DESMUNDO, Ana
Miranda
Sobre a autora:
Nascida
em Fortaleza, em agosto de 1951, Ana Miranda viveu grande parte de sua vida
fora do Ceará. Aos cinco anos de idade, mudou-se para o Rio de Janeiro e em
1959 foi para Brasília. Chegou a estudar Artes no Rio de Janeiro. A autora,
como se vê, cresceu nas cidades que mais intensamente viveram os efeitos das
radicais transformações e da efervescência na vida política, social e,
sobretudo, cultural do país. Nesse período, podemos destacar a bossa nova, a
contracultura hippie, os festivais de música que deram origem ao Tropicalismo,
principal movimento cultural da época, isso tudo em meio a ditadura militar que
exercia forte repressão. Enfim, Ana
Miranda é de uma geração que não consegue, e nem tenta, ignorar a história.
É essa história que figura em sua obra como principal cerne, adornado pela sua
ficção internacionalmente reconhecida. Ana Miranda publicou vários livros entre
poesias, romances, crônicas e contos. Estreou com o livro de poesia Anjos e
Demônios, em 1978, mas foi seu primeiro romance, Boca do Inferno, publicado em 1989, que rendeu a escritora o
reconhecimento nacional e internacional, prova disso está no grande número de
traduções do livro. A obra foi publicada na França, Inglaterra, Itália, Estados
Unidos, Argentina, Noruega, Espanha, Suécia, Dinamarca, Holanda e Alemanha. Já
nesse primeiro romance, notamos a propensão de Ana Miranda ao romance histórico, fazendo dessa obra
uma recriação histórico-literária do
Brasil colonial, trazendo personagens como o poeta Gregório de Matos e o
jesuíta Antônio Vieira. Por esse livro a autora recebeu o prêmio Jabuti, em
1990. A recriação aparece também no livro publicado em 1996, Desmundo. Dessa vez, a recriação é
feita na linguagem do século XVI, contando a história de órfãs mandadas de
Portugal ao Brasil para se casar com os colonos. O romance histórico mistura história e ficção, reconstruindo
ficticiamente acontecimentos, costumes e personagens. Nessa mistura que se
edifica Desmundo mesclam-se fatos identificados na história do Brasil com o
viço ficcional edificado pela perspicaz escritora.
Enredo
Em
1570, Oribela, uma órfã, jovem sensível
e religiosa, é mandada de Portugal, junto com sete outras, a mando da Rainha
para se casarem com colonos no Brasil. No caminho, os relatos sobre a viagem e
os medos gerados por ela dão o tom da narrativa.
Outra personagem,
mandada para o Brasil também é uma viúva, a Velha, que, devido a sua experiência de vida, acaba por se tornar
uma espécie de conselheira das mulheres que foram mandadas para o degredo. Logo
que chegam ao Brasil, hospedam-se em uma pensão, enquanto os casamentos são
arranjados. Oribela casa-se com Francisco de Albuquerque, rico colono,
proprietário de terras e escravos, mesmo que ela só reconhecesse nele o que há
de mais repugnante no mundo (seu cheiro, seu aspecto físico, seu passado de
viajante...). Ainda virgem, é forçada a manter relações sexuais com Francisco
na noite de núpcias. Após isso, ele a deixa livre para que, quando ela tivesse
vontade de se entregar para ele, que o viesse procurar, pois ele não mais a
forçaria. Oribela arquiteta planos para a fuga, buscando encontrar uma forma de
retornar para Portugal. Descobre um meio: entrar clandestina (fantasiada de
homem) em uma nau. Para tanto, precisava arranjar dinheiro para subornar as
pessoas que lhe deixariam embarcar. Durante meses (enquanto se esperava a
chegada da nau), junta dinheiro. Mas, ao fugir de casa e dirigir-se para
embarcar, é enganada e quem deveria ajudá-la rouba seu dinheiro e a estupra.
Durante o estupro, seu marido, Francisco, aparece, mata os estupradores e leva
Oribela novamente para casa, onde a prende com uma corrente nos pés. Ao sair
para suas expedições de caça de índios,
Oribela é obrigada a
viver o cotidiano da casa, durante o qual torna-se cada vez mais íntima de Temericô, uma índia que trabalhava na
casa, a quem ensina um pouco do português e de quem aprende a língua indígena,
além de receber diversos costumes.
