26 de out. de 2016

Análise "A pata da gazela"


A CINDERELA DA LITERATURA BRASILEIRA

A VISÃO DE MUNDO ROMÂNTICA EM “A PATA DA GAZELA”, DE JOSÉ DE ALENCAR



SOBRE O AUTOR: O romancista e político brasileiro, José Martiniano de Alencar nasceu no dia 01 de Maio de 1829, em Messajana, no Ceará. Filho “ilegítimo” do então padre José Martiniano Pereira de Alencar com uma prima, a D. Ana Josefina de Alencar, o autor de Lucíola se mudou em 1830 com a família para o Rio de Janeiro, a capital do Império, onde o pai iria assumir o cargo de deputado. Em 1844 ingressa na Faculdade de Direito, na cidade de São Paulo, onde estabelece profícuo contato com os intelectuais e artistas que contribuíram para a difusão do Romantismo no Brasil, entre eles, o poeta Álvares de Azevedo (1831 – 1852). Nos anos 50 inicia sua carreira literária com a narrativa Cinco Minutos (1856), texto que segue a linha do chamado romance urbano. Sua consagração veio um ano depois com a publicação – primeiro em folhetim e depois em livro – do romance histórico-indigenista O Guarani. Em sua prosa Alencar tratou da vida na Corte, de amores conflituosos, exaltou a figura heroica do índio, idealizou com intenso lirismo as paisagens brasileiras, além de ter tematizado o interior do país e o nosso passado colonial. Entre a produção de romances e peças teatrais, a advocacia e a política, José de Alencar atuou como deputado do Partido Conservador e ministro da Justiça, durante o Segundo Império, tendo colecionado diversas polêmicas com o Imperado D. Pedro II, que o chamou, certa feita, de um “homenzinho teimoso”. Em 1864 casou-se com Georgina Cochrane com quem teve seis filhos, entre eles, o também escritor Mário de Alencar. José de Alencar faleceu em 12 de Dezembro de 1877. Principais Obras: O Guarani (1857), Lucíola (1862), Iracema (1865), O Sertanejo (1870), Senhora (1875).
SOBRE A OBRA: romance urbano publicado em 1870, expressa a vida da burguesia, seus hábitos e costumes, valorizando a honra, o desprendimento da vida de aparências e o desapego ao dinheiro. A história construída por Alencar dialoga com o conto “Cinderela”, de Perrault, e a fábula “O leão amoroso”, de La Fontaine. É uma obra leve e divertida que trata do amor à primeira vista com doses de suspense e um final feliz. A Pata da Gazela foi considerada “A Cinderela da literatura brasileira”. Alencar como Machado de Assis também se especializou na análise psicológica de suas personagens femininas, revelando seus conflitos interiores. Essa análise de caráter mais psicológico do interior das personagens remete sua obra a características peculiares dos romances realistas.
A PATA DA GAZELA E O ROMANCE URBANO: Alencar produz, ao redor da história de um triângulo amoroso entre Amélia, Horácio e Leopoldo, uma reflexão sobre algumas dimensões das práticas culturais da burguesia carioca de meados do século XIX, contrapondo posturas dos segmentos abastados dessa sociedade com aquelas das gentes modestas, pois, para o romântico, a pureza e o ideal de homem está no popular. Traz da alta sociedade do Rio de Janeiro seus espaços de reunião, personagens e costumes, para o centro da trama romanesca, seguindo o intuito de implementar um romance brasileiro, tecendo algumas apreciações críticas às práticas  sociais dos elegantes, sobretudo seu fetichismo erótico e materialista, que Horácio simboliza. Em oposição a tais aspectos, desenvolve um discurso de elogio ao amor puro, verdadeiro e imaterial, assim como à espiritualidade elevada, por meio de Leopoldo. Nessa discussão, emergem imagens da mulher e do homem românticos que se opõem àquelas de homens e mulheres do mundo burguês, tal como ainda as noções de amor, de casamento, de beleza e espiritualidade românticos contra aquelas convencionais.



