3 de nov. de 2013

Felicidade Clandestina - Clarice Lispector

PAES 2013 –"Felicidade Clandestina" análise literária do conto clariceano
Sobre Clarice Lispector
Clarice Lispector nasceu em 10 de dezembro de 1920 em Tchetchelnik, Ucrânia. Quando tinha cerca de dois meses de idade, seus pais migraram para o Brasil, terra que considerava como sua verdadeira pátria. Em 1924, a família mudou-se para o Recife, onde iniciou seus estudos. Por volta dos oito anos, Clarice perdeu sua mãe. Três anos depois, a família muda-se para o Rio de Janeiro.
Ingressa em 1939 na Faculdade de Direito e, no ano seguinte, seu primeiro conto, Triunfo, em uma revista. Forma-se em 1943 e se casa no mesmo ano com o diplomata Maury Gurgel Valente, com quem teve dois filhos. Durante seus anos de casada, mora em diversos países pela Europa e nos Estados Unidos.
Em 1944, publica seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, vindo a ganhar o Prêmio Graça Aranha, da Academia Brasileira de Letras, no ano seguinte. Separa-se de seu marido em 1959 e volta para o Rio de Janeiro com seus dois filhos. No ano seguinte, publica seu primeiro livro de contos, Laços de família.
Em 1967, um cigarro provoca um grande incêndio em sua casa e Clarice fica gravemente ferida, correndo risco inclusive de ter sua mão direita amputada. Porém, após se recuperar, continua com sua carreira literária publicando diversos livros.
Publica em 1977 seu último livro A hora da estrela, vindo a ser internada pouco tempo depois com câncer. A escritora vem a falecer no dia 9 de dezembro do mesmo ano, véspera de seu aniversário de 57 anos.
Suas principais obras são: "Perto do coração selvagem" (1944), "Laços de família" (1960), "A maçã no escuro" (1961), "A legião estrangeira" (1964), "A paixão segundo G.H." (1964), "Felicidade clandestina" (1971), "Água viva" (1973) e "A hora da estrela" (1977).
Felicidade Clandestina, a obra
Lançado inicialmente em 1971, "Felicidade Clandestina" reúne diversos textos de Clarice Lispector que foram escritos em diversas fases da vida da autora. Os textos reunidos nessa obra podem mais facilmente ser classificados como “contos”, mas como Clarice não se prendia a convenções de gêneros, todo o conjunto reunido em Felicidade Clandestina migra de gênero em gênero, ora aproximando-se do conto, ora aproximando-se da crônica, ou por vezes sendo quase um ensaio. Muitos dos textos reunidos neste livro foram publicados como crônicas no Jornal do Brasil, para onde Clarice escrevia semanalmente de 1967 a 1972.
Assim como o conto que dá título ao livro, muitos dos textos apresentam algo de autobiográfico, trazendo recordações da infância da autora em Recife, alguma personagem que marcou seu passado, etc. Através da recordação de fatos do seu passado, Clarice Lispector busca nos contos fazer uma investigação psicológica de autoanálise.
Felicidade clandestina:
Considerações sobre o conto e a escrita clariceana
O conceito de crueldade, quando aplicado a uma criança, sempre choca e provoca mal estar. É como se julgássemos impossível que alguém muito jovem estivesse corrompido e apresentasse comportamento iníquo. Crianças trazem sempre aos nossos olhos a imagem da inocência, da credulidade, e imaginá-las sendo maldosas fere profundamente nossa crença no ser humano, no mundo e na racionalidade.
Com parte dos contos rememorando sua meninice em Recife, a leitura de Felicidade Clandestina, no livro homônimo de Clarice Lispector, nos fere um pouco, ao mesmo tempo em que nos obriga a rever conceitos e expectativas sobre a infância. Clarice mostra-se hábil artesã, tece um enredo que delicia ao mesmo tempo em que machuca: a história da menina pobre, que não pode comprar livros, e sua completa submissão à impiedade da outra criança, que se compraz com seu desejo expresso de ler um determinado livro, comove e revolta.
paixão revelada, e por isso mesmo escravizadora e humilhante, já foi vivida por todos em algum momento da vida. O sentimento de estar disponível para outrem, sujeitado ao seu poder, e, principalmente, o fato de ser exatamente uma criança exercendo tal poder sobre outra, com certeza nos remete à infância, a alguns momentos da vida em que cada um de nós sentiu e sofreu a situação de um lado, ou, o que até mesmo pode ser pior, de outro.