Durante uma das
expedições, Francisco de Albuquerque a leva junto. É quando vê uma certa
grandeza em seu marido, ao guerrear com os indígenas, mas esse reconhecimento
do valor do marido não é suficiente para gerar nela amor. Ao retornarem, com
milhares de índios cativos (que em parte seriam vendidos como escravos, em
parte seriam aproveitados nas terras do marido), Oribela sente pena deles. As
terras de Francisco de Albuquerque são atacadas pouco tempo depois e é quando
Oribela aproveita a confusão para fugir novamente. Torna a esperar por uma nau
que a pudesse levar para Portugal, mas desta vez esconde-se na casa de Ximeno Dias, um mouro. Apesar dele se
mostrar gentil, educado, instruído, de possuir livros (que Oribela não vê
sentido), os preconceitos dela sobre os mouros estão sempre a fazendo
desconfiar dele. A sua cor (vermelho), o seu corpo sem pelos, ao mesmo tempo
que a atraem, fazem com que ela reconheça nele a possibilidade dele ser o
diabo, mas por fim acaba por entregar-se a ele. Logo da chegada de uma nova
nau, meses depois de sua fuga, é descoberta pelo marido que vagava pela cidade
a buscá-la. Está grávida. É levada para casa, onde tem o bebê. Pouco tempo
depois do nascimento, Francisco de Albuquerque pega o filho e parte com ele
para Portugal.
Oribela, não
desejando nada daquele homem, queima a casa onde moravam com tudo que nela
houvesse. Parte, então, sozinha, para enfrentar a vida na colônia, um lugar que
não gostaria de estar, lembrando de Portugal, mas sentindo ódio de toda essa
situação.
As epígrafes
O romance de Ana
Miranda, Desmundo, traz, juntamente com a narração da história de
sofrimento de Oribela, personagem principal e narradora da história, um fundo
histórico que não é usado somente como ambientação. A presença da história na
narrativa tem uma função estruturante.
A partir de uma carta
do Padre Manuel da Nóbrega ao então rei de Portugal, El-Rei D. João, pedindo
que o rei mandasse para a colônia do Brasil algumas órfãs, no intuito de que,
chegando às terras americanas elas pudessem casar com os colonos e, desta
forma, se colocasse uma maior moralidade nos costumes correntes nas partes
coloniais do império. Os colonos que para o Brasil foram estavam vivendo em
luxúria com as índias que encontravam e com elas viviam em concubinato e
libertinagem.
Tendo como mote inspirador essa carta de Nóbrega,
Ana Miranda produz o seu romance sobre a vinda (possível) de mulheres para uma
região do Brasil, destinadas a casar com os colonos mais importantes. De um
lado, o que se vê é a ideia moralizadora que procurava refrear a libertinagem em
que esses colonos viviam. De outro, o interesse dos colonos de se casarem com
as órfãs que vêm da Europa, não somente pelo seu sentido moralizador, mas pelo
endeusamento da pele branca, gerando prestígio social e satisfazendo o desejo
de “branqueamento”.
No primeiro aspecto,
o moralizador, encontramos a sua
fundamentação no discurso histórico, tendo por base a carta de Manuel da
Nobreza, inclusive um trecho dela transcrita como uma das epígrafes do romance.
A’ El-Rei D. João (1552) JESUS
Já que escrevi a Vossa Alteza a falta que nesta terra ha
de mulheres, com quem os homens casem
e vivam em serviço de Nosso Senhor, apartados dos peccados, em que agora vivem,
mande Vossa Alteza muitas orphãs, e si não houver muitas, venham de mistura
dellas e quaesquer, porque são tão desejadas as mulheres brancas cá, que
quaesquer farão cá muito bem à terra, e ellas se ganharão, e os homens de cá
apartar-se-hão do peccado. (MIRANDA, s/p.)
O texto de Manuel da
Nóbrega, ao seu final, reproduz a assinatura de Manuel da Nóbrega, o que
acrescenta aspectos de veracidade sobre a sua existência.
Do outro lado, o dos
prazeres e desejos, encontramos a sua fundamentação sobre o discurso ficcional.
A outra epígrafe é assinada por Fernando Pessoa.
Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstrata,
Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas, Levado, como a poeira,
pelos ventos, pelos vendavais! (MIRANDA, s/p.)
Ambas as epígrafes,
em páginas não numeradas do livro, possuem o seu valor, ao apontar, cada uma
para uma lado, a respeito de como está construído o romance. A primeira
epígrafe colocada com a indicação de Fernando Pessoa é escrito pelo seu
heterônimo Álvaro de Campos, e é um trecho de Ode Marítima. É possível
que a indicação “Fernando Pessoa” venha para dar tom central da narrativa: a ficção. E por isso aparece primeiro.
A Ode Marítima usa como material a questão
das navegações, as belezas
imaginárias sobre elas, os portos possíveis, assim como também a dor, a
solidão, a crueldade das viagens. Esse trecho, retirado de seu contexto aponta
para uma viagem para o desconhecido,
para onde nem a imaginação havia sido capaz de viajar, onde tudo ainda é noite
e escuridão, mas para onde não há outro remédio senão ir, com a poeira jogada
aos ventos.
A epígrafe seguinte
(de Manuel da Nóbrega), separada de uma página da anterior, aponta para a
fundamentação dessa ficção. Ela está construída sobre alicerces históricos. A
distância não é mais qualquer distância, é o Brasil. Mas isso só se sabe se o
nome de Nóbrega for um referencial existente no repertório do leitor, pois
nesta epígrafe não se diz nenhuma vez que a região falada é o Brasil.
Entretanto, as ligações com a primeira epígrafe são grandes. O Longe, o Fora passam a se tornar mais palpáveis.
Fala-se de uma região que está subordinada a um rei (El-Rei D. João). Essa
terra distante vive em uma atmosfera de pecado e necessitando encontrar seu
caminho para a salvação e para “Nosso Senhor”. A oposição entre as noites
fundas e misteriosas apontadas na primeira epígrafe e a possibilidade de
salvação pela pele branca das mulheres aponta um caminho: vai-se para um mundo
de sombras e lá espera-se pelo que o redima.
Esse processo de
incorporar o discurso histórico se dá no decorrer de todo o romance. A cada
momento do romance, as personagens incorporam em seus discursos fatos da
historia do Brasil.
A estratégia de
trabalho com esse discurso formador do país é reduzir a realidade colonial
brasileira dos séculos XVI e XVII a um pequeno povoado, no qual encontra-se
toda uma diversidade de habitantes, cada qual representando uma certa categoria
social ou cultural dentro do Império Português, em particular na formação de
sua porção americana. Desta forma, encontram-se a figura de aventureiros,
degredados, religiosos, mouros, judeus, índios e outros estrangeiros que
dirigiram-se para o Brasil, entrando, desta forma, na diversidade étnica e
cultural que caracterizava o território português do período das navegações.
A condição feminina
O
fragmento textual a seguir, pertencente à terceira parte do romance, intitulada
Casamento, revela aspectos interessantes que podem ser analisados. Este
fragmento desdobra-se em duas vozes diferentes: a da Velha que orienta as
jovens próximas do casamento e a de Oribela a questionar sobre tantas
imposições. Oribela parece, em determinado momento, encurtar as orientações da
Velha, quando, após tantas regras, surge a frase: “Nem pá pá pá nem lari lará”.
As interdições impostas pela Velha revelam
um momento em que a autora recorre às informações extraídas de textos
referentes à história das mentalidades para construir seu texto. É
significativo observar, por exemplo, a reiteração da conjunção coordenativa
aditiva “nem” e do advérbio de negação “não”, para revelar a quantidade de
interdições a que uma mulher casada seria submetida.