RESUMO DA OBRA:
- A primeira cena do livro é determinante para o seu prosseguimento.
- Horácio, um jovem sedutor encontra um pé de botina delicado e pequeno caído no chão, derrubado por um lacaio que passa por ele.
- Horácio então decide encontrar a dona daquele pequeno sapato, imaginando que a dona possua os mais perfeitos e pequenos pés, os considerados patas de uma gazela.
- Apaixonando-se assim pela ideia da mulher perfeita que estivesse por trás do calçado.
- Do outro lado da rua durante esta cena, se encontra Leopoldo, um jovem sem uma beleza exuberante como a de Horácio, e nada sedutor, porém de bom coração, que vê Amélia passando e se apaixona por seu sorriso.
Na carruagem estavam Amélia e sua prima Laura.
Horácio acredita que Laura é a dona daqueles delicados pés e faz de tudo para se aproximar da moça.
- Horácio começa a cortejar Amélia, quem ele acredita ser o dono dos sapatos, e a pede em casamento, como uma tentativa de ver seus pés.
- Leopoldo fica arrasado com a notícia, porém tenta não demonstrar.
- Certo dia, Amélia ouve Horácio contando a Leopoldo que ela nunca havia chamado sua atenção, que apenas estava com ela por acreditar que ela era a dona do sapato.
- Ela então convida Horácio para ir a sua casa, e deixa aparecer um pouco dos pés mostrando um calçado para pés defeituosos. Ele foge e passa a procurar Laura, quem acreditar ser agora a dona do sapato. 
- É então que ele descobre a verdade, que Laura possuía pés aleijados e Amélia era realmente a dona dos calçados.
- Ambas eram primas e muito amigas, e usam um vestido cobrindo os pés, uma para disfarçar os pés aleijados e a outra os pés pequenos. Horácio tenta reconquistá-la, porém ela já está com Leopoldo, com quem se casa e apenas na lua de mel mostra seus pés pequenos e sem problemas.

PATA X GAZELA
Pata da gazela expressa uma metáfora, cujos termos entram em contradição: “pata” é o aspecto rude, e “gazela”, o lado frágil e delicado, através dos quais Amélia, a protagonista do romance, apresenta-se a seus dois pretendentes: Horácio e Leopoldo.

DESCRIÇÃO ROMÂNTICA: os textos do romantismo são marcados por forte teor descritivista.
Depois das grandes dores e das lágrimas torrenciais, forma-se também no coração do homem um húmus poderoso, uma exuberância de sentimento que precisa de expandir-se. Então um olhar, um sorriso, que aí penetre, é semente de paixão, e pulula com vigor extremo.
O moço parecia estar nessas condições: ele trajava luto pesado, não somente nas roupas negras, como na cor macilenta das faces nuas, e na mágoa que lhe escurecia a fronte. [cap. I]
A senhora acredita, D. Amélia, na atração irresistível, que impele duas almas entre si, e as chama fatalmente a se unirem e absorverem uma na outra?... [Leopoldo e Amélia, cap. IX]

DESCRIÇÃO DA BOTINA
Era uma botina, já o sabemos; mas que botina! Um primor de pelica e seda, a concha mimosa de uma pérola, a faceira irmã do lindo chapim de ouro da borralheira; em uma palavra a botina desabrochada em flor, sob a inspiração de algum artista ignoto, de algum poeta de ceiró e torquês. Não era, porém, a perfeição da obra, nem mesmo a excessiva delicadeza da forma, o que seduzia o nosso leão; eram sobretudo os debuxos suaves, as ondulações voluptuosas que tinham deixado na pelica os contornos do pezinho desconhecido. A botina fora servida, e muitas vezes; embora estivesse ainda bem conservada, o desmaio de sua primitiva cor bronzeada e o esfolamento da sola indicavam bastante uso. [cap. II]

O NARRADOR é onisciente = narrador em 3ª pessoa; não participa dos fatos relatados, mas revela que conhece tudo o que se passa com as suas personagens.

