NOTA: Vítima: pessoa ferida, violentada, torturada,
assassinada ou executada por outra; pessoa que é sujeita a opressão,
maus-tratos, arbitrariedades; pessoa que sofre por sucumbir a vício ou
sentimento próprio ou de outrem; pessoa contra quem se comete qualquer crime ou
contravenção.
Algoz: carrasco, executor da pena de morte ou de outras
penas corporais (como tormentos, açoites etc.). Indivíduo cruel, de maus
instintos; atormentador, assassino, aquilo que aflige ou atormenta. (Dicionário HOUAISS)
Sobre o autor:
Joaquim
Manuel de Macedo nasceu em Itaboraí, no dia 24 de junho de 1820. Graduado em
Medicina no Rio de Janeiro no ano de 1844, foi também um dos mais
significativos autores brasileiros. No mesmo ano em que se formou ele ingressou
nas veredas literárias com o clássico A
Moreninha, com o qual ganhou celebridade e recursos financeiros. O escritor
faleceu no Rio de Janeiro, sua terra natal, em 11 de abril de 1882.
Contexto de produção:
A abolição da Escravatura:
“O Treze de Maio não é uma data apenas entre
outras, número neutro, notação cronológica. É o momento crucial de um processo
que avança em duas direções. Para fora: o homem negro é expulso de um Brasil
moderno, cosmético, europeizado. Para dentro: o mesmo homem negro tangido para
os porões do capitalismo nacional, sórdido, brutesco. O senhor liberta-se do
escravo e traz ao seu domínio o assalariado, migrante ou não. Não se decretava
oficialmente o exílio do ex-cativo, mas passaria a vivê-lo como estigma na cor
da sua pele" (Alfredo Bosi)
Vítimas-algozes segue na contramão do que se
considera o movimento de abolição dos escravos. Ao contrário do ideário
romântico de vários poetas abolicionistas contemporâneos de Macedo, o autor
alimenta a ideia de que os cativos devem conquistar sua liberdade não porque a
merecem, e assim se veriam livres dos maus-tratos de seus proprietários, e sim
por estar prejudicando os senhores ao inserirem nas comunidades familiares
brancas a degradação orgânica e ética. Sobre o romance, Macedo explica, na nota
“Aos Nossos Leitores”, não lhe interessou, nas “educativas” e “moralizantes”
histórias que entregava aos consumidores de sua vasta obra, pintar “o quadro do
mal que o senhor, ainda sem querer, faz ao escravo”, mas, sim, o “quadro do mal
que o escravo faz de assento propósito ou às vezes irrefletidamente ao senhor”.
Mesmo com o sinal invertido, a obra é considerada como o retrato de uma
ideologia abolicionista. Talvez por esta razão não tenha atraído o leitor do
século XIX, nem convencido os críticos assim que foi lançado, em 1869, dezenove
anos antes da libertação dos escravos.
Estilisticamente
ela integra as fileiras do Romantismo,
um dos movimentos literários mais significativos da literatura brasileira. Mas
sua fama nasceu do fato de ter sido uma das produções românticas mais alvejadas
pela crítica. Apesar de tudo, As Vítimas
Algozes é uma representação precisa do país logo depois da abolição dos
escravos.
Macedo crê que o sistema escravagista produz oprimidos cruéis, daí o título – Vítimas-Algozes. Por esta razão ele deve ser eliminado pouco a pouco, sem provocar qualquer dano aos fazendeiros. Ainda hoje parece estranho alguém defender que um ser socialmente subjugado age como um carrasco racional, mas hipocrisias à parte, nossa sociedade olha com a mesma desconfiança para os descendentes dos antigos escravos.
Por meio
de uma ótica contrária a qualquer mudança, o autor se vale de figuras como a escrava Lucinda para comprovar sua
teoria de que os negros cativos são desprovidos de moral e exercem uma
ascendência desvirtuada sobre os brancos. Macedo vê qualquer relação entre
senhor e escravo, nos momentos finais da escravidão, como uma atitude sádica e
masoquista.
