3 de nov. de 2013

A luneta mágica

ANÁLISE LITERÁRIA: A LUNETA MÁGICA, Joaquim Manuel de Macedo
CONTEXTO HISTÓRICO
A ascensão da burguesia ao poder e o surgimento do jornal (o primeiro aparece em 1808, no RJ) vieram modificar o gosto do público pela literatura. A nova mentalidade, menos refinada, menos educada e mais pragmática - voltada para os problemas do dia a dia - requer um gênero literário que possa estar à altura do seu entendimento e do seu gosto. E o romance, que há mais tempo vinha tomando forma [na Espanha, na Inglaterra e na França, sobretudo], começou a ensaiar seus primeiros passos no Brasil. Dos primeiros folhetins, publicados em jornais, por autores agora completamente esquecidos, passamos às primeiras manifestações mais apropriadas e logo festejadas pelo grande público. Atentos, sempre, ao anseio do novo público, surgiram os primeiros romancistas. E, com eles, os primeiros folhetins, entre estes está A Luneta Mágica, de Joaquim Manuel de Macedo. A obra foge de tons piegas do romance e tem uma conotação maior de fábula com lição de moral.

SOBRE O AUTOR: Joaquim Manuel de Macedo nasceu em Itaboraí [RJ], em 1820. Fez o curso de Medicina  e, no mesmo ano de sua formatura, 1844, publicou A Moreninha, muito apreciado pelo público da época. Foi jornalista, professor secundário, dramaturgo e romancista, obtendo destaque literário com este último gênero. Fundou, em 1849, a 'Revista Guanabara', juntamente com Gonçalves Dias e Araújo de Porto Alegre. Morreu no RJ, em 1882. Macedo é o criador da ficção brasileira 'pela forma e pelo estilo'. Estuda a psicologia feminina, enquadrando-a no contexto emocional do Romantismo. Excelente observador, retrata a burguesia carioca, reproduzindo seus costumes, manias e a mediocridade de seu pensamento. Suas obras, apesar de variadas, apresentam estilo falho e superficial análise psicológica dos personagens, sendo, portanto, o seu principal mérito o de ser o introdutor da prosa de ficção em nosso Romantismo. Também Macedo proporcionou aos leitores duas coisas que lhe garantiram popularidade: narrativas cujo cenário e personagens eram familiares, de todo o dia; peripécias e sentimentos enredados e poéticos, de acordo com as necessidades médias de sonho e aventura.