TEMPO CRONOLÓGICO
Seriam duas horas da tarde. Durante a manhã tinha caído sobre a cidade uma forte neblina, que molhara as calçadas. [cap. VI]Ao cabo de duas ou três horas,

PERSONAGENS
Sr. Pereira Sales - pai de Amélia, abastado consignatário de café, estabelecido à Rua Direita.Horácio: meu pezinho tem um dote para seu calçado. [cap. VII] + D. Leonor, a mãe [cap. XI]
Horácio: perfeito filólogo do amor, e habituado a decifrar esses hieróglifos dos lábios de mulher. [cap. VII]
D. Clementina, uma senhora, amiga íntima da irmã de Leopoldo.
AMÉLIA – uma das mais ricas herdeiras do Brasil; bela mulher disputada por 2: HORÁCIO DE ALMEIDA – o primeiro conquistador do Rio de Janeiro, homem elegante, um dos príncipes da moda + LEOPOLDO DE CASTRO – não tão belo e trajes simples.
LAURA e AMÉLIA: primas + amigas de infância.

OS PERSONAGENS MASCULINOS
Horácio e Leopoldo representam dois polos opostos da visão de mundo romântica.
HORÁCIO: inserido e figurando na alta burguesia, é um “leão”, rei dos salões e da moda; rapaz preocupado com sua elegância, volúvel, despreocupado com o trabalho e, como seu nome indica, vive no exercício de sua capacidade de conquistador, destroçando e revirando os corações femininos. Porém, a lição maior que se dará é que o amor é capaz de amansar a mais selvagem fera.
LEOPOLDO: é o príncipe do povo, é moço, modesto, simples nos trajes, meditativo, sem experiência amorosas e vive só no mundo, pois sua irmã, na qual resumia suas afeições e relações familiares, há pouco falecera.
O SAPATINHO: Nessa história, o sapato, como símbolo de identificação da mulher, que tem no mundo moderno a história de Cinderela como sua mais famosa versão. Porém, apesar de Alencar inspirar-se naquele conto, Horácio não se encontra num baile ao achar um pé de calçado de mulher e sair à procura de sua dona, por mais que na Corte fossem inúmeras as ocasiões sociais que poderiam oferecer ao romance o lastro verossímil.
Foi na área central da cidade, espaço do comércio fino, cenário dos  hábitos de consumo elegante em ascensão, onde o fetichismo das mercadorias tem seus templos e infindos
altares _ lojas e vitrines cintilantes _ , que um lacaio passou por Horácio correndo, pois o cocheiro lhe acenava, e deixou cair de um embrulho um pé de calçado. O “príncipe da moda” apanhou-o para fazer uma fineza e como pretexto de conhecer uma das  moças que ocupava a vitória, que, à distância, lhe parecia bonita, logo objeto de conquista. Era uma botina “de pelica e seda”, “a irmã do lindo chapim de ouro da borralheira”, mas o carro se afasta rapidamente, não sendo possível alcançá-lo e, de posse do botim, por meio do qual se apaixona pelo pé da mulher que o calçava, o rapaz, não pensando senão em descobrir a dona de tão delicados pés, percorre ruas e lojas,até um dia encontrá-la.

