Clarice Lispector
BIOGRAFIA DE LISPECTOR
“Nasci na Ucrânia,
terra de meus pais. Nasci numa aldeia chamada Tchetchelnik, que não figura no
mapa de tão pequena e insignificante. Quando minha mãe estava grávida de mim,
meus pais já estavam se encaminhando para os Estados Unidos ou Brasil, ainda
não haviam decidido: pararam em Tchetchelnik para eu nascer, e prosseguiram
viagem. Cheguei ao Brasil com apenas dois meses de idade. Sou brasileira
naturalizada, quando, por uma questão de meses, poderia ser brasileira nata.
Fiz da língua portuguesa a minha vida interior, o meu pensamento mais íntimo,
usei-a para palavras de amor. Comecei a escrever pequenos contos logo que me
alfabetizaram, e escrevi-os em português, é claro. Criei-me em Recife. (...) E
nasci para escrever. Minha liberdade é escrever. A palavra é o meu domínio
sobre o mundo.” (Waldman,1983. p. 9-10)
Clarice nasceu em
1925, em uma aldeia ucraniana. Aos dois meses de idade, veio com a família para
o Brasil. Morou em Alagoas, Pernambuco, mas passou a infância no Recife. Lá, a
autora cursou a escola primária e ginasial. Quando aprendeu a ler aos sete anos
de idade, descobriu que os livros eram escritos por autores e o queria ser
também. Transferiu-se para o Rio de Janeiro aos doze anos e lá estudou Direito,
chegando a trabalhar como redatora e, anos mais tarde, jornalista. Forma-se em
1944, ano em que publica a sua primeira obra, Perto do Coração Selvagem.
Olga Borelli, sua grande amiga, conta em depoimento que o método utilizado para
escrever seu primeiro livro perduraria para sempre na vida de Lispector:
“Clarice tomava notas onde quer que estivesse. Na lanchonete, em guardanapos;
no cinema, no maço de cigarros. Clarice ia construindo suas obras
fragmentariamente.”
Casou-se, nessa mesma
época, com um diplomata brasileiro (Maury Gurgel Valente) e, por isso,
afastou-se durante longos períodos do país que tanto amava. Aos dezenove anos
já se encontrava em Nápoles, Itália. Mesmo depois de ganhar o prêmio “Graça
Aranha” por seu primeiro romance, não se considerava uma escritora
profissional, insistia que era uma escritora amadora. Com o marido, teve dois
filhos: Pedro e Paulo. Separa-se de Gurgel Valente em 1960, ano em que retorna
para o Brasil e passa a morar no Rio de Janeiro.
Em 1976, a escritora
recebe um convite inusitado: representar o Brasil num Congresso Mundial de
Bruxaria, em Bogotá, Colômbia. Sua participação lá resumiu-se à leitura de seu
conto “O Ovo e a Galinha”, o qual acreditava que ninguém havia entendido. Faleceu
no Rio de Janeiro em 1977.
O ESTILO CLARICEANO
As inovações feitas
por Clarice Lispector em sua escritura, desde a sua primeira obra publicada,
provocaram grande espanto na crítica e no público da época. Grandes críticos
literários chegaram a apontar inúmeras falhas nos romances da escritora, como o
fez Álvaro Lins, em sua obra Os mortos de sobrerressaca, 1963, p.
189: “li o romance duas vezes, e ao terminar só havia uma impressão: a de que
ele não estava realizado, a de que estava completa e inacabada a sua estrutura
como obra de ficção.” Sem a freqüência das estruturas tradicionais dos gêneros
narrativos, a narrativa clariceana quebra a ordem cronológica e funde a prosa à
poesia. Uma das inovações de sua linguagem para a literatura brasileira é o fluxo
de consciência. Para entendermos o que é isso, seguiremos a definição de
Norman Friedman sobre análise mental, monólogo interior e fluxo de consciência.
“O primeiro é definido como um aprofundamento nos processos mentais da
personagem por uma espécie de narrador onisciente; o segundo, um aprofundamento
maior, cuja radicalização desliza para o fluxo de consciência onde a linguagem
perde os nexos lógicos e se torna caótica” (KADOTA, s/d, p. 74). Clarice
transitaria pelos três movimentos, apesar de apresentar características mais
evidentes de “fluxo de consciência”.