ENREDO DA OBRA
No romance A Luneta Mágica, Macedo nos conta a história de Simplício, um rapaz que padece de um mal terrível: uma dupla miopia, a qual lhe causa desespero e desgosto:
Ø  Miopia física: que o impede de ver ou distinguir qualquer coisa a duas polegadas de distância dos seus olhos.
Ø  Miopia moral: o impede de entender ou distinguir as ideias alheias ou de ajustar suas próprias ideias. [trata-se de um parvo, ingênuo...]
Simplício ficou órfão aos 12 anos de idade e, desde então, vive com o seu irmão Américo, que administra sua herança, com a devota tia Domingas e com a prima Anica. Certo dia, apesar de sua miopia, foi convidado para fazer parte de um júri. Lá conhece o Sr. Nunes que lhe fala do Reis, um gravador de vidros, capaz de resolver seu problema de miopia.
Depois de muitas tentativas, de lentes do mais alto grau, Reis reconhece que não pode ajudar Simplício, sua miopia é muito forte. Condoído, no entanto, com a dor do rapaz fala-lhe do Armênio - um artista de habilidades mágicas trazido da Europa pelo próprio Reis para trabalhar em sua oficina.
O desejo de Simplício de ver era tão grande que ele acaba aceitando ir visitar o Armênio. Este promete-lhe uma luneta mágica, mas avisa-lhe também que em pouco tempo o rapaz vai ter a convicção de que é melhor ser cego do que ver demais.
Assim, depois de pensar muito sobre tudo o que o Armênio havia lhe falado e consultar sua família, Simplício vai ao encontro do mágico no horário marcado, a meia-noite. Lá presencia o ritual de construção da luneta. Depois de muitas luzes, fogos e palavras mágicas, finalmente o mago entrega-lhe o objeto mágico, mas não antes de lhe avisar sobre os poderes e perigos da luneta: Simplício não deveria fixá-la mais de 3 minutos sobre qualquer objeto ou ser humano, pois assim passaria a ter a visão do mal (vingança da salamandra presa no vidro) e, além disso, não deveria também fixá-la em nada além de 13 minutos, pois esta seria a visão do futuro e, neste caso, para própria proteção do rapaz, a luneta se quebraria.
Ansioso com a possibilidade de enxergar, Simplício volta para casa e espera o amanhecer para experimentar a luneta. Maravilhado com a visão da aurora, acredita que será impossível ver qualquer coisa má nesta cena e decide, portanto, fixar sua luneta por mais de 3 minutos. De repente, fica horrorizado com o que vê: '-Meu Deus!...como a aurora é enganadora e falsa!...e como o sol é feio, terrível e mau!!!'. Concorda com o Armênio e diz que basta a visão da superfície e das aparências, a felicidade do homem está nas ilusões dos sentidos, nos enganos da alma, quer ser feliz e, portanto, não fará mais uso da visão do mal. No entanto, nosso jovem ingênuo, acaba por não resistir à visão do mal e começa a fixar sua luneta sobre tudo e todos.
            A visão do mal permite-lhe ver a 'verdade' sobre:
Ø  Prima Anica, moça fria, sem sentimentos, mulher calculista, incapaz de amizade, interessada em casar com Américo ou com Simplício por causa da fortuna;
Ø  Mano Américo, ambicioso avarento, rouba a família na administração dos bens;
Ø  Tia Domingas, invejosa, fofoqueira, sovina, deseja o casamento da filha com Américo pela fortuna.
Estas descobertas deixam Simplício horrorizado e decepcionado fazendo-o decidir procurar um advogado para administrar seus bens e uma esposa para formar uma nova família. Procura o Nunes para que este o ajude com seus planos. No entanto, ao fixar sua luneta sobre o velho, descobre um farsante e interesseiro.
            Passa-se um mês e ele só encontra decepções, ninguém em quem confiar, nada em que acreditar. Os amigos são todos interesseiros, exploradores, as moças são todas falsas e impuras.
            De repente, a cidade inteira comenta sua loucura e ele passa a ser perseguido e execrado em todos os locais. A família decide que ele está doente, tranca-o em casa e quer destruir sua luneta. A visita de um médico, no entanto, impede que ele seja declarado louco. Todos concordam que ele foi iludido pela magia e que com amor e carinho conseguirá superar tudo.
Ainda assim, Simplício não entrega a luneta e sabe que, embora não seja considerado louco será visto como um maníaco, portanto não há salvação. Decide, então, que a única coisa que poderá salvá-lo será a visão do futuro. Ele quer saber qual o seu futuro e por isso decide fixar a luneta nele mesmo (no espelho) por mais de 13 minutos. Entretanto, antes de chegar na visão do futuro, chega à visão do mal e se descobre um infame, caluniador, um inimigo da família, um homem capaz de maldizer todas as criações de Deus, um maldito...Antes de chegar na visão do futuro, a luneta quebra-se em suas mãos.
De novo, Simplício acha-se na escuridão, arrependido de ultrapassar a visão da superfície e das aparências, descobre-se, agora, sem nada, sem qualquer possibilidade de ver.
Depois de oito dias enclausurado em casa, decide que já pode sair, as pessoas não lembrarão de mais nada - 'Não há atividade de opinião que resista à extensão, à eternidade de oito dias na nossa capital'.
Durante o passeio, reencontra o Reis que lhe conta sobre as fofocas do Nunes e o convence a, novamente, procurar o Armênio. Assim, fica combinado um novo encontro, a meia-noite, no gabinete do mágico.
Mais uma vez Simplício presencia todo o ritual de construção da nova luneta e ouve os alertas do Armênio sobre o uso correto da lente. Dessa vez, se fixada por mais de três minutos, ela lhe dará a visão do bem.
Ao voltar para casa, esperançoso e feliz com a possibilidade de ver novamente, Simplício decide que escreverá a todos os jornais e falará sobre as maravilhas de que o Armênio é capaz. Ele não entende a descrença do Reis nas potencialidades mágicas. Acredita que o Armênio poderá ajudar muitas outras pessoas e que, portanto, não faz sentido manter tudo isso em segredo.
Depois de se questionar sobre que mal poderia haver na visão do bem, mais uma vez Simplício desobedece o mágico e fixa sua luneta por mais de três minutos. Começa por enxergar a prima Anica, um anjo de inocência e de candura; tia Domingas, a devoção e a piedade personalizada; o mano Américo, a pura dedicação fraternal. “ - Eu tinha a febre da felicidade. O mundo e a vida me festejavam o coração; eu desejava rir, divertir-me, folgar”.
Maravilhado com a visão do bem, apaixona-se pela prima Anica e por mais trinta e tantas outras moças, inclusive por Esmeralda, uma conhecida prostituta do 'Alcasar Lírico'. Reconhece a bondade e a pureza de coração em todos que dele se aproximam, ajuda a todos, paga jantares, dá esmolas, contribui para fundos de caridades através dos 'amigos', que são cada vez em maior número. Reencontra o Nunes, visita-lhe a família, apaixona-se por sua filha, salda suas dívidas. Enfim, passa a ser explorado e ridicularizado por todos sem perceber. Quando alguns tentam lhe avisar sobre o que está acontecendo, fica confuso, pois descobre a verdade na boca destas almas boas, mas não entende como isso pode ser possível.
Mais uma vez desesperado e angustiado, descobre que a visão do bem é um martírio.           
Com a alma atormentada, presencia um funeral e percebe a beleza, a felicidade da morte. Decide, portanto, que o melhor que tem a fazer é morrer. Como não tem armas ou veneno, nem meios para consegui-los, sobe até o alto do Corcovado para se jogar de lá de cima. Antes, porém, pensa uma vez na visão do futuro, dá uma última olhada através da luneta mágica para cidade, a capital do Império do Brasil. Passa-se os treze minutos e a luneta se quebra em suas mãos. Mais uma vez nas trevas, Simplício não hesita e se joga do parapeito... Duas mãos possantes, no entanto, suspenderam-lhe pelas orelhas - era o Armênio.
Depois de conversarem sobre tudo o que havia acontecido, o mágico fala-lhe sobre as lições das lunetas: Exagerar é mentir;  'No mundo há o bem e o mal, como há na vida o prazer e a dor.' 'Mas o bem é o bem, o mal é o mal como são e não podem deixar de ser para humanidade que é imperfeita: perfeito bem, absoluto mal não há para ela.' 'A imperfeição e a contingência da humanidade são as únicas ideias que podem fundamentar um juízo certo sobre todos os homens...Cada qual é o que é e cada qual tem as suas qualidades, e seus defeitos.'
Depois desta conversa, o Armênio decidiu dar-lhe uma última luneta mágica - A Luneta do Bom Senso. Desta vez, no entanto, Reis faz Simplício prometer segredo sobre o assunto.

