos. Horácio tenta
reconquistá-la, porém ela já está com Leopoldo, com quem se casa e apenas na
lua de mel mostra seus pés pequenos e sem problemas.
PATA X
GAZELA
Pata da gazela expressa
uma metáfora, cujos termos entram em contradição: “pata” é o aspecto rude, e
“gazela”, o lado frágil e delicado, através dos quais Amélia, a protagonista do
romance, apresenta-se a seus dois pretendentes: Horácio e Leopoldo.
DESCRIÇÃO
ROMÂNTICA: os textos do romantismo são marcados por forte teor descritivista.
Depois das grandes dores
e das lágrimas torrenciais, forma-se também no coração do homem um húmus
poderoso, uma exuberância de sentimento que precisa de expandir-se. Então um
olhar, um sorriso, que aí penetre, é semente de paixão, e pulula com vigor
extremo.
O moço parecia estar
nessas condições: ele trajava luto pesado, não somente nas roupas negras, como
na cor macilenta das faces nuas, e na mágoa que lhe escurecia a fronte. [cap.
I]
A senhora acredita, D.
Amélia, na atração irresistível, que impele duas almas entre si, e as chama
fatalmente a se unirem e absorverem uma na outra?... [Leopoldo e Amélia, cap.
IX]
DESCRIÇÃO
DA BOTINA
Era uma botina, já o
sabemos; mas que botina! Um primor de pelica e seda, a concha mimosa de uma
pérola, a faceira irmã do lindo chapim de ouro da borralheira; em uma palavra a
botina desabrochada em flor, sob a inspiração de algum artista ignoto, de algum
poeta de ceiró e torquês. Não era, porém, a perfeição da obra, nem mesmo a
excessiva delicadeza da forma, o que seduzia o nosso leão; eram sobretudo os
debuxos suaves, as ondulações voluptuosas que tinham deixado na
pelica os contornos do pezinho desconhecido. A botina fora servida, e
muitas vezes; embora estivesse ainda bem conservada, o desmaio de sua primitiva
cor bronzeada e o esfolamento da sola indicavam bastante uso. [cap. II]
O
NARRADOR é onisciente = narrador em 3ª pessoa; não participa dos
fatos relatados, mas revela que conhece tudo o que se passa com as suas
personagens.
TEMPO
CRONOLÓGICO
Seriam duas horas da
tarde. Durante a manhã tinha caído sobre a cidade uma forte neblina, que
molhara as calçadas. [cap. VI]Ao cabo de duas ou três horas,
PERSONAGENS
Sr. Pereira Sales -
pai de Amélia, abastado consignatário de café, estabelecido à Rua Direita.Horácio:
meu pezinho tem um dote para seu calçado. [cap. VII] + D. Leonor, a mãe [cap.
XI]
Horácio: perfeito filólogo do
amor, e habituado a decifrar esses hieróglifos dos lábios de mulher. [cap. VII]
D. Clementina, uma senhora, amiga
íntima da irmã de Leopoldo.
AMÉLIA – uma das
mais ricas herdeiras do Brasil; bela mulher disputada por 2: HORÁCIO DE ALMEIDA
– o primeiro conquistador do Rio de Janeiro, homem elegante, um dos príncipes
da moda + LEOPOLDO DE CASTRO – não tão belo e trajes simples.
LAURA e
AMÉLIA: primas + amigas de infância.
OS PERSONAGENS MASCULINOS
Horácio e
Leopoldo representam dois polos opostos
da visão de mundo romântica.
HORÁCIO: inserido e figurando na alta
burguesia, é um “leão”, rei dos salões e da moda; rapaz preocupado com sua
elegância, volúvel, despreocupado com o trabalho e, como seu nome indica, vive
no exercício de sua capacidade de conquistador, destroçando e revirando os
corações femininos. Porém, a lição maior que se dará é que o amor é capaz de
amansar a mais selvagem fera.
LEOPOLDO: é o príncipe do povo, é moço,
modesto, simples nos trajes, meditativo, sem experiência amorosas e vive só no
mundo, pois sua irmã, na qual resumia suas afeições e relações familiares, há
pouco falecera.
O SAPATINHO: Nessa história, o sapato, como
símbolo de identificação da mulher, que tem no mundo moderno a história de Cinderela
como sua mais famosa versão. Porém, apesar de Alencar inspirar-se naquele
conto, Horácio não se encontra num baile ao achar um pé de calçado de mulher e
sair à procura de sua dona, por mais que na Corte fossem inúmeras as ocasiões
sociais que poderiam oferecer ao romance o lastro verossímil.