“Ora ouvi, filhas minhas. Aquela que chamar
de vadio seu homem deve jurar que o disse em um acesso de cólera, nunca mais
deixar os cabelos soltos, mas atados, seja em turbante, seja trançado, não
morder o beiço, que é sinal de cólera, nem fungar com força, que é
desconfiança, nem afilar o nariz, que é desdém e nem encher as bochechas de
vento como a si dando realeza, nem alevantar os ombros em indiferença e nem
olhar para o céu que é recordação, nem punho cerrado, que é ameaça. Tampouco a
mão torcer, que é despeito. Nem pá pá pá pá nem lari lará. Nem lengalengas nem
conversas com vizinho, seja ele quem for, ou cigano, nem jogos nem danças de
rua, nem olhar cão preto que pode ser chifrudo, deus te chame lá que ninguém te
chama cá, temperar legume com sal, não apagar luz que alumia morto nem deitar
as águas fora que é de judaísmo, não pedir favores nem pôr os olhos no vizinho
nem o corpo na cama de outro, tem o esposo direito de acusar, para provar
inocência a esposa deve lavrar a mão num ferro de arado em brasa. Açoite e
língua furada àquela que arrenegar. Os esposos devem dar panos às mulheres, mas
só nas festas reais, se lhes oferecer o mercador um bom preço, que eles não
façam obra alguma desde o posto do sol até o sol saído e dia de domingo e a
viver segundo o capricho dos homens. Aqui do rei. E disse eu, Ora, hei, hei,
não é melhor morrer a ferro que viver com tantas cautelas? Ai, como sou,
olhasse a minha imperfeição, olhasse meu lugar, sem eira nem beira nem folha de
figueira”.
Outro
aspecto bastante significativo, quanto ao fragmento textual, é a referência à normatização do corpo representada, no
texto, pelo fato de as interdições estarem ligadas a partes do corpo, em
seqüência: cabelos, beiço, nariz, bochechas, ombros, olhos, punhos, mãos,
língua e, por fim, novamente, o corpo todo. Nada pertenceria totalmente à
mulher: nem sua alma, nem seu corpo.
À
mulher cabia lugar de serva de Deus,
representante da linhagem de Maria. O papel da santa mãezinha estava associado
o perfil inspirado na devoção europeia à Virgem, e o modelo de feminilidade
correspondia à castidade, ao sacrifício e à sociedade. Era necessária a
purificação da mulher, desde as origens um agente de Satã, e esta purificação,
de forma mais urgente, era necessário numa terra como a nossa, onde reinava o
Diabo. À mulher sem qualidade, aquela da rua, corresponde o avesso da santa
mãezinha, e, por não enquadrar-se no papel a ela destinado, era demonizada e
excluída. O uso que fazia da sexualidade era considerado ameaçador, por colocar
em perigo o projeto da Igreja e do Estado, segundo o qual o corpo feminino
deveria estar a serviço da sociedade patriarcal e do projeto de colonização.
Oribela
durante o romance demarcará esta diferença e parece se perguntar: até que ponto
sou uma “santa mãezinha” e até que ponto sou uma “mulher sem qualidade”? Que
papel agradaria a ela, de verdade, assumir?
Ao colocar o foco
narrativo sobre a voz de uma mulher, o romance subverte a história, dando
capacidade de fala a grupos marginalizados do passado.
A linguagem
Há
fortes semelhanças entre a linguagem de Guimarães Rosa, escrito modernista, e a
linguagem utilizada por Ana Miranda para construir o discurso de Oribela.
Em
ambos, o instrumento linguístico disponível é insuficiente para demonstrar a
grandiosidade dos universos apresentados. Em Desmundo, especificamente, do
mundo – desmundo que a Oribela se apresenta. Há, então, a fuga à linguagem bem
comportada e lexicalizada. Para a criação desta linguagem, comparece uma série
de recursos. A começar pelo título do
romance, uma palavra não-dicionarizada, Desmundo, uma vez que parece faltar
o termo exato para expressar o significado da nova terra para Oribela, que vê
seu destino como “desrumo”, outro termo inexistente na língua oficial. Vale
lembrar, ainda, que, ao se referir à nova terra, a personagem narradora utiliza
palavras, dicionarizadas ou não, que são iniciadas pelo prefixo de negação
“des”, como se, vê em: “despejado lugar”, “terras desabafadas”, “desventura”,
além dos já citados “desrumo” e “desmundo”. Ou seja, através do trabalho com a
linguagem, é possível revelar o caráter de purgação que caracterizava a nova
terra. Além dos termos não-dicionarizados já citados, outros comparecem para
construir o discurso da personagem Oribela, conferindo à linguagem um matiz arcaico e, ao mesmo tempo, popular.