Em um
contexto no qual se opõem os militantes da abolição, defensores da liberdade
dos escravos, e os que preconizam a existência deste sistema, a posição do
autor é no mínimo original. Esta obra foi publicada em 1843, 1896 e,
finalmente, em 1988. Apesar de tudo é um livro fundamental para se entender
melhor uma época de extrema importância para a história de nosso país.
De acordo com o contexto histórico da época, Joaquim Manuel alertava ao
leitor burguês de que o melhor a fazer era gradualmente abolir a escravidão. Desfilam
pelas páginas das três histórias que compõem o livro: o negro feiticeiro, o
“moleque” traiçoeiro, a escrava assassina, as negras que se amasiam com seus
patrões, a mucama lasciva, os negros desocupados dos botequins, os mulatos
espertalhões, enfim, um sem número de tipos que demonstram ao leitor o quão comprometedor
à estabilidade social era a presença do escravo na intimidade doméstica.
O objetivo político das três histórias que compõem o livro está claro
desde a nota inicial aos leitores. Professando narrar apenas “histórias
verdadeiras”, queria firmar, na “consciência” do público, “as verdades que
vamos dizer”.
Obra de convencimento, portanto, As vítimas-algozes era
tentativa de obrigar os leitores a “encarar de face, a medir, a sondar em toda
sua profundeza um mal enorme que afeia, infecciona, avilta, deturpa e corrói a
nossa sociedade, e a que nossa sociedade ainda se apega semelhante a desgraçada
mulher que, tomando o hábito da prostituição, a ela se abandona com indecente
desvario”.
A retórica é semelhante àquela dos conselheiros de Estado em 1867, e
Macedo recita as estrofes do isolamento internacional do país, do exemplo da
guerra civil americana, do processo de emancipação em Cuba, e do caráter
“implacável” da reforma, “exigência (...) da civilização e do século”. Afirma
que a escravidão é “cancro social”, que se não “estirpa (...) sem dor”; mas o
“adiamento teimoso do problema” agravaria o mal, pois o país poderia ter de
enfrentar a “emancipação imediata e absoluta dos escravos”, colocando “em
convulsão o país, em desordem descomunal e em soçobro a riqueza particular e
pública, em miséria o povo, em bancarrota o Estado”.
O cenário apocalíptico que Macedo antevê como decorrência de uma
possível emancipação imediata dos escravos revela já de início o que seria esta
obra, a forma como faz desfilar uma galeria medonha de escravos astuciosos,
trapaceiros e devassos, sempre dispostos a ludibriar os senhores e ameaçar os
valores e o bem-estar da família senhorial.
Preocupado em não deixar nada por explicar, Macedo esclarece que havia
dois caminhos a seguir para mostrar aos leitores “a reprovação profunda que
deve inspirar a escravidão”. O primeiro consistiria em narrar as misérias e os
sofrimentos dos escravos, suas vidas “de amarguras sem termo”, o “inferno
perpétuo no mundo negro da escravidão”. Seria o quadro do mal que o senhor faz
ao escravo, “ainda sem querer”. O segundo caminho, aquele escolhido por Macedo,
mostraria “os vícios ignóbeis, a perversão, os ódios, os ferozes instintos dos
escravos, inimigo natural e rancoroso do seu senhor”. Seria o quadro do mal que
o escravo faz ao senhor, “de assentado propósito ou às vezes involuntária e
irrefletidamente”.
Características
Românticas:
Cenas de amor, prevalência de intriga e peripécias,
previsibilidade da narrativa, situações patéticas, sentimentalismo,
inverossimilhança, maniqueísmo, simplificação da realidade, mistério, suspense,
personagens sociais e estereotipadas, identidade não revelada de personagens,
romance de costume.
Características
Realismo-Naturalismo:
Romance-tese, determinismo e fatalismo, ênfase ao
lado instintivo do homem, apelo à hereditariedade, ao patológico e ao grotesco,
valorização da coletividade, busca da verdade dos fatos.
Trajetória
do negro na Literatura:
ESCRAVO
NOBRE: vence por
conta do branqueamento.