É como se uma câmera
fosse instalada na cabeça da personagem, como se pudéssemos acompanhar
exatamente o que ela pensa e da mesma maneira como pensa. Sabemos que o nosso
pensamento não é ordenado, e quando se pretende demonstrá-lo de forma semelhante,
acompanhamos sua desordem. Presente e passado, realidade e desejos da
personagem (ou narrador) misturam-se na narrativa, quebrando limites
espaço-temporais verossímeis. Joyce e Proust já haviam feito experiências como
essa, mas foi Clarice que introduziu esse estilo no Brasil.
Para Friedman, “a
‘Câmera’ e o ‘Fluxo de Consciência’ são os que mais caracterizam a literatura
contemporânea porque neles se detecta uma subversão ótica tradicional do
relato. (...) É um resgate dos pensamentos das personagens ou do narrador na
sua forma primitiva, à medida que surgem, desarticulados, como a própria
sintaxe que os apresenta e descontínuos como o mundo que lhes dá sustentação.”
(idem, ps. 74/75).
A organização textual
clariceana aproxima-se da rebeldia. Ela, “como James Joyce, como Virginia
Woolf, se propôs a essa busca introspectiva, através de ‘insights’ luminosos,
ou de uma escritura pontilhada de minúsculos incidentes descontínuos, que
melhor revelam os conflitos humanos, superando qualquer descrição do narrador
ou um encadeamento de fatos, por mais representativos que se mostrem a um
primeiro olhar.” (Kadota, p. 77)
Os textos clariceanos
também estão repletos de epifania
(revelação). Suas personagens costumam viver momentos epifânicos, como se
tivessem realmente tido uma revelação, desencadeada por qualquer fato banal, e,
a partir dela, pudessem ter uma visão mais aprofundada da vida , das pessoas,
das relações humanas. Sobre isso, Cereja e Magalhães comentam : “De modo geral,
esses momentos epifânicos são dilacerantes e dão origem a rupturas de valores,
a questionamentos filosóficos e existenciais, permitindo a aproximação de
realidades opostas, tais como nascimento e morte, bem e mal, amor e ódio, matar
ou morrer por amor, seduzir e ser seduzido, etc.” (1995, p. 413)
Apesar de desenvolver,
na maioria das vezes, personagens femininas, Clarice extrapola os limites da
experiência pessoal da mulher e seu ambiente familiar. Os temas tratados por
ela são universais e essencialmente humanos. Temáticas como as relações entre o
eu e o outro, a falsidade das relações humanas, a condição social da mulher, o
esvaziamento das relações familiares e, sobretudo, da linguagem, são abordadas
pela autora intimista e psicológica, mas de forma alguma alienada, como muitos
já chegaram a dizer. Em A Hora da Estrela, por exemplo, a questão
da migrante nordestina em uma cidade grande como o Rio de Janeiro, relações e
reflexões existencialistas, a condição e o papel do escritor moderno, entre
outras foram abrangidas de forma estilisticamente original e sensível.
Berta Waldman, em sua
obra anteriormente citada, comenta o “silêncio de Clarice”, reflexão que nos
vale a pena conferir: “Entre a palavra e o silêncio, entre o que diz e o que
está implícito em seu dizer, situa-se o texto de Clarice. Ler o seu texto é
penetrar nesse âmbito elétrico onde forças opostas se digladiam. (...) Se
quisermos saber o que diz o seu texto, devemos interrogar também o silêncio.
Não o silêncio que se situa antes da palavra e que é um querer dizer, mas o
outro, o que fica depois dela e que é um saber que não pode dizer a única coisa
que, de fato, valeria a pena ser dita.” (1983, p. 89)
ENREDO DA OBRA
Antes de iniciar este
tópico, é preciso que saibamos que as obras de Clarice dificilmente têm um
enredo, um começo, meio e fim, como os cânones narrativos tradicionais. A
própria autora nunca soube explicar os seus processos de criação. “É um
mistério”, dizia ela. “Quando penso numa história, eu só tenho uma vaga visão
do conjunto, mas isso é coisa de momento, que depois se perde. Se houvesse
premeditação, eu me desinteressaria pelo trabalho.” (CAMPADELLI & ABDALLA
JR.). Mais do que histórias, os seus livros contêm impressões. Por isso,
consciente de sua condição como (não-)escritora, Clarice dizia-se uma
“sentidora, intuitiva”.
