ANÁLISE
DA MÚSICA “Pra não dizer que não falei das flores”
CONTEXTO
HISTÓRICO
O ano de 1968 foi palco de grandes
manifestações e marcos para a história, não só no Brasil, mas também na Europa,
nos Estados Unidos, Tchecoslováquia e México. Tudo acontecia quase que ao mesmo
tempo: a Guerra no Vietnã, a Primavera de Praga, o assassinato de Martin Luther
King e Robert Kennedy, o decreto do AI-5, a Tropicália, o Festival de Cinema de
Cannes, etc.
O
Tropicalismo
Depois do golpe
militar de 1964, o Brasil vê-se diante de 10 anos de censura, repressões,
torturas, exílios e passeatas, mas nenhum desses anos foi tão intenso quanto o
de 1968, depois da morte do estudante Edson Luís que foi assassinado por
policiais, os estudantes se revoltaram e
foram para as ruas pedir por mais liberdade, democracia, melhores condições de
estudo e principalmente pelo fim da ditadura. Entre as manifestações surgiu
um movimento chamado Tropicalismo,
que além de seus principais representantes Caetano Veloso e Gilberto Gil,
contavam também com artistas como: Gal Costa, Tom Zé, Mutantes, Nara Leão, etc.
Os tropicalistas mudaram o conceito de bossa nova e surgiram com uma nova
linguagem de MPB, incorporaram instrumentos nas composições e as letras das
músicas agora eram cheias de protestos, críticas e desabafos, misturaram
gêneros, cores, estilos e foram essenciais para caracterizar a história do País
daquela década. Infelizmente, o Tropicalismo não durou muito.
Depois da morte do
estudante Edson Luís, surgiram grandes manifestações ao decorrer do ano como é
o caso da Passeata dos Cem Mil, que reuniu aproximadamente 100 mil pessoas,
entre elas: artistas, padres, mães, intelectuais, estudantes. Mas no fim do
ano, quando os estudantes se reuniram em um congresso em Ibiúna – SP, os
policiais deram fim a tudo aquilo prendendo os grandes líderes estudantis,
ferindo vários estudantes e aliados. Logo depois, Caetano Veloso e Gilberto
Gil, também foram presos e logo se exilaram, era o fim do Tropicalismo, era o
começo do silêncio da UNE (que durante alguns anos, não teve grandes
manifestações) e também era o início de uma fase muito mais severa, do que a
que se vivia até o momento: foi decretado em dezembro de 1968 o Ato Institucional nº. 5, pelo presidente Costa e
Silva. Em 13 de dezembro de 1968, o governo militar edita o Ato
Institucional número 5 dando amplos poderes ao executivo, suspendendo o habeas
corpus para crimes políticos.
Entre tantas músicas,
que de uma forma ou de outra nos conta os longos 20 anos de ditadura, existe
uma em especial: “Pra não dizer que não falei das flores”. Composta por Geraldo
Vandré, um homem paraibano, que depois de 1968 sumiu e ficou durante anos em
silêncio, mas que deixou como herança para as novas gerações, uma composição
que por muitos é considerada um hino contra a ditadura, alguns ainda dizem que
é a Marselhesa brasileira. Marselhesa: canto
de guerra revolucionário que acompanhava a maior parte das manifestações
francesas, e em 1975 tornou-se hino nacional da França.
PRA
NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DAS FLORES, GERALDO VANDRÉ
Caminhando e cantando
e seguindo a canção
Somos todos iguais
braços dados ou não
Nas escolas nas ruas,
campos, construções
Caminhando e cantando
e seguindo a canção
Vem, vamos embora, que
esperar não é saber,
Quem sabe faz a hora,
não espera acontecer
Vem, vamos embora, que
esperar não é saber,
Quem sabe faz a hora,
não espera acontecer
Pelos campos há fome
em grandes plantações
Pelas ruas marchando
indecisos cordões
Ainda fazem da flor
seu mais forte refrão
E acreditam nas flores
vencendo o canhão
Vem, vamos embora, que
esperar não é saber,
Quem sabe faz a hora,
não espera acontecer.
Há soldados armados, amados ou não
Quase todos perdidos
de armas na mão
Nos quartéis lhes
ensinam antigas lições
De morrer pela pátria
e viver sem razão
Vem, vamos embora, que
esperar não é saber,
Quem sabe faz a hora,
não espera acontecer.