DOIS HOMENS, DUAS FORMAS DIFERENTES DE AMAR

Se Horácio tem no romance sua participação marcada pela história de amor por um pé, não mais que isso, que deixou seus contornos e aroma no botim, a de Leopoldo  advém de um sorriso de uma daquelas senhoras presentes na mesma carruagem, no mesmo dia e hora em que o leão encontrou a “obra-prima”. Ao ver uma das moças que  esperava na vitória pelo lacaio, foi tomado por uma profunda impressão, deixando-se parado a contemplá-la, admirando, não seu talhe elegante e rosto gracioso, mas “a emanação de sua alma pura, o seu casto e ingênuo sorriso.”
Tanto a dona do pé quanto a do sorriso são Amélia, que se divide entre ambos ou entre o fascínio do amor-jogo e o encanto do amor-paixão. Tece-se então duas histórias diferentes advindas da visão e interesses de dois rapazes também muito diversos. O olhar de um vê somente para o pé da moça e o do outro focaliza sua atenção no sorriso considerado como expressão da alma. Histórias que se imbricam uma na outra e que possuem a marca do suspense, uma vez que a revelação da identidade da dona do calçado é adiada e, quando o leitor supõe descobri-la, assim como Horácio, Amélia  usa de uma estratégia para testar a afeição do leão, que a todos confunde.

A ESPERTEZA DE AMÉLIA E A DECEPÇÃO DE HORÁCIO
Simulando à Horácio a deformidade de seus pés, ao usar a bota ortopédica de sua prima Laura, a outra ocupante da vitória, afugenta-o, deixando o campo livre a Leopoldo, ao qual se rende, pois, mesmo convencido que sua amada possuía um aleijão, ao associar erroneamente algumas pistas que perseguia, luta por seu amor. Enquanto o leão, pressupondo-a aleijada, entra a cortejar Laura, até perceber a ilusão de que é vítima e tentar reatar com a primeira, pois dona dos pés que ama, Leopoldo conquista Amélia com seu amor sincero e desinteressado, casando-se com ela.
Esse livro, visto de sobrevôo, não raro é considerado pelos críticos e historiadores da literatura como “uma concepção singela e quase infantil, que Alencar parece compor até por brincadeira”, como avalia Menezes, ou que é obra que se insere na moda do romance que visava ao entretenimento, envolvendo o leitor em peripécias sucessivas e  cenas patéticas, ficando mesmo no “nível do romance ligeiro”, conforme Lajolo. Na melhor das considerações, é tratado como “história curiosa, que só tem sentido no quadro da época, naqueles dias em que a indumentária longa e severa fazia do corpo da mulher um mistério envolvido em crinolinas”, levando com que o jovem leão ficasse extasiado com a idéia de ver o minúsculo pé feminino.
Entretanto, desse romance emerge, além da contraposição entre duas concepções distintas de amor, o amor-jogo presente nos salões elegantes e o amor-paixão valorizado pelos românticos, imagens duplas de homem e de mulher, isto é, de um homem mundano, burguês, e de um homem romântico; de uma mulher na visão do homem do mundo e de uma mulher advinda do olhar do romântico. No entanto, mais que isso, o texto é, em grande parte, uma reflexão sobre o fetichismo, fenômeno que, não por acaso, muito despertou a atenção de grandes pensadores dos séculos XIX e XX.