A Hora da Estrela foi o último livro da
autora publicado em vida. O narrador do romance é Rodrigo S. M., escritor que
ironiza, através de várias contínuas no texto, o estilo de narrativa que ele
próprio utiliza. Dessa forma, ele se coloca como uma das personagens centrais
do romance, já que dialoga o tempo todo com o leitor sobre o estilo de sua
narrativa.
Sua
personagem-protagonista é Macabéa (Maca), alusão irônica aos sete macabeus,
personagens bíblicos. Após a morte de seus pais, quando tinha dois anos de
idade, Maca fora criada por uma tia beata, a qual nela muito batia. “Acumula em
seu corpo franzino, ‘herança do sertão’, todas as formas de repressão cultural,
o que a deixa alheada de si e da sociedade. Dessa forma, segundo o narrador,
ela nunca se deu ‘conta de que vivia numa sociedade técnica onde ela era um
parafuso dispensável’. De Alagoas, a
protagonista muda-se para o Rio de Janeiro, onde passa a viver com mais quatro
colegas de quarto (todas Marias) na rua do Acre. Trabalhava como datilógrafa,
profissão da qual tinha muito orgulho. Era virgem, e nunca, até Olímpico de
Jesus, possuíra um namorado. Este, também nordestino, procurava a ascensão
social, assim como ela tinha o sonho de ser uma “estrela de cinema” (daí o
título do livro). Por não terem a ambição em comum, Macabéa perde-o para sua
amiga de trabalho (e única), Glória, a qual possuía os atrativos materiais que
ele sonhava.
A busca de identidade
da personagem-protagonista processa-se quando ela se observa diante do espelho.
A primeira imagem que vê é a do autor, Rodrigo S. M., majestático e presente em
todo o texto, moldando a personagem à sua imagem e solidão. Há, também, outras
vezes em que Maca se olha no espelho. Em uma delas, assim que rompera com
Olímpico, ela, diante do espelho, passa em seus lábios um batom vermelho como
busca da identidade desejada: Marilyn Monroe, símbolo social e sexual inculcado
pelas superproduções de Hollywood da década de 50.
Por conselho de
Glória, Macabéa vai procurar ajuda em uma cartomante, sendo esta a única vez em
que se dera conta da vida medíocre que levava; fora preciso Madame Carlota
dizer isso a ela. Reforçando a idéia de “nostalgia do futuro”, a vidente prevê
que a vida da nordestina mudaria a partir do momento em que saísse de sua casa.
Esta também foi a primeira vez em que Macabéa encorajou-se para ter esperança.
Um homem estrangeiro, alourado, “de olhos azuis, ou verdes, ou castanhos, ou
pretos” (p. 77) apareceria em sua vida, casar-se-ia com ela. Ironicamente, a
protagonista sai da casa de Madame Carlota e é atropelada por um Mercedes Benz.
Consolida-se a “hora da estrela” de cinema, quando ela vai ser “tão grande como
um cavalo morto”: ferida, a personagem vomita uma “estrela de mil pontas”. Com
ela, morre também o narrador, identificado com a escrita do romance, que neste
instante se acaba.
AS PERSONAGENS
Com um falso livre-arbítrio,
o narrador da narrativa decide que serão “uns sete (...) e eu sou um dos mais
importantes deles, é claro.” (p. 13)
Macabéa: nordestina (alagoana)
que migra para o Rio de Janeiro, é a protagonista da narrativa. Datilógrafa,
“toda fome e deserto”, Macabéa (Maca, como o narrador passa a chamá-la no
decorrer da história) tem o heroísmo dos seus irmãos bíblicos, os sete
macabeus. Seu nome é grafado quase como escreve-se “maçã”, símbolo da tentação,
só que, como não poderia deixar de ser, sem os adornos da palavra indicadora da
fruta. A personagem principal do livro mal tem consciência de existir, mas tem
um desejo: tornar-se estrela de cinema, e admira com certa dose de melancolia
Marylin Monroe e Greta Garbo. No fim da trama, de certa forma, acaba conseguindo
realizar o seu sonho: a hora da estrela condiz com o momento de sua morte.