Doçura
é expressão corriqueira, e o sentimento, quando se quer dizê-lo inusitado, é
num percurso de reencontro com raízes que se vai buscá-lo, retornando ao étimo
latino dulce>doce. Da mesma forma, “bonamore”, forma composta, aglutinando
os radicais latinos bonus>bom e amoris>amor, o bom amor, imune às
contradições, o amor sonhado tranqüilo: Benditas as desposadas e casadas; para
o meu varão me guardei perfeita, ru, ru, chegasse com o pé direito, trouxesse
Deus o bonamore, que não tenho nenhuma burrinha, tirasse de mim os desejos, os
temores, os fingimentos, as visões (...) (p. 30). É uma voz ambígua esta de
Oribela que, no “bonamore”, situa o sonho na realidade da obrigação de
guardar-se para o esposo, e, nas visões, a experiência do inferno da relação
homem/mulher, o real, a fazer-se negativa do sonho.
A
justaposição “ia-voava”, em “sentimento meu ia-voava para ele”, extraída de
Guimarães Rosa faz-se tradutora de um sentimento trigoso, pressuroso, impulso
amoroso em apressamento que com essa, não com outra voz, deve ser dito. Em Ana
Miranda, o “aviso da terra” traz o júbilo desenfreado da sede a ser saciada e
que se expressa, aqui também, numa forma justaposta “águafrescáguafresca”
transfigurando-se em canto, euforia: “acabada a água do armário do camarote e
só chuva para tomar, atinava eu que ia beber água fresca, água fresca, água
fresca, água fresca águafrescáguafresca lari lará, molhar as mãos, as ventas,
derramar o que fosse, sem contar gota por gota, não ouvir mais gente bradar por
água, molhar meus cabelos em um chafariz, bica ...”.
Surge,
na voz de Oribela, uma língua viva, vida perceptível pela negação de sua
unicidade. Não é uma língua social única, mas representante da contínua
evolução histórica de uma língua viva. A
voz de Oribela busca compreender, a partir desta língua, o desmundo em que se
encontra.
Há
momentos em que, para compreendê-lo, parecem faltar palavras. É necessário
entender a vida, “uma rede de tristuras tenebrosas”.
Em
Ana Miranda, as metáforas atuam na
construção do discurso de Oribela e representam a linguagem poética de forma
significativa. Há que se observar uma delas: “nem dobrou minha alma em
joelhos”. Esta metáfora faz referência à expressão “em joelhos”, muitas vezes
presente durante o romance, reveladora da concepção medieval de mundo (tantos
joelhos viviam a dobrar-se), ainda no século XVI. Quanto à metáfora, não são os
joelhos no sentido denotativo que se recusam a dobrar-se, mas os joelhos da
alma, a alma que se quer livre, que não se dobra diante de tantas imposições e
negações oferecidas pelo mundo novo à alma de quem fosse mulher. Que se quer
mistério e não permite que o coração seja desvendado.
Nesta
metáfora há, ainda, referência a dois aspectos relativos à mulher, que deveriam
ser domesticados: a alma e o corpo (representado pela palavra joelho). Quanto a
Oribela, os joelhos podem até dobrar-se, mas, quanto à alma ... É ter “numa
parte o corpo e noutra o coração”.
Surgem
metáforas que atestam a forma como Oribela compreende o real, mas, até mais que
isto, a maneira como procura entender-se enquanto ser humano neste mundo que
entra pela porta de seus olhos, a fazer que seus desejos sejam “torcidos com
amarguras”.
Um
outro recurso utilizado por Guimarães Rosa, as antíteses, também surge em Desmundo, para revelar o caráter
contraditório mundo versus desmundo,
ou seja, a esperança e a desesperança e as próprias dúvidas que atormentam a
personagem: “boas mulheres versus putas e regateiras”, “poder alembrar e poder
esquecer”, “luz e sombra”, “grande segredo é o morrer, maior segredo é o
viver”, “sacramentada ao Ximeno versus a suspeitar que ele era o demo” e muitas
outras antíteses que, muito mais que as matas, as grandes florestas fazem seu
estro perder-se em labirintos sem fim. Quando me atenho com mais vagar a uma
destas antíteses “boas mulheres x putas e regateiras”, torna-se inevitável um
retorno ao intertexto com a história das mentalidades e aos protótipos de
mulher forjados pela sociedade colonial: o da santa mãezinha e o da mulher sem
qualidades.
Todas
as antíteses observadas durante a leitura do romance, parecem culminar em
questionamentos acerca de assuntos muito variados, como, por exemplo: Viver,
que significa? Morrer? Quem realmente é o mouro? Vida, qual seu significado?