Sobre a obra

            Narrador: narrador-personagem: Simplício, personagem central, é considerado incompetente para viver neste mundo: um tonto ou louco incapaz de gerir sua vida. 
            Foco narrativo: primeira pessoa.
            Estilo literário: prosa romântica com forte viés realista.  O autor observa e retrata a burguesia carioca, reproduzindo seus costumes, que nos remete às origens de nossa formação urbana.
             
CRÍTICA SOCIAL
A narrativa de Macedo satiriza a sociedade. O problema residiria na falta de transparência dos seres e das relações, que exigem o uso das lunetas para serem desvendadas. Porque este é o grande tema e problema da narrativa: a conquista da liberdade e a fundamentação do livre-arbítrio.  Cada ser humano é responsável pelo seu caminho. Aquele que precisa constantemente da opinião e orientação dos outros para pensar e agir, sem ter discernimento próprio, não é responsável por seus atos, sendo, a rigor, prisioneiro dos outros. Esta é a maior dificuldade de Simplício. Ele precisa de um olhar que o oriente a julgar a si mesmo, julgar o mundo, os cidadãos e os atos humanos, políticos ou éticos. Consciente de que teria o direito e o dever de dispor de critérios para julgar, desespera-se e busca solução, que vem sob a forma da luneta mágica.