Dialogando intertextualmente com Os Sertões de
Euclides da Cunha, a autora (ou o narrador?) chega a comentar que “o sertanejo
é antes de tudo um paciente”(p. 79)
Olímpico de Jesus: imigrante nordestino
assim como Macabéa, Olímpico trabalhava como operário numa metalúrgica e dizia
se “metalúrgico”. Possuidor de um dente de ouro, o qual muito estimava por ser
demonstrador de poder, sonhava em um dia ser deputado, mas seu desejo secreto
era ser toureiro. Procurava ascensão social a qualquer preço, seja do roubo ou
do crime de morte. “Para mim a melhor herança é mesmo muito dinheiro. Mas um
dia vou ser muito rico, disse ele que tinha uma grandeza demoníaca: sua força
sangrava.” Torna-se o namorado da protagonista no decorrer da trama.
Glória: amiga de trabalho (e
a única) de Macabéa, possuía todo o charme e “carnes” que a outra não tinha.
“Carioca da gema” (razão forte pela qual Olímpico atrai-se por ela), rouba o
namorado da amiga. Na página 59 do livro há uma ótima descrição desta
personagem: “Glória possuía no sangue um bom vinho português e também era
amaneirada no bamboleio do caminhar por causa do sangue africano escondido.
Apesar de branca, tinha em si a força da mulatice. Oxigenava em amarelo-ovo os
cabelos crespos cujas raízes estavam sempre pretas. Mas mesmo oxigenada ela era
loura, o que significava um degrau a mais para Olímpico. (...) apesar de feia,
Glória era bem alimentada. E isso fazia dela material de boa qualidade.”
“Glória roliça, branca e morna. Tinha um cheiro esquisito. Porque não se lavava
muito, com certeza. Oxigenava os pêlos das pernas cabeludas e das axilas que
não raspava. Olímpico: será que ela é loura embaixo também?” (p. 63)
Seu Raimundo
Silveira: chefe
da firma de representante de roldanas, é o responsável pela demissão de
Macabéa, pois ela errava demais na datilografia, além de sujar invariavelmente
o papel.
A tia: beata que cria Maca
após a morte da mãe menina, quando tinha dois anos de idade. “Muito depois fora
com a tia beata, única parenta sua no mundo. Uma outra vez se lembrava de coisa
esquecida. Por exemplo a tia lhe dando cascudos no alto da cabeça porque o
cocoruto de uma cabeça deveria ser, imaginava a tia, um ponto vital. (...)
Batia mas não era somente porque ao bater gozava de grande prazer sensual — a
tia não se casara por nojo — é que também considerava de dever seu evitar que a
menina viesse um dia a ser uma dessas moças que em Maceió ficavam nas ruas de
cigarro aceso esperando homem.” (p. 28)
As quatro Marias: Maria da Penha, Maria
Aparecida, Maria José e Maria apenas eram as colegas de quarto da nordestina.
Uma delas trabalhava vendendo produtos de beleza Coty.
Madama Carlota: a cartomante que
prevê o futuro reluzente de Maca. Trata-a com um carinho que ninguém jamais
dirigiu à protagonista. “Era enxundiosa, pintava a boquinha rechonchuda com
vermelho vivo e punha nas faces oleosas duas rodelas de ruge brilhoso. Parecia
um bonecão de louça meio quebrado.”(p. 72). Durante a consulta, a cartomante
comia um bombom atrás do outro compulsivamente. Trabalhara na zona e, sem poder
ser diferente da realidade que conhecemos, sustentara um cafetão, a quem amava.
Tornara-se cafetina quando começara a engordar e perder os dentes. O narrador
coloca Madama Carlota como o ponto alto da existência de Macabéa, já que seria
a informante do seu futuro, que mudaria (e realmente mudou) a partir do momento
em que Maca saísse da casa da Madama.
O médico: procurado por Maca,
quando, pela primeira vez na vida, fez a audácia de procurar um médico (barato)
após o recebimento do salário. “Muito gordo e suado, tinha um tique nervoso que
o fazia de quando em quando ritmadamente repuxar os lábios. O resultado era
parecer que estava fazendo beicinho de bebê quando está prestes a chorar. (...)
não tinha objetivo nenhum. A medicina era apenas para ganhar dinheiro e nunca
por amor à profissão nem a doentes. Era desatento e achava a pobreza uma coisa
feia. Trabalhava para os pobres detestando lidar com eles. Eles eram para ele o
rebotalho de uma sociedade muito alta à qual também não pertencia. Sabia que
estava desatualizado na medicina e nas novidades clínicas mas para pobre
servia. O seu sonho era ter dinheiro para fazer exatamente o que queria: nada.”