Outra
característica da linguagem rosiana é a utilização da hipérbole propriamente
dita, também aproveitada para a elaboração do romance Desmundo. Há um grande
medo do castigo divino, e a hipérbole seguinte representa a enormidade do medo:
“ia o pai mandar muitas setas de fogo, gemidos, chamas de enxofre que nunca
acabam de queimar, tal que o ímpeto de um rio de lágrimas não poderia apagar um
dia Deus alagaria o velho mundo com as águas do céu em que se afogaria todo o
gênero humano como se matasse uma vaca brava e a terra ficaria deserta,
restando os que tinham vindo ao novo país e quem aqui fosse o mais forte seria
o rei do mundo”.
O
que se refere a Deus, principalmente no que concerne ao castigo divino, é
sempre visto de maneira hiperbólica pela personagem narradora. O hiperbólico se
presentifica, também, no que concerne às imagens visionárias que povoam os
delírios da personagem central: “era eu devedora de pagar com meu coração no
que de mim abriram o peito, um corte fino de dor e as mãos dedudas e grosseiras
do algoz se meteram no meu peito a arrancar o coração."
Outra
construção bastante intrigante pertence ao fragmento localizado na parte dois
do romance, intitulada “Terra”. As jovens órfãs aguardam seu destino no
convento dos padres “esquecidas ali, guardadas, esperando esperandesperando...”
A expressão , exatamente por divergir das construções usuais, “esperando esperandesesperando” intensifica a
ideia da espera, que é também desespero. A começar pelo uso do gerúndio, tempo
verbal que dá ideia de uma ação contínua, a intensificação se faz, também, pela
repetição da própria palavra “esperando” três vezes. A elipse do “o” final do
segundo emprego da forma “esperando”, que se une ao outro “esperando”, conota a
angústia da espera, monta-se em desespero. É preciso apressar o término da
espera, para saber o que as aguarda neste mundo tão novo.
Somando-se
às várias construções inusitadas, aparecem palavras pertencentes à língua indígena, na fala de Temericô;
à língua espanhola, nas falas da Parva e em construções como “No he temor,
piedoso es el Señor” e, ainda, à língua latina mesclada à fala/oração de
Francisco de Albuquerque. Esta mescla de línguas diferentes colabora para a
criação de uma linguagem que remete às diversidades de línguas presentes no século
XVI em terras brasileiras: o plurilinguismo.
A República de Platão
e o caos em Desmundo
O romance Desmundo,
de Ana Miranda, pode ser considerado como um romance de formação. Narra a
formação do país em seu momento mais incipiente. Narra, com isso, a formação de
seu povo de forma alegórica, apresentando a diversidade e a mistura étnica e
cultural que ocorre na colônia. O trabalho alegórico realizado no romance
aproxima-se da proposta apresentada por Platão, em seu texto A República,
quando pelos dizeres de Sócrates, em especial no livro segundo, quando esta
personagem narra, alegoricamente, a construção de uma cidade perfeita.
Em Desmundo,
o processo de construção da realidade no Brasil se dá de forma muito
semelhante. Em uma cidade portuária é possível encontrar representantes de
todas as partes do Império Português.
Gente natural da terra e do reino, num quieto rumor de
quem se ajunta, muito atentos, fêmeas, machos, os da terra de cor vermelha, em
camisas e sem barba segurando seus machados de ferro ou ferramentas da lavoura
ou remos, de pestanas raspadas, cafres machos ou fêmeas, os machos armados de
dar temor e os demais portugueses, barbados, bragas, camisas rotas, uns de
botas, barretes, braguilhas sujas de tinta vermelha. Diziam que eram aquela
gente tanoeiros, carvoeiros, caldeireiros, cavaqueiros, soldados, sangradres,
pedreiros, ferreiros, calheiros, pescadores, lavradores, eiros, eiros, ores,
ores, e tudo o mais necessário para se fazer do mato uma cidade. (Miranda, 25)
E, conforme a
narração avança, vão aparecendo cada vez mais detalhados esses que compõem a
cidade, bispo, padre, mulheres, homens, comerciantes, marinheiros, cristãos,
judeus, mouros, escravos, muitos escravos. A partir desses exemplos de
habitantes, alguns nomeados, outros não, a maioria presa a funções específicas
que lhes atribuem um caráter de personagens-tipo,
é que a ficção de Desmundo constrói um projeto de uma cidade típica
brasileira da época do início da colonização. Não há necessidade de reconhecer
a veracidade desta cidade, mas há, sim, a de perceber que a sua construção se
dá sobre os discursos que tratam sobre o que seria essa população que veio para
a colônia e aqui formou cidades e portos, produziu e guerreou.