O FETICHE E SEU SIGNIFICADO
Já no início do século XX, Freud expôs sua concepção de fetichismo, observando que se
encontra na vida sexual normal, mas que pode tornar-se patológico, quando a fixação objetal decorre de uma libido infantil, que dirige a finalidade sexual, não vista como a
cópula, mas como o desejo de um ser em sua totalidade para uma parte do corpo superestimada, ou de um objeto material relacionado estritamente com uma  parte deste. Tratando do fetichismo do pé, introduz a ideia da castração, de terror e ameaça ao menino, que, diante da falta do pênis na mãe, sente seu próprio falo em perigo e recusa essa falta elegendo aquele membro como substituto do órgão ausente, tão intensamente sentida, além de ressaltar a dimensão olfativa que compõe esse culto. Outros psicanalistas desenvolveram suas próprias teorias sobre o fetichismo ao longo do
século passado e enfatizaram ainda o calçado como símbolo feminino, no qual o pé, falo, adentra. Portanto, simplista torna-se a leitura que desconsidera que Alencar, como homem atento a seu tempo e às questões que o constitui, trouxe tal questão para ser tratada nesse romance.
Em Alencar, esse universo complexo e nebuloso do fetiche, que cria situações patéticas, as quais tão bem representam o mundo moderno, é tratado, certamente, de forma bem humorada e alegórica, mas nem por isso impertinente e inconsistente. Em muito, pode parecer exagerado, mas é pelo exagero que o romântico busca revelar e pôr em evidencia aqueles traços sociais que considera negativos no seu presente ou aqueles que deseja ver implementados. Desde o início, a dimensão do culto ao objeto (o sapato, no caso) é posta em destaque, assim como a valorização, própria e individual, que o objeto adquire conforme a necessidade e olhar exclusivamente pessoal do personagem fetichista. Como objeto de culto, a bota recebe variados significados, que a afastam de seu valor de uso por parte do rapaz que a elege e a reveste desses sentidos, havendo mesmo uma superposição de imagens que pertencem a domínios que eram separados: é “concha mimosa de uma pérola”, possui “perfume”, “aroma delicioso” do corpo que guarda e exala, do “pé silfo”, “pé anjo”, de uma “deusa”, a Vênus.
O rapaz Horácio, além de ocioso, admirador apenas da beleza exterior e da forma, possuindo zelo religioso, cego e excessivo pelo prazer, tem à sua imagem agregadas outras características negativas da própria sociedade moderna, como a perda da dimensão de totalidade, a fragmentação e a busca constante da novidade e do
diferente.  Horácio é descrito como enfraquecido e insensível, apegado ao efêmero e à  busca de satisfação de seus desejos  com coisas agradáveis e novas. Nesse movimento, perde a dimensão do todo, do conjunto e aferra-se à novidade e ao parcial, em que tudo torna rapidamente substituído, até fixar-se ao pé. Considera o narrador, como alguns psicanalistas, que o apego ao pé como símbolo erótico revela uma atitude infantil de um homem com uma evolução psicológica anormal, ao tratar o comportamento e as atitudes de Horácio, contemplando e cultuando o objeto, como extravagância e vício. O rapaz, que ora em culto da matéria, que dedica suas horas ao ócio, representa um segmento da sociedade que usa da riqueza de modo estéril, que, diante da existência e  das dificuldades que esta apresenta, recorre ao dinheiro como  meio para resolvê-las. Configurado como possuidor de uma conduta alienada, fetichista e materialista, esse personagem tem como templos, lojas, salões e teatros, mas possui ainda seu altar particular no qual pratica sua idolatria e venera o pé impresso no calçado, iluminado por velas sobre uma almofada.
Amélia, moça inocente, inexperiente no amor e dos jogos de sedução dos salões, pouco sabendo distinguir entre as formas de manifestação amorosa, não diferencia, de imediato, o amor-jogo da sala daquele do amor-paixão.
Horácio, representante da visão de amor como jogo, logo, um estrategista, sabe manejar o imaginário que cerca as práticas amorosas, pois conhecedor, como ninguém, das fantasias femininas e do questionário que envolve, assim, o desenrolar da história revela também outras práticas rituais do universo amoroso, como a linguagem. O rapaz, que representa as práticas das camadas altas da sociedade, na qual os casamentos davam-se pela mediação dos interesses econômicos e políticos, dentre eles, o dote, logo inserido num contexto em que são normais os mais diversos tipos de arranjos, considera legítimo casar-se para satisfazer apenas seus desejos de ter aquele pé, expondo, sem sobressalto, a comum ausência de sentimentos nas escolhas matrimoniais.