(ps.67, 68)
O rico ocupante do
Mercedez Benz: dono
do carrão amarelo, alourado e estrangeiro, é quem vai realizar, de certa forma,
as previsões de Madama Carlota.
O narrador: também uma
personagem, Rodrigo S. M., a questão do narrador será melhor discutida logo a
seguir.
FOCO NARRATIVO
Dizer se o foco
narrativo de A Hora da Estrela é em primeira ou terceira pessoa é
uma questão não tão simples de ser respondida, já que é um dos pontos mais
inovadores e estilisticamente extraordinários do livro. A autora inventa um
narrador (que, portanto, é também uma personagem e se assume durante a
narrativa como tal) para contar a história de Macabéa. Assim sendo, o narrador,
apesar de fazer parte da história, não conta uma trama que acontecera com ele,
e sim, com a sua personagem inventada, que poderia ser real. A narrativa
desvenda a sua problemática interior e à medida que nos faz conhecer a
protagonista, também nos mostra (e vai descobrindo) a sua própria identidade.
“A ação dessa
história terá como resultado minha transfiguração em outrem e minha
materialização em objeto. Sim, e talvez encontre a flauta doce em que eu me
enovelarei em macio cipó.” (p. 20). O narrador é onipotente, pois cria um
destino. É onisciente, pois sabe tudo a respeito de suas personagens, apesar de
não conhecer a verdade inteira, já que se mostra no ato de inventar. Hesita,
pois não conhece o final da história. Por sentir-se culpado em relação à
protagonista, suspende-lhe a morte por páginas e páginas. Quando, finalmente,
decide-se pelo “gran finale”, volta-se contra si mesmo: “Até tu, Brutus?” (p.
85). Sá, em sua obra anteriormente citada, comenta que “Clarice sabe que todo
narrador inventa o mundo à sua imagem e semelhança e o ‘ele’ ou ‘ela’ das
fábulas é sempre um disfarce do ‘eu’ do escritor. O narrador se escreve todo
através de Macabéa, por entre seus próprios espantos. Sua onipotência se estende
ao leitor, com o qual dialoga constantemente. A função fática é uma tônica
dessa narrativa.” (p.212) Tanto é assim, que o narrador morre quando morre
Macabéa. E morre também Clarice Lispector. “As coisas são sempre vésperas e se
ela não morre agora, está como nós na véspera de morrer, perdoai-me lembrar-vos
porque quanto a mim não me perdoo a clarividência.” (p. 84).
O narrador precisa
escrever para poder se compreender. “Enquanto eu tiver perguntas e não houver
resposta continuarei a escrever.” (p.11) Essa é a dor que atravessa a
narrativa, já indicada pela dor de dentes que perpassa a história, a qual é
“uma melodia sincopada e estridente — é a minha própria dor, eu carrego o mundo
e a falta de felicidade. Felicidade. Nunca vi palavra mais doida, inventada
pelas nordestinas que andam por aí aos montes.” (p. 12). A tarefa do escritor é
“procurar a palavra no escuro”. E ele não pode parar de escrever, já que “ao escrever
me surpreendo um pouco pois descobri que tenho um destino”. Assim, vai se
descobrindo ao longo da narrativa. Este escritor só se livra de ser um acaso na
vida pelo fato de escrever. Não tem classe social, “ironicamente, denuncia o
escritor burguês que defende a necessidade da literatura engajada, faz-se
pobre, dorme pouco, deixa a barba por fazer, anda nu ou em farrapos, abstém-se
do sexo e do futebol.” (Sá, 1979, p. 214) Como ele mesmo diz, “escrevo porque
sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se
não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos
os dias.” (p. 21).
É facilmente
percebível, portanto, que a questão do foco narrativo em A Hora da
Estrela é um dos pontos altos da novela. E se “os modos de articulação
em uma narrativa são ilimitáveis porque ilimitável é a combinatória de signos
possível no engendramento da teia ficcional, e a postura do narrador, em
relação às personagens, amplia ainda mais essa possibilidade criativa, oferecendo
através de seu ângulo de visão uma fresta por onde se pode descortinar o mundo,
o seu mundo” (KADOTA, s/d, p.71); a possibilidade criativa da narrativa, além
de ilimitável, é surpreendente e inovadora, demonstrando a bela e sensível
capacidade inventiva de Lispector.