"A tez é como o marfim do teclado, alva que
não deslumbra, embaçada por uma nuança delicada, que não sabereis dizer se é
leve palidez ou cor-de-rosa desmaiada. (...) Na fronte calma e lisa como o
mármore polido, a luz do ocaso esbatia um róseo e suave reflexo; di-la-íeis
misteriosa lâmpada de alabastro guardando no seio diáfano o fogo celeste da
inspiração."
( A Escrava Isaura – Bernardo Guimarães)
NEGRO VÍTIMA: defesa da causa
abolicionista
São os
filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão. . . (Castro Alves)
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão. . . (Castro Alves)
O ESCRAVO = DEMÔNIO
“... sem atingir a dignidade de homem livre, e sem
reconhecer e sentir a absoluta submissão de escravo.” (Simeão, o crioulo)
Análise
da obra:
“Queremos agora contar-vos em alguns romances
histórias verdadeiras que todos vós já sabeis...”
“...
Verdades que não precisam mais de demonstração, obrigando-vos deste modo a
encarar de face, a medir, a sondar em toda sua profundeza um mal enorme que
afeia, infecciona, avilta, deturpa e corrói a nossa sociedade...”. O autor constrói um perfil aterrorizante para
o escravo, misto de tigre e serpente, de vítima e algoz, capaz de atacar quando
menos se espera. A tese síntese da obra é: “O coração do escravo é
escuro, tenebroso como noite de tempestade: é abismo profundo e sem luz coberto
pela crosta da tristeza íntima e da desconfiança perpétua.” “O escravo é a
matéria-prima com que se preparam crimes horríveis que espantam a nossa
sociedade.” p.30
1ª narrativa - "Simeão, o crioulo"
n Consciência da
Escravidão – Influências:
n COZINHA: os
castigos físicos
n SALA: depravação
n VENDA: os vícios
O protagonista, Simeão, perdera a mãe, que fora ama-de-leite da
sinhazinha, aos dois anos, tendo sido criado pelos patrões. Até os oito anos de
idade Simeão teve prato à mesa e leito no quarto de seus senhores, e não teve
consciência de sua condição de escravo. Tinha algumas
regalias em função disso, mas não deixava de ter o estatuto e o tratamento de
escravo, fator que se agrave se tornava mais claro conforme ele se fazia
adulto. Depois dos oito anos apenas foi privado da mesa e do quarto em comum;
continuou, porém, a receber tratamento de filho adotivo, mas criado com amor
desmazelado e imprudente, e cresceu enfim sem hábito de trabalho. Devia ter 20
anos, crioulo de raça pura africana, cabelos penteados, vestido com asseio e
certa faceirice, era calçado e tinha vícios de linguagem. Havia, no entanto, a
expectativa de que seria alforriado quando o patrão morresse, o que não
acontece, tendo este, em seu testamento, transferido a alforria certa para o
momento em que a esposa falecesse. Simeão, que já alimentava ódio contra os
patrões, trama e realiza, juntamente com um comparsa, o assassinato da família
toda e o saque do ouro e da prata que guardava. O quadro se reveste de maior
crueldade porque os proprietários de Simeão se achavam, no íntimo, protetores
bem-intencionados do mesmo, tendo, inclusive, na véspera do crime, decidido que
iriam alforriá-lo imediatamente. Não eram, no entanto, capazes de questionar o
sistema que os privilegiava, em todos os sentidos, e desumanizava o outro pólo
(os escravos) da sociedade. Sistema que, Macedo diz com todas as letras, produz
o ódio e o crime, no que o romancista estava se apoiando em dados da sociedade
real. Sua personalidade era ingratidão perversa, indiferença selvagem,
inimizade, raiva, vícios, era vadio, dissimulado, ladrão, tinha instintos
animais e era atrevido.
Seus senhores eram: Domingos Caetano, Angélica, Florinda e Hermano de
Sales. Eram bons e humanos, tinham delicadeza de sentimentos e sentimentos
generosos. Honestos e trabalhadores.
O autor constrói um perfil aterrorizante para o escravo, misto de tigre e serpente, de vítima e algoz, capaz de atacar quando
menos se espera. Claramente procura amedrontar os brancos senhores de escravos
e sugere como solução o fim da escravidão. Solução que configura a tese básica
que passa pela conclusão de cada um dos três quadros da escravidão.