Foi na
área central da cidade, espaço do comércio fino, cenário dos hábitos de consumo elegante em ascensão, onde
o fetichismo das mercadorias tem seus templos e infindos
altares _
lojas e vitrines cintilantes _ , que um lacaio passou por Horácio correndo,
pois o cocheiro lhe acenava, e deixou cair de um embrulho um pé de calçado. O
“príncipe da moda” apanhou-o para fazer uma fineza e como pretexto de conhecer
uma das moças que ocupava a vitória,
que, à distância, lhe parecia bonita, logo objeto de conquista. Era uma botina
“de pelica e seda”, “a irmã do lindo chapim de ouro da borralheira”, mas o
carro se afasta rapidamente, não sendo possível alcançá-lo e, de posse do
botim, por meio do qual se apaixona pelo
pé da mulher que o calçava, o rapaz, não pensando senão em descobrir a dona
de tão delicados pés, percorre ruas e lojas,até um dia encontrá-la.
DOIS HOMENS, DUAS FORMAS
DIFERENTES DE AMAR
Se
Horácio tem no romance sua participação marcada pela história de amor por um
pé, não mais que isso, que deixou seus contornos e aroma no botim, a de
Leopoldo advém de um sorriso de uma
daquelas senhoras presentes na mesma carruagem, no mesmo dia e hora em que o
leão encontrou a “obra-prima”. Ao ver uma das moças que esperava na vitória pelo lacaio, foi tomado
por uma profunda impressão, deixando-se parado a contemplá-la, admirando, não
seu talhe elegante e rosto gracioso, mas “a emanação de sua alma pura, o seu
casto e ingênuo sorriso.”
Tanto a
dona do pé quanto a do sorriso são Amélia, que se divide entre ambos ou entre o
fascínio do amor-jogo e o encanto do
amor-paixão. Tece-se então duas histórias diferentes advindas da visão e
interesses de dois rapazes também muito diversos. O olhar de um vê somente para
o pé da moça e o do outro focaliza sua atenção no sorriso considerado como
expressão da alma. Histórias que se imbricam uma na outra e que possuem a marca
do suspense, uma vez que a revelação
da identidade da dona do calçado é adiada e, quando o leitor supõe descobri-la,
assim como Horácio, Amélia usa de uma
estratégia para testar a afeição do leão, que a todos confunde.
A ESPERTEZA DE AMÉLIA E A
DECEPÇÃO DE HORÁCIO
Simulando
à Horácio a deformidade de seus pés, ao usar a bota ortopédica de sua prima
Laura, a outra ocupante da vitória, afugenta-o, deixando o campo livre a
Leopoldo, ao qual se rende, pois, mesmo convencido que sua amada possuía um
aleijão, ao associar erroneamente algumas pistas que perseguia, luta por seu
amor. Enquanto o leão, pressupondo-a aleijada, entra a cortejar Laura, até
perceber a ilusão de que é vítima e tentar reatar com a primeira, pois dona dos
pés que ama, Leopoldo conquista Amélia
com seu amor sincero e desinteressado, casando-se com ela.
Esse
livro, visto de sobrevôo, não raro é considerado pelos críticos e historiadores
da literatura como “uma concepção singela e quase infantil, que Alencar parece
compor até por brincadeira”, como avalia Menezes, ou que é obra que se insere
na moda do romance que visava ao entretenimento, envolvendo o leitor em
peripécias sucessivas e cenas patéticas,
ficando mesmo no “nível do romance ligeiro”, conforme Lajolo. Na melhor das
considerações, é tratado como “história curiosa, que só tem sentido no quadro
da época, naqueles dias em que a indumentária longa e severa fazia do corpo da
mulher um mistério envolvido em crinolinas”, levando com que o jovem leão
ficasse extasiado com a idéia de ver o minúsculo pé feminino.
Entretanto,
desse romance emerge, além da contraposição entre duas concepções distintas de amor, o amor-jogo presente nos salões
elegantes e o amor-paixão valorizado pelos românticos, imagens duplas de homem
e de mulher, isto é, de um homem mundano, burguês, e de um homem romântico; de
uma mulher na visão do homem do mundo e de uma mulher advinda do olhar do
romântico. No entanto, mais que isso, o texto é, em grande parte, uma reflexão sobre o fetichismo, fenômeno
que, não por acaso, muito despertou a atenção de grandes pensadores dos séculos
XIX e XX.