Vem, vamos embora, que
esperar não é saber,
Quem sabe faz a hora,
não espera acontecer.
Nas escolas, nas ruas,
campos, construções
Somos todos soldados,
armados ou não
Caminhando e cantando
e seguindo a canção
Somos todos iguais
braços dados ou não
Os amores na mente, as
flores no chão
A certeza na frente, a
história na mão
Caminhando e cantando
e seguindo a canção
Aprendendo e ensinando
uma nova lição
Vem, vamos embora, que
esperar não é saber,
Quem sabe faz a hora,
não espera acontecer.
Vem, vamos embora, que
esperar não é saber,
Quem sabe faz a hora,
não espera acontecer.
Caminhando e cantando
e seguindo a canção / Somos todos iguais braços dados ou não: representa as
passeatas que reuniam, em sua maioria, jovens que tinham consigo um desejo de
mudança, ambições e sonhos, eram movidas a cartazes de protestos, a vozes
gritantes que entoavam hinos e músicas. Essa frase também nos mostra que
independente de crenças e ideias, as pessoas são iguais, estando elas do mesmo
lado ou não.
Nas escolas nas ruas,
campos, construções:
as manifestações eram compostas de pessoas de diversos ambientes, mas que
possuíam o desejo de mudança em comum: agricultores, operários, camponeses,
mulheres, jovens, professores, jornalistas, intelectuais, padres e bispos. No
caso de professores, jornalistas e intelectuais eles eram censurados e
vigiados, o que depois de AI-5 ocorreu com maior intensidade, os professores
não podiam lecionar e mencionar nada referente ao golpe, os jornalistas tinham
seus artigos e matérias cortadas pela censura e os intelectuais eram proibidos
de disseminar suas ideias e também de publicá-las. Nas universidades não havia
vagas e muitos jovens não conseguiam estudar, mulheres eram descriminadas e
impedidas de trabalhar, os operários sofriam com os baixos salários,
agricultores e camponeses tinham suas terras ocupadas e os padres e bispos eram
ameaçados, presos e muitas vezes expulsos do país. Então a maneira encontrada
para protestarem pelos seus direitos, era juntar-se aqueles que também possuíam
idéias de mudança e desejo por um país melhor.
Vem, vamos embora, que
esperar não é saber:
esse trecho contesta sobre aqueles que sofriam o momento na pele e não faziam
nada, afinal não se muda um país, ficando parado. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer: refere-se também a
essas pessoas que preferiam ficar em silêncio em vez de tentar alcançar a
mudança junto aos estudantes e aos demais.
Pelos campos há fome
em grandes plantações: as pessoas que trabalhavam nos campos, ou que eram
agricultores, também sofriam com a ditadura, os poucos que possuíam um pedaço
de terra a mesma lhe era tomada, os camponeses muitas vezes eram despejados e
acabavam por passar fome.
Pelas ruas marchando
indecisos cordões:
“cordões” é como ficou conhecido os grupos de foliões que tomavam as ruas
durante o carnaval; o nome refere-se a característica dos grupos serem formados
de forma que as pessoas se sucedem. Assim era composta algumas das
manifestações, como foi o caso da Passeata
dos Cem Mil, que parecia ser dividida em blocos: artistas, mães, padres,
intelectuais e entre outros, que em muitos casos, caminhavam indecisos ou com
medo dos militares.
Ainda fazem da flor
seu mais forte refrão / E acreditam nas flores vencendo o canhão: enquanto os militares
reprimiam os protestantes com canhões, bombas de gás e armas, a população saia
nas ruas com cartazes e com a força de suas vozes, muitos atirando pedras e
tudo o que se estivesse ao alcance, mas nada parecia ser tão forte e provocante
quanto os gritos. As palavras de ordem dos movimentos estudantis, frases e
músicas daquele ano, essas sim eram suas verdadeiras flores. Mas começaram a
surgir grupos que não acreditavam mais em democracia sem a violência, alguns
grupos de radicais se formavam e gritavam em coro: “Só o povo armado derruba a
ditadura”, enquanto do outro lado um grupo militante gritava: “Só o povo
organizado conquista o poder”.