A novela não tem por final um desfecho romanesco, mas a reafirmação da
tese do autor:
Simeão foi o mais ingrato e perverso dos homens.
Pois eu vos digo que Simeão, se não fosse escravo, poderia não ter sido
nem ingrato, nem perverso.
A escravidão degrada, deprava, e torna o homem capaz dos mais medonhos
crimes.
O narrador é didata: ele explicita a conduta, a forma de agir a ser
adotada pelo leitor: Se quereis matar Simeão, acabar com Simeão, matai
a mãe do crime, acabai com a escravidão.
2ª narrativa - "Pai-Raiol" O feiticeiro.
Algumas considerações do autor: o feitiço, como a sífilis, veio da
Àfrica; o escravo africano é o rei do feitiço. Preconceito religioso.
Paulo Borges era um rico fazendeiro. Casara-se aos quarenta anos com
Teresa, uma senhora ainda jovem que já lhe dera dois filhos. A compra de vinte escravos,
entre eles Pai Raiol e Esméria. É o ano fatal de Paulo Borges. Acontece o
adultério.
Os personagens são:
Paulo Borges - 46 anos. Alto, cabelos castanhos e
crespos; fronte baixa sob sobrancelhas bastas; olhos pretos e belos, nariz
aquilino; boca rasgada, lábios grossos e eróticos; rosto oval e bronzeado; seco
de músculos; peitos largos e mãos engrandecidas e calejadas pelo trabalho. O
tipo do lavrador honesto que hoje raramente se encontra, do pobre rico que se
subtraia ao mundo, e só queria conhecer a roça e a casa, os escravos e a família,
trabalhando sempre, gastando pouco, ajuntando muito, e não pesando a nenhum
outro homem como ele. Não comprava homens, comprava máquinas; queria braços e
não corações; gabava-se de senhor severo e forte, entrava nos seus timbres
amansar os negros altanados e incorrigíveis.
Teresa - Jovem, simples de costumes, honesta,
laboriosa, afeita à vida rural dos fazendeiros. Dirigia a dispensa, a
enfermaria, e a grosseira rouparia dos escravos.
Os filhos Luís e Inês
Pai Raiol - Negro africano de 30 a 36 anos; baixa
estatura, corpo exageradamente maior que as pernas; cabeça grande; olhos
vesgos, mas brilhantes e impossíveis de se resistir à fixidez do seu olhar pela
impressão incômoda do estrabismo duplo e por não sabermos que fruição de
magnetismo infernal. Nas faces cicatrizes vultuosas de sarjaduras recebidas na
infância: um golpe de azorrague partira pelo meio o lábio superior, e a fenda
resultante deixara a descoberto dous dentes brancos, alvejantes, pontudos
dentes caninos que pareciam ostentar-se ameaçadores. Sua boca era pois como mal
fechada por três lábios; dous superiores e completamente separados, e um inferior
perfeito. O rir era hediondo por semelhante deformidade. A barba retorcida e
pobre, mal crescida no queixo, como erva mesquinha em solo árido. Suas orelhas
perdera o terço da concha na parte superior, cortada irregularmente em
violência de castigo ou furor de desordem. Tinha má reputação: desordem com os
parceiros, furtos, envenenamentos. Já tivera 4 senhores. O último morrera de
ulcerações no estômago e intestinos. Pai– Raiol acabara por dobrar-se humilde
às condições da escravidão. Dizem que mudara devido aos seus felizes amores com
a crioula Esméria, que com ele convivia e o dominava.
Esméria - Era uma crioula de 20
anos com as rudes feições da sua raça abrandadas pela influência da nova
geração em mais suave clima; em seus olhos, porém, e no conjunto de seus traços
fisionômicos, havia certa expressão de inteligência e de humildade que agradou
à senhora. Esméria não era o que parecia. Refinara o fingimento. Via nos filhos
de seus senhores futuros e aborrecidos opressores, e beijava-lhes os pés que às
vezes desejava morder. Luzia-lhe nos olhos o amor da senhora, que a amava e
distinguia, e lhe dispensava favores, e no fundo do coração maldizia dela.