            A luneta é como um mecanismo de conto de fadas: no romance, para se atingir o discernimento é preciso magia. Só a magia poderia, aparentemente, ajudá-lo, e vinda de um estrangeiro: o Armênio. A condição de “menoridade” de Simplício parece mais radical porque ele, na sua simplicidade, tem boa-fé. Com luneta ou sem luneta, ele é explorado pelo irmão, pela tia e pela prima. Os que se apresentam como se fossem maiores de idade, maduros, têm, diferentemente de Simplício, decisão e coragem nos seus atos abusivos e injustos. Falta decisão e coragem àqueles que persistem na condição de menores, de honestos. Simplício pensa consegui-las com a ajuda da luneta. A maioridade consiste na autonomia, na liberdade de ser e agir segundo o próprio entendimento. No romance de Macedo, a maioridade dependerá da luneta do bom senso, aliada ao silêncio e à discrição.

ESTRUTURA DO TEXTO:
Ao explorar um tempo linear e a organização do texto em partes simétricas, A luneta mágica constrói-se de forma simples: o narrador apresenta as personagens uma a uma, a começar por si próprio, e desenvolve um relato direto e sequencial. Contudo, por mostrar-se como um ingênuo míope com o significativo nome de Simplício, o personagem imediatamente introduz-se como nota dissonante na estrutura da narrativa. O procedimento irônico é reforçado pela denúncia da corrupção dos laços familiares e das estruturas políticas do Segundo Império, quando são apontados, como fenômenos de natureza idêntica, tanto as mazelas do sistema político-administrativo do Brasil quanto a família que controla as rendas e o futuro de Simplício. Assim, seu irmão Américo, a prima Anica e tia Domingas encenam na microestrutura familiar o mesmo comportamento de estadistas, ministros, polícia, guarda nacional e justiça pública, comparados por Simplício a grilos, cupins, aranhas e ratos empenhados na tarefa de dilapidar o patrimônio nacional e atravancar a máquina do Estado.
            A súbita mudança de quase cego a visionário, ao invés de melhorar a vida de Simplício, traz-lhe mais dilemas e aprofunda sua solidão. Se antes seu isolamento era devido às dificuldades visuais, quando passa a perceber os outros para além das aparências, depara-se com tantas vilanias que rejeita todos os homens e é por eles rejeitado. De forma semelhante, as lentes do bem lhe proporcionam uma mirada paradisíaca que, por cegá-lo e desprotegê-lo frente aos demais personagens, transforma-o em ridículo objeto de exploração, ampliando seu ostracismo e levando-o ao paradoxo de desejar a morte. Antes de tornar o mundo visível para o narrador, as lunetas tornam o narrador visível para o mundo que, logo após reconhecê-lo, volta a abandoná-lo.
            Contudo, embora pareça estimulá-las, a magia das lentes na verdade critica as visões do bem e do mal enquanto elementos diametralmente opostos, excludentes e caricaturais, mostrando como um personagem sem perspicácia se transforma em sagaz observador do mundo. A perda da miopia física e moral é resultado de um ritual de iniciação proposto pelo armênio e ao qual não faltam exorcismos e invocações dos anjos. Após as provas de praxe, nosso herói ascende à vida aspirada pelo leitor burguês do Brasil imperial. A experiência cabalístico-estética encerra-se com um ensinamento metalingüístico do armênio que se auto-intitula Lição e nomeia Simplício como o Exemplo - aquele que partiu do senso comum e, depois de tantas peripécias, logrou reunir o bem e o mal adquirindo a desejada autonomia por meio das lunetas do bom senso.


CONCLUSÃO A obra de Joaquim Manuel de Macedo serve de valoroso estímulo para a nossa reflexão sobre a qualidade das ações humanas, norteadas pelo antagonismo entre os princípios do Bem e do Mal. Na verdade, esse dito antagonismo somente ocorre mediante uma interpretação parcial da realidade, pois que, em um mundo marcado pela relatividade dos seus valores, o que realmente pode ser considerado de maneira categórica e definitiva como do âmbito do “Bem” ou do “Mal”? Essa indagação, no entanto, necessariamente não nos leva a um impasse irresolúvel, pois que, mediante o uso do bom senso, podemos constituir um modelo de vida crítico, no qual avaliamos de modo consciente aquilo que efetivamente nos proporciona algum benefício duradouro, ou, ao contrário, aquilo que nos prejudica. A visão plena do Mal envenena o ânimo do indivíduo, e a visão plena do Bem torna o indivíduo ingênuo diante dos aproveitadores cotidianos.

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