O FETICHE E SEU SIGNIFICADO
Já no
início do século XX, Freud expôs sua concepção de fetichismo, observando que se
encontra
na vida sexual normal, mas que pode tornar-se patológico, quando a fixação
objetal decorre de uma libido infantil, que dirige a finalidade sexual, não
vista como a
cópula,
mas como o desejo de um ser em sua totalidade para uma parte do corpo
superestimada, ou de um objeto material relacionado estritamente com uma parte deste. Tratando do fetichismo do pé,
introduz a ideia da castração, de terror e ameaça ao menino, que, diante da
falta do pênis na mãe, sente seu próprio falo em perigo e recusa essa falta
elegendo aquele membro como substituto do órgão ausente, tão intensamente
sentida, além de ressaltar a dimensão olfativa que compõe esse culto. Outros
psicanalistas desenvolveram suas próprias teorias sobre o fetichismo ao longo
do
século
passado e enfatizaram ainda o calçado como símbolo feminino, no qual o pé,
falo, adentra. Portanto, simplista torna-se a leitura que desconsidera que
Alencar, como homem atento a seu tempo e às questões que o constitui, trouxe
tal questão para ser tratada nesse romance.
Em
Alencar, esse universo complexo e nebuloso do fetiche, que cria situações
patéticas, as quais tão bem representam o mundo moderno, é tratado, certamente,
de forma bem humorada e alegórica, mas nem por isso impertinente e
inconsistente. Em muito, pode parecer exagerado, mas é pelo exagero que o
romântico busca revelar e pôr em evidencia aqueles traços sociais que considera
negativos no seu presente ou aqueles que deseja ver implementados. Desde o início,
a dimensão do culto ao objeto (o sapato, no caso) é posta em destaque, assim
como a valorização, própria e individual, que o objeto adquire conforme a
necessidade e olhar exclusivamente pessoal do personagem fetichista. Como
objeto de culto, a bota recebe variados significados, que a afastam de seu
valor de uso por parte do rapaz que a elege e a reveste desses sentidos,
havendo mesmo uma superposição de imagens que pertencem a domínios que eram
separados: é “concha mimosa de uma pérola”, possui “perfume”, “aroma delicioso”
do corpo que guarda e exala, do “pé silfo”, “pé anjo”, de uma “deusa”, a Vênus.
O rapaz
Horácio, além de ocioso, admirador apenas da beleza exterior e da forma,
possuindo zelo religioso, cego e excessivo pelo prazer, tem à sua imagem
agregadas outras características negativas da própria sociedade moderna, como a
perda da dimensão de totalidade, a fragmentação e a busca constante da novidade
e do
diferente.
Horácio é descrito como enfraquecido e
insensível, apegado ao efêmero e à busca
de satisfação de seus desejos com coisas
agradáveis e novas. Nesse movimento, perde a dimensão do todo, do conjunto e
aferra-se à novidade e ao parcial, em que tudo torna rapidamente substituído,
até fixar-se ao pé. Considera o narrador, como alguns psicanalistas, que o apego ao pé como símbolo erótico revela
uma atitude infantil de um homem com uma evolução psicológica anormal, ao
tratar o comportamento e as atitudes de Horácio, contemplando e cultuando o
objeto, como extravagância e vício. O rapaz, que ora em culto da matéria, que
dedica suas horas ao ócio,
representa um segmento da sociedade
que usa da riqueza de modo estéril, que, diante da existência e das
dificuldades que esta apresenta, recorre ao dinheiro como meio para resolvê-las.
Configurado como possuidor de uma conduta alienada, fetichista e materialista,
esse personagem tem como templos, lojas, salões e teatros, mas possui ainda seu
altar particular no qual pratica sua idolatria e venera o pé impresso no
calçado, iluminado por velas sobre uma almofada.
Amélia,
moça inocente, inexperiente no amor e dos jogos de sedução dos salões, pouco
sabendo distinguir entre as formas de manifestação amorosa, não diferencia, de
imediato, o amor-jogo da sala daquele do amor-paixão.
Horácio,
representante da visão de amor como jogo, logo, um estrategista, sabe manejar o
imaginário que cerca as práticas amorosas, pois conhecedor, como ninguém, das
fantasias femininas e do questionário que envolve, assim, o desenrolar da
história revela também outras práticas rituais do universo amoroso, como a
linguagem. O rapaz, que representa as práticas das camadas altas da sociedade,
na qual os casamentos davam-se pela
mediação dos interesses econômicos e
políticos, dentre eles, o dote, logo inserido num contexto em que são
normais os mais diversos tipos de arranjos, considera legítimo casar-se para satisfazer apenas seus desejos de ter
aquele pé, expondo, sem sobressalto, a comum ausência de sentimentos nas escolhas matrimoniais.