Não
eram somente para se defender é que as guerras no Brasil ocorriam. Elas eram
tanto fruto das necessidades dos outros povos, como eram das portuguesas. Essas
necessidades se refletiam em ataques contra os povos indígenas, para capturar escravos.
Era guerra por necessidade (econômica, de força de trabalho), apresentando-a
guerra como algo justo, pois os colonos haviam sido atacados primeiro e então,
teriam o direito de contra-atacar.
Fartar, rapazes!
Vingança! Vilanagem! Cercaram os cristãos a aldeia, com suas armas apontadas,
postos em suas ordens e em suas capitanias, com muita soma de guiões e
bandeiras, os selvagens dispararam flechas que tombavam uns dos animais e se
fez uma tal grita que pensei estar na batalha do fim do mundo, por fora dos
naturais andavam uma grande cópia de homens correndo de uma parte a outra com
suas lanças nas mãos a meterem os naturais em cerco, mais uma fileira de gente,
avançaram, entraram na aldeia, davam com as espadas nas cabeças dos velhos e
das mulheres ou metiam uns disparos para todo lado, de modo que o terreiro
deles se foi cobrindo de mortos, uns nus e vermelhos, outros de suas capas e
cabelos negros e vermelho de sangue, de miolos e uns pedaços de gente, até o
fim. (Miranda, 144)
O
tratamento a que os indígenas são submetidos é até visto como algo penoso, mas que
não tem como ser evitado.
A pobre Temericô
enxergava tudo, parada na mata feito uma pedra, depois de algumas fritas se
curvou sobre a barriga e gemeu feito cantasse, uma coisa estranha de se ver.
Mandei assentar ao meu lado, o que ela fez. Não sabia que brasil sente dor. Os
vaqueiros amarraram num fio os guerreiros brasilos, um atrás outro, escolhendo
e metendo uma espada n peito dos que não tinham serventia, ou quebrando os
miolos deles e veio o gentio assim puxado, um espetáculo tão piedoso que não
havia bom homem ou mulher que não pasmasse de tristeza. Eram mil os cativados
que iam agora servir de escravos. (Miranda, 144)
Essa
incorporação da guerra de captura dentro da ficção histórica se dá em duas
perspectivas: de um lado, o aparecimento do relato histórico, enquanto uma referência
à imagem canônica, faz com que a história seja reafirmada, produzindo uma representação
sobre o passado no presente. Mais do que
negar o passado, a ficção histórica contemporânea busca retrabalhar as imagens canônicas
incorporadas no imaginário sobre o passado. Mas, ao mesmo tempo, ao reafirmar o
passado que de certa forma se tona oficial, a ficção histórica contemporânea traz
uma grande quantidade de anacronismos. Esses anacronismos são certas
atualizações do discurso possíveis dentro de um discurso não compromissado com
a verdade histórica, como é o caso do discurso ficcional. Ao apresentar a
compaixão sobre o sofrimento do gentio, nas palavras de Oribela, a ficção
histórica que toma corpo em Desmundo aponta para uma visão do futuro
(contemporânea da época da produção do romance) sobre a escravidão.
Identidade nacional e miscigenação
Gilberto Freyre
(2000), pesquisador da história brasileira, afirmou que os portugueses, quando
chegaram ao Brasil encontraram as índias nuas que, pelo seu aspecto físico se
assemelhava ao imaginário português sobre a mulher moura (muçulmana). Essa é
uma das explicações que Freyre dá para a grande capacidade que os portugueses
tiveram ao chegar nas terras de além mar.