Invejava-lhe os vestidos, os gozos, a condição. Em sua louca vaidade pretendia
ser mais bonita, mais bem feita, mais sedutora que Teresa. Era possessa do
demônio da luxúria; amava os amantes de sua raça, preferia-os a todos os
outros, mas envergonhava-se deles. Aspirava a fortuna do amor, da posse, da
paixão delirante de um homem livre e rico. Ao contrário do que se pensava não
havia uma influência benéfica de Esméria sobre o Pai-Raiol e sim uma influência
satânica do Pai- Raiol sobre Esméria.
Tio Alberto
Lourença
O plano de Pai-Rayol: seis meses depois, os bois e as bestas morriam, e
não havia peste: tornaram-se evidentes os sinais de envenenamento. Em uma noite
de ventania, o fogo devorou o imenso canavial. Mais uma vez as bestas, os bois
e os carneiros morreram às dezenas, envenenados. Paulo Borges amava Teresa, mas
grosseiro escravo da sensualidade sucumbiu à sedução de Esméria. O demônio da
lascívia deu poder à crioula. O senhor, o velho senhor ficou escravo da sua escrava.
O adultério hediondo faz da escrava rival da senhora, rival preferida que
desordena a casa, enluta a família, e é cratera aberta do vulcão que espalha a
ruína. Teresa descobre o adultério e a traição: envelhecera 20 anos em 8 dias. Atropelando
a decência, insultando manifestamente a esposa, semeando a indisciplina e a
mais perigosa desmoralização na fazenda, Paulo freqüentou de dia e aos olhos de
todos, a senzala de Esméria. Morre Teresa envenenada por Esméria. Esméria
assume a casa do amante. Morre o filho recém-nascido de Teresa e Paulo, por
falta do aleitamento materno; morrem Luís e Inês envenenados; Esméria começa a
envenenar Paulo. Lourença denuncia Esméria e prova a verdade a Paulo. Pai-Raiol
é morto em uma luta pelo tio Alberto que é alforriado por Paulo. Esméria é
presa. Paulo Borges arrasta sombria velhice atormentado pelos remorsos.
3ª narrativa - "Lucinda - A mucama"
É o terceiro e último romance em As vítimas-algozes.
Os personagens são:
Lucinda - "Engomo, coso,
penteio e sei fazer bonecas"; a mulher escrava, uma filha da mãe fera, uma
vítima da opressão social, uma onda envenenada desse oceano de vícios
obrigados, de perversão lógica, de imoralidade congênita, de influência
corruptora e falaz, desse monstro de criaturas humanas, que se chama
escravidão. Tem 12 anos, um pouco magra, de estatura regular, ligeira de
movimentos, afetada sem excesso condenável no andar. Muito viva e alegre com
pretensões a bom gosto no vestir; com aparências de compostura decente nos
modos; diligente e satisfeita no trabalho. Trazia dissimuladamente escondidos
os conhecimentos e noviciados dos vícios e das perversões da escravidão;
corrupta, licenciosa, imoral; indigna de se aproximar de uma senhora honesta,
quanto mais de uma inocente menina.
Plácido Rodrigues - padrinho
de Cândida, o mais opulento fazendeiro e capitalista do lugar; pai de
Frederico.
Frederico - perdeu a mãe ao nascer e foi amamentado
por Leonídia. Inteligente e estudioso. Reflexão fria e segurança de juízo. Foi
juntamente com Liberato à Europa para fazer estudos regulares de agricultura e
pretendiam continuar os estudos nos Estados Unidos. Fronte magnífica, a face
porém descarnada, de ossos salientes, pálida, desproporcionada e melancólica,
os olhos ardentes. Dedicado aos amigos e na dedicação capaz de ir até a
heroicidade. Muito racional. Era ele o planejado noivo de Cândida.