O
romântico LEOPOLDO confronta-se com o mundano Horácio, num diálogo que revela
muito sobre a figura do homem do mundo burguês e suas posturas fetichistas,
como uma perversão e como uma atitude de vestir máscaras aos objetos, em
oposição a um homem e um sentimento amoroso românticos, que buscam o imaterial
e o sagrado.
O
fetiche, como uma doença e uma alienação social produzida por um mundo
materialista, é assinalado por aquele que se apresenta como seu opositor. Para
Leopoldo, o que Horácio amava não era mais do que uma forma, um capricho, um
sonho de sua imaginação enferma, pois homem gasto para o amor e saciado de
prazeres. A mulher era, para o leão, uma coisa comum e vulgar, incapaz de
produzir-lhe emoções fortes. Tinha-a admirado de todos os tipos e de todos os
caracteres, seu coração exausto precisava de alguma coisa nova, original e
extravagante.
Alencar
premia Leopoldo por amar a alma, o todo da mulher, ama sem interesse material,
que busca o belo não só da forma, mas também do interior. É com Leopoldo, o
príncipe do povo, que Amélia casa-se com pouco tempo de namoro dado no jardim
de sua casa. Ali, num espaço que resume a natureza que, mesmo recriada e cultivada,
é divina, em tardes agradáveis, por “entre cortinas deflores”, “celebravam esse
místico himeneu do amor, único eterno e indissolúvel, porque se faz no seio do
Criador”. As “duas almas, por tanto tempo separadas”, uniam-se ou, antes, como
prefere o narrador, entranham-se uma na outra. Numa cerimônia privada, tendo
apenas dois amigos como testemunhas, “inteiramente à capucha, e sem prévia
participação”, para evitar as maledicências da sociedade, celebra-se a
cerimônia. Expressando ainda mais a interiorização que representa esse
comportamento, Horácio, que observava, incógnito e surpreso, de um observatório
do jardim, a cerimônia e o entrar dos noivos no toucador, teve sua visão
ofuscada pela janela que se fechou com violência em razão de um temporal que
desabou no momento. Numa atitude de recusa ao conturbado mundo social, e de
acordo com o código antigo do imaginário amoroso, o segredo cerca a relação
amorosa no interior da vida familiar e no espaço da intimidade, afastando-o dos
olhos inimigos e garantindo sua eterna indissolubilidade. Leopoldo é aquele
que, diante de um comportamento amoroso fetichista, fugaz, oferece uma outra
possibilidade de vivenciar o amor, assim como de outra noção de belo, sendo
também modelo de masculinidade, que se contrapõe àquele em ascensão no mundo
burguês.
LEOPOLDO:
Tecendo considerações sobre esse rapaz, que representa o homem
romântico, o narrador apresenta algumas apreciações iniciais que buscam
revelá-lo, como seus trajes e moradia modestos, aparência descuidada, maneiras
bruscas e sua existência solitária. Como sua irmã e única parente havia
morrido, Leopoldo vive o isolamento com a desintegração de suas relações
parentais, busca, num envolvimento amoroso, reconstruir seus laços afetivos.
Ele expressa uma concepção sacralizadora do amor e da mulher amada,dá ênfase ao
olhar, ao sonho e à contemplação, recorre a sua memória buscando representar em
sua lembrança a imagem da moça, associa amor e mel, assim como a decepção que
este traz à amargura do fel.
A
valorização da beleza e da mulher adquire um sentido religioso e
espiritualizado, como também da experiência interior do ser amado. Nessa
concepção de mundo e amor, tudo é
envolto por certo ar de magia e religiosidade que oferece legitimidade aos
acontecimentos. Aqui as palavras, como forma de entendimento, possuem, em
muitos momentos, pouco valor e quase nenhum alcance, enquanto os olhares traduzem, com toda força e
intensidade, o conhecimento pela contemplação distante, pelo brilho que irradia
e poder que possui.
Assim,
expõem-se aspectos importantes da concepção de amor romântica, como seu traço
sagrado, a atração e união de almas, a existência do momento certo para ocorrer
e originar do primeiro olhar, tal como as questões da beleza, do horrível, da
imortalidade, da verdade, da pureza e da imaterialidade que a perpassam.
Portanto,
parece indevido considerar esse romance como simples brincadeira de Alencar.
Nele, além de fazer sua leitura sobre a questão do fetichismo sexual e que
envolve a mercadoria, expõe concepções divergentes, que se confrontam, de homem
e de mulher, de amor, de beleza, advindas de formas de ver o mundo diferentes
que estavam presentes na sociedade
fluminense de seu tempo e que faziam parte do embate simbólico que aí se
travava.
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