O romântico LEOPOLDO confronta-se com o mundano Horácio, num diálogo que revela muito sobre a figura do homem do mundo burguês e suas posturas fetichistas, como uma perversão e como uma atitude de vestir máscaras aos objetos, em oposição a um homem e um sentimento amoroso românticos, que buscam o imaterial e o sagrado.
O fetiche, como uma doença e uma alienação social produzida por um mundo materialista, é assinalado por aquele que se apresenta como seu opositor. Para Leopoldo, o que Horácio amava não era mais do que uma forma, um capricho, um sonho de sua imaginação enferma, pois homem gasto para o amor e saciado de prazeres. A mulher era, para o leão, uma coisa comum e vulgar, incapaz de produzir-lhe emoções fortes. Tinha-a admirado de todos os tipos e de todos os caracteres, seu coração exausto precisava de alguma coisa nova, original e extravagante.
Alencar premia Leopoldo por amar a alma, o todo da mulher, ama sem interesse material, que busca o belo não só da forma, mas também do interior. É com Leopoldo, o príncipe do povo, que Amélia casa-se com pouco tempo de namoro dado no jardim de sua casa. Ali, num espaço que resume a natureza que, mesmo recriada e cultivada, é divina, em tardes agradáveis, por “entre cortinas deflores”, “celebravam esse místico himeneu do amor, único eterno e indissolúvel, porque se faz no seio do Criador”. As “duas almas, por tanto tempo separadas”, uniam-se ou, antes, como prefere o narrador, entranham-se uma na outra. Numa cerimônia privada, tendo apenas dois amigos como testemunhas, “inteiramente à capucha, e sem prévia participação”, para evitar as maledicências da sociedade, celebra-se a cerimônia. Expressando ainda mais a interiorização que representa esse comportamento, Horácio, que observava, incógnito e surpreso, de um observatório do jardim, a cerimônia e o entrar dos noivos no toucador, teve sua visão ofuscada pela janela que se fechou com violência em razão de um temporal que desabou no momento. Numa atitude de recusa ao conturbado mundo social, e de acordo com o código antigo do imaginário amoroso, o segredo cerca a relação amorosa no interior da vida familiar e no espaço da intimidade, afastando-o dos olhos inimigos e garantindo sua eterna indissolubilidade. Leopoldo é aquele que, diante de um comportamento amoroso fetichista, fugaz, oferece uma outra possibilidade de vivenciar o amor, assim como de outra noção de belo, sendo também modelo de masculinidade, que se contrapõe àquele em ascensão no mundo burguês.
LEOPOLDO:  Tecendo considerações sobre esse rapaz, que representa o homem romântico, o narrador apresenta algumas apreciações iniciais que buscam revelá-lo, como seus trajes e moradia modestos, aparência descuidada, maneiras bruscas e sua existência solitária. Como sua irmã e única parente havia morrido, Leopoldo vive o isolamento com a desintegração de suas relações parentais, busca, num envolvimento amoroso, reconstruir seus laços afetivos. Ele expressa uma concepção sacralizadora do amor e da mulher amada,dá ênfase ao olhar, ao sonho e à contemplação, recorre a sua memória buscando representar em sua lembrança a imagem da moça, associa amor e mel, assim como a decepção que este traz à amargura do fel.
A valorização da beleza e da mulher adquire um sentido religioso e espiritualizado, como também da experiência interior do ser amado. Nessa concepção de mundo e amor,  tudo é envolto por certo ar de magia e religiosidade que oferece legitimidade aos acontecimentos. Aqui as palavras, como forma de entendimento, possuem, em muitos momentos, pouco valor e quase nenhum alcance, enquanto os  olhares traduzem, com toda força e intensidade, o conhecimento pela contemplação distante, pelo brilho que irradia e poder que possui.
Assim, expõem-se aspectos importantes da concepção de amor romântica, como seu traço sagrado, a atração e união de almas, a existência do momento certo para ocorrer e originar do primeiro olhar, tal como as questões da beleza, do horrível, da imortalidade, da verdade, da pureza e da imaterialidade que a perpassam.
Portanto, parece indevido considerar esse romance como simples brincadeira de Alencar. Nele, além de fazer sua leitura sobre a questão do fetichismo sexual e que envolve a mercadoria, expõe concepções divergentes, que se confrontam, de homem e de mulher, de amor, de beleza, advindas de formas de ver o mundo diferentes que estavam  presentes na sociedade fluminense de seu tempo e que faziam parte do embate simbólico que aí se travava.



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