O estudo e análise do ser humano: conhecer-se para ser
Através de um mergulho no universo interior das personagens, Clarice traz à tona temas existencialistas e as contradições, dúvidas, inquietudes do ser humano. É importante ressaltar que a autora conduz o sujeito (as personagens) para um inevitável isolamento. Assim, em toda a obra de Clarice Lispector teremos personagens desconfiadas, inadaptadas ao meio em que vivem, com temores e inquietações.  Como a preocupação de Clarice é com a personagem em si e sua viagem ao interior do ser humano, o cenário físico ao redor é muitas vezes deixado de lado. A não ser que o cenário interfira diretamente ou ativamente na história. Por isso, dificilmente encontramos passagem descritiva nos contos de Clarice. Além disso, a escritora utiliza uma linguagem subjetiva, abusando de adjetivos, metáforas e comparações. Do ponto de vista formal, a narrativa utiliza o estilo circular, que consiste na repetição sistemática de palavras, expressões ou frases, para conseguir um efeito enfático. 
Clarice Lispector emprega o processo narrativo do fluxo da consciência, que é o rompimento dos limites de espaço e de tempo. O pensamento fica solto. Pequenos fatos exteriores provocam uma longa viagem abstrata das ideias, sem se basear numa estrutura sequencial da narração.
Ela faz os personagens viverem o processo chamado de “epifania”, ou seja, revelação. Em outras palavras, de repente, diante de ocorrências mínimas, o personagem se descobre e vê revelada uma realidade mais profunda. Muitas vezes, ele mesmo não consegue perceber com clareza que realidade é essa, porém sua vida ou sua visão mudam.  A menina que se torna “amante” do livro é um exemplo dessa situação epifânica. A condição de mulher faz Clarice muito sensível aos problemas das pessoas carentes. A marca registrada de seus personagens é serem tipos desprezados aos olhos da sociedade (meninas, velhas, adolescentes), mas ricos em sua interioridade.
Ainda integra a característica de mulher-autora a visão do nascimento da mulher na menina. São numerosas as personagens-meninas que, de uma forma ou de outra, se tornam adultas a partir de experiências aparentemente corriqueiras.
Toda essa exaustiva pesquisa do interior do ser humano – a subjetividade procurando se orientar envolvida pela objetividade – pode passar despercebida ao leitor desatento. Isso porque os textos são muito pobres de fatos, aliás, propositalmente pobres. Cenas comuns, desenhadas sem rebuscamentos, mas com bastante precisão de detalhes, podem esconder a profundidade do conteúdo analítico. As palavras não são raras, os aspectos descritos e narrados parecem irrelevantes, a sintaxe não se complica. O campo da linguagem fica livre para o leitor acompanhar os pensamentos que movem as intenções dos personagens à procura de se ajustarem com eles mesmos.