GÊNERO LITERÁRIO E
MATERIAL DA NARRATIVA
Como anteriormente já
foi citado, a narrativa tem um tom de novela, não apenas pelo número de
personagens, mas também porque a descrição e a narração ocupam posição
privilegiada na obra.
Uma “história
exterior e explícita”, A Hora da Estrela não deixa de ser um
relato, um registro de fatos. O narrador, a contra-gosto, apaixonou-se por
fatos, mas cansar-se-á deles por serem banais e definíveis. O “sussurro”,
porém, é o que predomina nos interstícios da narrativa: “Os fatos são sonoros,
mas entre os fatos há um sussurro. É o sussurro que me impressiona.” (p. 31). A
pergunta que, de certa forma, já havia sido feita em Perto do Coração
Selvagem repete-se: “Será mesmo que a ação ultrapassa a palavra?” (p.
22) Para Lispector, por ser o material básico da escritura a palavra, ela
domina qualquer narrativa e sobrepõe-se a qualquer fato. “Assim é que esta
história será feita de palavras que se agrupam em frases e destas se evola um
sentido secreto que ultrapassa palavras e frases.” (p. 14). E para o narrador,
é como se as palavras tivessem realmente poder sobre a narrativa, como se ele
fosse impotente em relação à história que irá contar: “Não se trata apenas de
narrativa, é antes de tudo vida primária que respira, respira, respira.” (p.
13)
TEMPO
E ESPAÇO
O tempo da narrativa se
mostra cronológico e linear, apesar de embaraçar o narrador, que preferiria
começar pelo fim: “Só não inicio pelo fim que justificaria o começo — como a
morte parece dizer sobre a vida — porque preciso registrar os fatos antecedentes.”
Depois das muitas divagações do início do livro, em que o narrador mais se
narra do que faz progredir a ação narrativa, enfim ele inicia pelo meio, quando
a moça nordestina recebe o aviso de despedida do emprego e vai refugiar-se no
banheiro. Assim, o narrador projeta respeitar o tempo do relógio, como se a
narrativa fosse sendo construída simultaneamente à leitura, intuito este que é
marca extremamente clariceana, não apenas nessa obra.
A narrativa se passa em um
ambiente urbano. “Cidade toda feita contra ela” (p. 15), Macabéa. O Rio de
Janeiro é o cenário das fracas aventuras da protagonista alagoana. Dentre ruas cariocas,
o quarto barato que as moças compartilham entre si, a casa da cartomante, o
lugar do trabalho, o banheiro, a história se desenvolve. Como cita Sá em sua
obra A escritura de Clarice Lispector,
“nesse espaço há espelhos comidos pela ferrugem, bares, a Rádio Relógio,
cinemas baratos, Jardim Zoológico, automóveis de luxo Mercedez Benz, patrocínio
de refrigerante mais popular, que ‘patrocinou o último terremoto em Guatemala’ (HE,
p.29), Rua do Acre para morar, rua do Lavradio para trabalhar. Com a raridade
de um galo ‘cocoricando’ de manhã e o cais do porto para espiar, no Domingo, um
ou outro prolongado apito de navio cargueiro.” Assim, pode-se perceber os
contrastes (não apenas sociais) existentes em metrópoles brasileiras e o
desalento de um imigrante nordestino que busca uma vida melhor no sul também
pela ambientação da narrativa.
ANÁLISE
DA OBRA
“Macabéa, personagem central
de A Hora da Estrela de Clarice Lispector, é uma retirante nordestina que vai
tentar vida nova na cidade grande (Rio de Janeiro). Filha do sertão, nasceu e
permaneceu raquítica. Anônima, desajeitada, desgarrada do mundo, tudo nela
inspira descompasso e compaixão. Seus dias dividem-se entre o trabalho como datilógrafa
e o pretendente, também nordestino, Olímpico de Jesus. As madrugadas, para ela,
são embaladas pelos sons regulares da Rádio Relógio: hora certa, anúncios,
pouca ou nenhuma música. (...) É por intermédio dessa escuta, entretanto, que
Macabéa vai lentamente construindo um certo reconhecimento sobre si e sobre o
mundo.” (AQUINO, 2000, p. 205) A rádio realmente desperta na moça uma avidez
por conhecimento, o que fazia com que sua vida se tornasse menos banal, mais
importante.