Quanto à miscibilidade, nenhum povo colonizador, do
modernos, excedeu ou sequer igualou nesse ponto aos portugueses. Foi
misturando-se gostosamente com mulheres de cor logo ao primeiro contato e
multiplicando-se em filhos mestiços que uns milhares apenas de machos atrevidos
conseguiram firmar-se em posse de terras vastíssimas e competir com povos
grandes e numerosos na extensão de domínio colonial e na eficácia de ação
colonizadora. A miscibilidade, mais do que a mobilidade, foi o processo pelo
qual os portugueses compensaram-se da deficiência em massa ou volume humano
para a colonização em larga escala e sobre áreas extensíssimas. Para tal
processo preparara-os a íntima convivência, o intercurso social e sexual com
raças de cor, invasora ou vizinhas da Península, uma delas, a fé maometana, em
condições superiores, técnicas e de cultura intelectual e artística, à dos
cristãos louros. O longo contato com os sarracenos deixara idealizada entre os
portugueses a figura da moura-encantada, tipo delicioso de mulher morena e de
olhos pretos, envolta em misticismo sexual – sempre encarnado, sempre penteando
os cabelos ou banhando-se nos rios ou nas águas das fontes mal-assombradas –
que os colonizadores vieram encontrar parecido, quase igual, entre as índias
nuas e de cabelos soltos do Brasil. Que estas tinham também os olhos e os
cabelos pretos, o corpo pardo pintado de vermelho, e, tanto quanto as nereidas
mouriscas, eram doidas por um banho de rio onde se refrescasse sua ardente
nudez e por um pente para pentear o cabelo. Além do que, eram gordas como as
mouras. Apenas menos ariscas: por qualquer bugiganga ou caco de espelho estavam
se entregando, de pernas abertas, aos “caraíbas” gulosos de mulher. (Gilberto
Freyre, 2000, 84)
Oribela, em uma das
cenas do livro, foge de casa, após um ataque que haviam sofrido, e esconde-se
na residência de um mouro, Ximenos Dias, local em que passará alguns meses. Mesmo que Ximeno não possuísse a
característica física moura (a pele queimada, os olhos e cabelos escuros), ele
é objeto de interesse para os olhos de uma mulher confusa e, mais do que
portadora de valores religiosos católicos, ela traz consigo a visão de mundo
construída por esses valores, em especial as imagens sobre outras culturas
construídas por eles.
O mouro possui uma
descrição que enfatiza a sua cor, em especial o cabelo avermelhado e a pele
rosada. Ximeno incorpora em si toda a diversidade de visões sobre o que era o
mouro: tipo de religião, conhecimento, erudição, sensualidade e a encarnação do
demônio (p. 168, p. 179).
Esses diálogos que
ocorrem com os textos sobre o passado histórico brasileiro também ocorrem com a
história da literatura. Em uma subversão de uma imagem canônica da literatura
brasileira sobre a formação do povo brasileiro, o romance Desmundo se
apropria da forma de romance de formação, usada por José de Alencar, em Iracema.
Neste, uma índia, belíssima, pari um filho de um português, também belo, e o
lusitano, no intuito de dar melhores condições de educação e civilidade, leva o
filho para a Europa, deixando a índia, Iracema, abandonada no Brasil. Ela acaba
morrendo de tanto sofrer pela separação. Este romance, alegoricamente, narra o nascimento
do primeiro brasileiro (no texto, o primeiro cearense), filho de português com
índio, e educado cultamente na Europa.
Já em Desmundo,
ela, Oribela, uma portuguesa órfã e de pouca beleza vem para o Brasil e aqui
acaba por se casar com um colono português, Francisco de Albuquerque, que já
havia incorporado grande parte dos costumes da terra, tornando- se praticamente
um bruto, um selvagem (a sua falta de civilidade é reforçada também pelo seu
aspecto grotesco, com barba grande e sujo). Ele, ao final da narrativa, ao desistir
de conquistar pelo menos respeito por parte de Oribela, mulher que lhe havia traído
e engravidado de outro homem (ainda por cima um mouro), ao nascer do filho ele
toma o filho de sua mãe e parte com ele para Portugal, abandonando Oribela
(imagem de uma Iracema traidora, impura) a praguejar contra o seu marido e contra
à terra em que é condenada a viver. Nada
de belo é apresentado nessa imagem da subversão de Iracema. Bem pelo contrário:
o que ocorre é a dessacralização do imaginário do Romantismo, apontando um
diálogo com o passado, mas buscando livrar-se de suas imagens estereotipadas.
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