Análise do conto
Em Felicidade Clandestina a narradora recorda sua infância no Recife. A introdução do conto apresenta as duas protagonistas da narrativa, salientando os aspectos negativos de uma, que serão bem mais evidentes que os da outra: “Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme...” Mas, apesar de todos esses defeitos, ela era agraciada com algo que a tornava privilegiada: “possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria”. E isto a tornava superior a todas suas amigas. A outra, apesar de ser como as demais meninas: “bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres”, não tem acesso aos livros. Por isso, ela, que é a narradora em 1ª pessoa, relata a sua experiência de amá-los e não poder desfrutá-los.
A filha do dono da livraria não aproveitava os livros e, segundo a narradora, nem as outras meninas, uma vez que ela, até mesmo nos aniversários, não tinha a gentileza de dar um livro de presente: “em vez de pelo menos um livrinho barato”. Nesse ponto chegava a ser irônica, pois seu presente favorito para as outras eram cartões postais da loja do pai, como para mostrar-lhes que o mundo dos livros, para elas, era inacessível, sempre ficariam distantes dele, enquanto ela detinha o poder de possuí-los.
Por isso, ela vivia pedindo-os emprestados àquela colega filha de dono de livraria. Essa colega não valorizava a leitura e inconscientemente se sentia inferior às outras, sobretudo à narradora.
Em relação a esse comportamento da menina que lhe dava cartões postais da livraria do pai, a narradora era indignada: “ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas”. Por entender que possuir livros significava ter poder sobre os que não tinham, a filha do dono da livraria resolveu que às outras não daria esse gostinho de querer mudar esta situação. Pois é preciso entender que para essas meninas leitoras o seu adentramento na ambiente dos livros seria uma opção pela liberdade “a ponto de entendê-lo enquanto relação amorosa”.
Essa menina era mesmo cruel e com a narradora exerceu com calma ferocidade o seu sadismo, tanto que a pobre nem percebia, tal era a sua ânsia de ler: “continuava a implorar-lhe emprestado os livros que ela não lia”. Até que chegou o dia em que começou a exercer sobre a outra uma tortura chinesa, a informou que possuía As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, que para esta “era um livro grosso, [...], era um livro para se ficar vivendo, comendo-o, dormindo-o”.
Para a nossa narradora, os livros lhe davam “um lar permanente”, e um lar que ela “podia habitar exatamente como queria, a qualquer momento.” Porém, para ela, o livro estava longe de suas posses. Então, foi logo pedindo emprestado o tal, a outra pediu que passasse por sua casa no dia seguinte e ela o emprestaria.
            Para a narradora, o livro é o objeto do seu desejo e para este não há limites: “Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam”. Ao chegar o tão esperado dia seguinte, foi à casa da outra “literalmente correndo”. Mal sabia a ingênua menina que a colega tinha um plano diabólico. A dona do livro, quando a narradora chegou até sua casa e pediu-o, disse que o havia emprestado à outra menina, que ela voltasse no dia seguinte. Ficou boquiaberta, mas seu desejo era tal que, a esperança invadiu novamente seu ser e ela andou pelas ruas pulando, sonhando: “guiava-me a promessa do livro”. No dia seguinte, outra desculpa, o livro ainda não havia sido devolvido. E assim se seguiram os dias. O terror por não ter o livro para ler e a outra se divertindo em alimentar uma esperança era uma cena digna de pena: “eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer”.
            Então todos os dias, invariavelmente, ela passava na casa e o livro não aparecia, sob a alegação de que já fora emprestado. Esse suplício durou muito tempo. A sua relação com o livro é tal, que todo esse sofrimento começou a afetar o seu físico: “eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados”. Tudo isso porque o ato da leitura para ela era uma necessidade, padecia com o não-ler, tinha uma fome que precisava ser saciada, pela chance que a outra poderia lhe dar, ao emprestar-lhe o livro tão esperado.
            Chegou finalmente o dia da redenção da narradora, quando todos seus males seriam sarados. Certo dia, a mãe da colega cruel interveio na conversa das duas e descobriu que sua filha estava enganando a outra menina: “mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!”
            E essa descoberta não era a pior, mas sim a descoberta, horrorizada, da filha que tinha. A narradora seria agora agraciada pelo tão almejado objeto do desejo: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser”. Esse “por quanto tempo quiser” significava muito mais do que dar-lhe o livro, ela teria posse sobre o seu objeto do desejo. Toda a sua espera, sua insistência, finalmente era recompensada.
            Para a narradora foi impossível descrever-nos o que sucedeu assim que recebeu o livro na mão. Ela só lembrava que “o segurava firme com as duas mãos, comprimindo contra o peito.” Imaginamos que agiu assim por temer que algo ou alguém a separasse dele. Esqueceu até mesmo quanto tempo levou até chegar à casa. Porém, isso não importava, o que valia a pena era sentir que o livro estava com ela: “meu peito estava quente, meu coração pensativo”. Isso indica um sentido diferente para a leitura.
            Para o leitor do conto, a menina que tanto queria o livro ao conseguir possuí-lo, devorá-lo-ia em pouco tempo. Mas não foi isso o que aconteceu. Ela chegou em casa e não começou a ler: “fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter”. Algum tempo depois, leu algumas partes, que considerou maravilhosas, fechou-o novamente, indo fazer outras coisas, fingia que não sabia onde guardava o livro, achava-o, lia novamente.
Essa foi a felicidade clandestina da menina. Fazia questão de “esquecer” que estava com o livro para depois ter a “surpresa” de achá-lo.
            A narradora “criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade”. A felicidade em ter acesso aos livros, à leitura, que para ela era clandestina, pois não possuía livros e nem condições financeiras que possibilitassem um maior contato com eles. Esta “felicidade clandestina” significa que ela está muito feliz por realizar algo para ela ilegal, pois o fato de possuir um livro, era, muitas vezes, na sociedade antiga, um privilégio dos mais favorecidos economicamente e continua sendo até hoje. Assim, podemos afirmar que a personagem narradora quebrou os paradigmas dessa diferença social, e por isso, cometeu grave delito, com sua insistência e amor aos livros. Conseguiu ter acesso ao seu objeto desejado.
            Ao realizar algo proibido, a narradora sabe que deveria ter orgulho, pois conseguiu alcançar seu objetivo, e pudor, pois poderia perder o que conseguiu, além disso, estava vivendo no ar. Agora ela “não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu ‘amante’”.
O ponto central desse texto é o conceito de “felicidade”. Nele, a escritora parece se questionar “afinal, o que é felicidade?”. A menina presente no conto parece conhecer bem o dito popular “felicidade é bom, mas dura pouco”, uma vez que ela se utiliza de todas as formas para prolongar seu sentimento de felicidade. Dessa forma, sua felicidade aparece como um sentimento “clandestino”, já que nem ela mesma pode se conscientizar de sua própria felicidade para que esse sentimento não acabe. Conclui-se, portanto, que a felicidade deve ser descoberta em todos os momentos e nas coisas mais simples, inclusive no ato de ler.





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