Há soldados armados,
amados ou não / Quase todos perdidos de armas na mão: os soldados estavam
sempre armados e dispostos a prender os manifestantes e levá-los para as salas
do DOPS, porém, muitos pareciam alienados, não sabiam direito o que acontecia
ou fingiam não saber, para quem sabe assim se redimir da culpa de tantas mortes
e “desaparecimentos” da época. Mas tinham famílias, namoradas, mãe, irmãos
podiam sim ser amados por alguém ou então odiados por todos. Muitas
manifestações foram, sobretudo contra a violência dos policiais.
Nos quartéis lhes
ensinam antigas lições / De morrer pela pátria e viver sem razão: Os soldados aprendiam
lições e como se houvesse uma lavagem cerebral aceitavam cumprir as ordens do
governo, mas acredito que em sua maioria muitos sabiam exatamente o que faziam
e concordavam com os planos e métodos. Como diz a frase eles aceitavam morrer
pelo seu país, mesmo que para isso eles fossem recriminados pela população e
tivessem que viver sem anseios e sem razão, afinal de contas eles só serviam
para fazer o trabalho pesado para os governantes. Somos todos soldados, armados
ou não: na contradição de ser ou não soldados, todos eram, a diferença esta nas
armas e na motivação.
Os amores na mente, as
flores no chão / A certeza na frente, a história na mão: a maioria, se não
todas as pessoas que participavam ativamente dos manifestos eram motivados
pelas perdas que sofriam, pelas mortes de amigos, parentes, conhecidos, pela
dúvida do que aconteciam com as pessoas que eram levadas. Alguns dos jovens
quando crianças viram seus pais serem levados por policiais e nunca mais
tiveram noticias, muitos viram seus amigos morrerem e o corpo simplesmente
desaparecer e acabavam por não ter direito ao enterro, alguns poucos voltavam e
de outros nunca mais se ouvira, eram guiados pela certeza de que poderiam mudar
o mundo e pela história que cada um deles possuía.
Aprendendo e ensinando uma nova lição: Grande parcela dos
jovens brasileiros de hoje, desconhecem o período de 10 anos desde o golpe
militar até o fim da ditadura, o desejo de mudança, a fome por liberdade e a
coragem de lutar não está entre as principais prioridades do jovem do século
XXI. O conformismo, a tecnologia, e várias outras novidades que surgiram após
1968, impedem que estudantes despertem em si os mesmos desejos de mudança. Muitos
jovens não conseguem imaginar que existiu um tempo em que não havia internet,
raves, DVD, CD, TV em cores e muito menos TV a cabo, shopping centers, big
brother, entre outras coisas. Os jovens são movidos a saciar seus desejos e
vontades muitas vezes supérfluas e estão mais preocupados com o próprio
bem-estar, muitos desperdiçam o direito de voto, que infelizmente só foi
conquistado após ditadura, direito esse que tanto foi motivo de luta dos jovens
que almejavam garantir sua opinião e participar da história do próprio país.
Insatisfação contra a corrupção, violência, injustiça, leis, governos, escolas,
mas não passam de apenas reclamações.
A
música de Geraldo Vandré é clara, conscientiza e informa sobre o ano de 1968 e
os demais que se seguiram da ditadura militar. Faz com que o cidadão repense
sobre atitudes e ideais, sobre o velho e o novo, e de como o ditado “um por
todos, e todos contra um” foi tão intenso durante aqueles anos. Os estudantes
podem não ter derrubado a ditadura, mas foram vistos e foram parte importante e
indispensável da história. É decepcionante saber de que nos tempos atuais,
aceitamos o que nos é imposto, fazemos parte de uma massa que cada vez mais
parece alienada e movida às tecnologias. Não conseguimos nos separar de bens
materiais e tampouco lutar contra isso, nos conformamos e ficamos aprisionados.
O
ano de 1968 ficou apenas como exemplo de uma geração de jovens com ideais,
alguns alienados sim, mas a maioria com esperança de um país melhor e capaz de
lutar pela liberdade e por aquilo em que acreditavam. O conhecimento dos
próprios direitos e deveres é imprescindível para que se construa uma sociedade
melhor e democrática, além de ser o principal dever do cidadão.
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