Hora da Estrela apresenta certos
momentos que não podem deixar de ser comentados. Comecemos pelo título:
A HORA DA ESTRELA
A culpa é minha
ou
A hora da estrelas
ou
Ela que se arrange
ou
O direito ao grito
CLARICE LISPECTOR
quanto ao futuro.
ou
Lamento de um blue
ou
Ela não sabe gritar
ou
Uma sensação de perda
ou
Assovio no vento
escuro
ou
Eu não posso fazer
nada
ou
Registro dos fatos
antecedentes
ou
História lacrimogênica
de cordel
ou
Saída discreta pela
porta dos fundos
A obra apresenta doze
títulos que se desdobram e representam algum aspecto da história que logo mais
será narrada. Em “.quanto ao futuro.”, por exemplo, o título é precedido e seguido
por ponto, isso porque o futuro da história depende única e exclusivamente do
seu narrador (Rodrigo S. M.), que determina com um “falso livre-arbítrio” o
destino das personagens, sendo ele próprio uma das mais importantes. É “uma
história com começo, meio e ‘gran finale’ seguido de silêncio e de chuva
caindo”, como diria o próprio narrador, apesar de a história não ter esse
aspecto temporal tão bem definido como ele nos (leitores) dá a entender que
teria.
O material básico em
que se sustenta a narrativa é a palavra, que se agrupa em frases, com um
sentido secreto. “O escritor renuncia à transfiguração própria da ficção e não
enfeita a palavra (não utiliza “termos suculentos” como “adjetivos esplendorosos,
carnudos substantivos e verbos tão esguios que atravessam agudos o ar em vias
de ação”), pois sua personagem é uma pobre e esfomeada moça nordestina.” (SÁ, 1979,
p. 97). Dessa forma, subentende-se que se pode ler, no questionamento contínuo
a que a escritora submete a linguagem em geral e a da ficção, em particular,
uma desmistificação irônica do narrador do anti-romance moderno e de seus
artifícios.
Apesar de o narrador
escrever em fluxo de consciência, tentando embaralhar as coisas, a narrativa é
escrita em tempo linear, sendo o leitor diretamente o seu interlocutor. O
leitor é sustentado por suas próprias palavras e “deve embeber-se da jovem como
um pano de chão todo encharcado.”A morte, declaradamente, foi colocada na
narrativa de Rodrigo S. M. como uma personagem não ordinária, ao contrário,
como sua personagem predileta e ele assume a morte de Macabéa como se fosse
feita exclusivamente para o leitor: “O final foi bastante grandiloqüente para a
vossa necessidade?”. Sua futura morte também é expressa quando morre a
protagonista, mas “por enquanto é tempo de morangos.” (p.87)
Finalmente,
devemo-nos lembrar de que A Hora da Estrela seria um “ponto de
articulação” entre as lições realista-naturalistas da autora e seus poemas em
prosa, nos quais tempo, enredo e personagens se desagregam. Esta novela “não só
recolhe quase todos os problemas da narrativa dos outros romances de Clarice
Lispector, mas também muitas de suas imagens.” (SÁ, 1979, p. 215). Assim,
saibamos que Clarice produz aquela que seria a última de suas obras publicadas
em vida de maneira grandiosa, para que nunca nos esqueçamos da riqueza e
originalidade de seu estilo.
BIBLIOGRAFIA
AQUINO, Julio Groppa.
“Conhecimento e mestiçagem: o ‘efeito Macabéa’” in Do Cotidiano Escolar.
SP: Summus, 2000.
CAMPADELLI, Samira
Youssef & ABDALA JR., Benjamin. Clarice Lispector. Literatura
Comentada, s/d.
CEREJA, William
Roberto & MAGALHÃES, Thereza Cochar. Literatura Brasileira.
SP:Atual, 1995.
KADOTA, Neiva Pitta.
A Tessitura Dissimulada. O social em Clarice Lispector. 2. ed. S/d.,
Estação Liberdade.
MOISÉS, Massaud. A
Literatura Brasileira através dos Textos. 21. ed., SP: Cultrix. 1999.
SÁ, Olga de. A
escritura de Clarice Lispector. Vozes, Petrópolis: 1979.
WALDMAN, Berta. Clarice
Lispector. SP: Brasiliense, 1983.FONTE: http://www.algosobre.com.br/resumos-literarios/a-hora-da-estrela.html
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