Cândida - loura, olhos azuis e belos, olhar de
suavidade cativadora; rosto oval da cor da magnólia com duas rosas a
insinuarem-se nas faces; os lábios quase imperceptivelmente arqueados,
lindíssimos, os dentes iguais, de justa proporção e de esmalte puríssimo; as
mãos e os pés de perfeição e delicadeza maravilhosas; o pescoço e o corpo com a
gentileza própria de sua idade. Cândida antes de Lucinda tinha 11 anos e com a
perfeita inocência de sua primeira infância; espírito cheio de luz suave e
idéias serenas e preciosas; eeu coração era um altar adornado pelo amor de seus
pais. Cândida depois de Lucinda era capaz de ser ardilosa e dissimulada para
enganar a mãe; "prendeu a alma às palavras venenosas, às explicações
necessariamente imorais da escrava".
Florêncio da Silva - honrado,
inteligente e rico negociante; um pouco agricultor por distração e gosto: bom,
afável e generoso, repartindo as sobras da riqueza que acumulava com os pobres
que não eram vadios; tinha poderosa e legítima influência eleitoral e política
na sua comarca.
Leonídia - esposa modelo; mãe extremosa.
Liberato - irmão mais velho de
Cândida; bonito de rosto e elegante de figura; fazia seus estudos preparatórios
na Corte; muito amigo de Frederico, inteligente e estudioso; possuía
brilhantismo de imaginação.
Alfredo Souvanel - Amigo de Liberato
e Frederico. Encontraram–se na Suíça. Tinha 26 anos, estatura regular, louro,
de olhos cintilantes, era de aspecto agradável, bem talhado de corpo.
Esmerava-se no trajar, embora não tivesse muitos recursos. Tinha instrução
superficial, mas inteligência fácil, espírito, e gênio alegre. Habilíssimo
pianista e excelente voz de barítono. Era francês, mas esperava ganhar dinheiro
no Brasil ensinando piano e canto. Era o mais alegrão, travesso, original,
espirituoso e endiabrado companheiro de folganças. Tornou-se professor de
Cândida.
A narrativa conta a história de Cândida, filha de honrado negociante e
agricultor do interior da província do Rio de Janeiro. Em seu aniversário de
onze anos, a menina recebera de presente do padrinho, Plácido Rodrigues, “o
mais opulento fazendeiro e capitalista do lugar”, uma escrava crioula chamada
Lucinda, de doze anos, que havia sido enviada à Corte para aprender a servir de
mucama. A mucama logo conquistou a senhorinha ao dizer que sabia fazer bonecas
e penteá-las. O padrinho empenhara-se em conseguir uma escrava que pudesse
agradar a afilhada porque sabia que a menina andava triste devido à recente
partida de Joana, “uma boa senhora, mulher pobre, mas livre e de sãos costumes,
que fora sua ama de leite e a idolatrava como seus pais”. Joana, que enviuvara
ainda moça, encontrara segundo noivo num “laborioso e honrado lavrador”,
deixando por isso a sua adorada Cândida “com o maior pesar”. Macedo oferece uma
primeira ilustração de sua tese no romance ao contrastar a virtuosíssima Joana
com a mucama Lucinda. Joana é descrita como uma “segunda mãe”, “criada amiga”,
“companheira do seu quarto de dormir”, mulher “simples, boa e religiosa”. Cândida
perdera “a companhia da mulher que era nobre, porque era livre” e que servia
com o “coração cheio de amor generoso”, algo só possível “quando a liberdade
exclui toda imposição de deveres forçados por vontade absoluta de senhor”. Em
substituição, a menina recebera a crioula quase de sua idade, “a mulher
escrava, uma filha da mãe fera, uma vítima da opressão social, uma onda
envenenada desse oceano de vícios obrigados, de perversão lógica, de
imoralidade congênita, de influência corruptora e falaz, desse monstro
desumanizador de criaturas humanas, que se chama escravidão”. Diante desse
quadro os acontecimentos desenrolam-se naturalmente, sendo que o maior desafio
é entender o porquê de Macedo ter achado necessário escrever quase quatrocentas
páginas para contar essa história. A mucama tem uma influência nefasta sobre a
donzela, de quem se torna a única confidente nos anos seguintes. Ensina-lhe o
que ocorre quando a menina vira moça, desperta-lhe a curiosidade pelos rapazes,
ministra-lhe lições de flerte e namoro, mostra-lhe ser mais divertido namorar
vários rapazes ao mesmo tempo, e assim por diante, num desfilar constante de
idéias destinadas a “excitar os sentidos” da donzela cândida e pura. As lições
de amor da mucama eram inspiradas “pelo sensualismo brutal, em que se resume
todo o amor nos escravos”; portanto, “a mucama escrava ao pé da menina e da
donzela é o charco posto em comunicação com a fonte límpida”. Com a mucama
escrava infiltrada no quarto da donzela, foi possível a um conquistador barato,
um francês estróina e ladrão, insinuar-se aos amores de Cândida, conquistá-la
efetivamente e tirar-lhe o maior símbolo da honestidade feminina. Lucinda,
criatura ruim como nunca se viu mesmo em folhetins televisivos hodiernos de
horário nobre, tornara-se ela mesma amante de Souvanel, tramara tudo com ele, e
até abrira o quarto da virgem para a consumação do delito. A idéia dos biltres
era forçar o casamento de Souvanel com Cândida; dado o golpe do baú, Lucinda
ganharia a liberdade e ficaria teúda e manteúda do francês. No final,
Frederico, criatura virtuosa como nunca se viu mesmo em folhetins televisivos
hodiernos de horário nobre, filho do padrinho de Cândida, apaixonado por ela
desde menino, perdoa o erro da amada e casa com ela. Descobrira-se que Souvanel
era na verdade Dermany, criminoso procurado na França. O vilão é preso e
deportado. Lucinda e o pajem do pai de Cândida, também envolvido na trama para
aproximar Souvanel da donzela, fogem dos senhores, são capturados, mas acabam
abandonados ao poder público pela família. Frederico, o anjo, fecha o romance e
o nosso martírio com um discurso abolicionista que aqui transcrevo, para
martirizar o leitor, ou ao menos para dividir com ele o meu sofrimento. O
discurso aparece nas páginas 388 e 389 do segundo volume de As
vítimas-algozes (o primeiro volume, com outras duas histórias).
Referindo-se a Lucinda e ao pajem, “esses dous traidores e perversos”,
Frederico disse: - Árvore da escravidão deram seus frutos. Quem pede ao
charco água pura, saúde à peste, vida ao veneno que mata, moralidade à
depravação, é louco. Dizeis que com os escravos, e pelo seu trabalho vos
enriqueceis: que seja assim; mas em primeiro lugar donde tirais o direitoda opressão? ...em face de
que Deus vos direis senhores de homens, que são homens como vós, e de que vos
intitulais donos, senhores, árbitros absolutos? ... e depois com esses escravos
ao pé de vós, em torno de vós, com esses miseráveis degradados pela condição
violentada, engolfados nos vícios mais torpes, materializados, corruptos,
apodrecidos na escravidão, pestíferos pelo viver no pantanal [“patanal”, no
original] da peste e tão vis tão perigosos postos em contato convosco, com
vossas esposas, com vossas filhas, que podereis esperar desses escravos, do seu
contato obrigado, da sua influência fatal? ...Oh! bani a escravidão!... a
escravidão é um crime da sociedade escravagista, e a escravidão se vinga
desmoralizando, envenenando [“evenenando”, no original], desonrando,
empestando, assassinando seus opressores. Oh! ...bani a escravidão! bani a
escravidão! bani a escravidão!....
Ainda que Macedo atribua os defeitos morais de Lucinda e seus pares à
instituição da escravidão, a sua descrição dos cativos é tão impiedosamente
desfavorável que torna-se difícil pensar na possibilidade de que essas pessoas,
uma vez libertas, possam usufruir de direitos de cidadania e participar da vida
política. De fato, uma característica intrigante de vários pronunciamentos
favoráveis à lei de 1871 era a descrição dos escravos como seres quase
destituídos de humanidade, pois a violência da instituição os desprovia de
cultura, de regras de comportamento; por conseguinte, não desenvolviam laços de
família, relacionavam-se sexualmente como animais, atacavam os senhores como
bestas feras. Enfim, pareciam condenados a uma espécie de coisificação moral,
resultado direto de sua condição de propriedade, de sua representação como
coisa no direito positivo.
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