Sua casa ficava para trás da Serra do Mim,
quase no meio de um brejo de água limpa, lugar chamado o Temor-de-Deus. O Pai,
pequeno sitiante, lidava com vacas e arroz; a Mãe, urucuiana, nunca tirava o
terço da mão, mesmo quando matando galinhas ou passando descompostura em
alguém. E ela, menininha, por nome Maria, Nhinhinha dita, nascera já muito para
miúda, cabeçudota e com olhos enormes.
Não que parecesse olhar ou enxergar de propósito. Parava quieta, não
queria bruxas de pano, brinquedo nenhum, sempre sentadinha onde se achasse,
pouco se mexia. – "Ninguém entende muita coisa que ela fala..." –
dizia o Pai, com certo espanto. Menos pela estranhez das palavras, pois só em
raro ela perguntava, por exemplo: - "Ele xurugou?" – e, vai ver, quem
e o quê, jamais se saberia. Mas, pelo esquisito do juízo ou enfeitado do
sentido. Com riso imprevisto: - "Tatu não vê a lua..." – ela falasse.
Ou referia estórias, absurdas, vagas, tudo muito curto: da abelha que se voou
para uma nuvem; de uma porção de meninas e meninos sentados a uma mesa de
doces, comprida, comprida, por tempo que nem se acabava; ou da precisão de se
fazer lista das coisas todas que no dia por dia a gente vem perdendo. Só a pura
vida.
Em geral, porém, Nhinhinha, com seus nem quatro
anos, não incomodava ninguém, e não se fazia notada, a não ser pela perfeita
calma, imobilidade e silêncios. Nem parecia gostar ou desgostar especialmente
de coisa ou pessoa nenhuma. Botavam para ela a comida, ela continuava sentada,
o prato de folha no colo, comia logo a carne ou o ovo, os torresmos, o do que
fosse mais gostoso e atraente, e ia consumindo depois o resto, feijão, angu, ou
arroz, abóbora, com artística lentidão. De vê-la tão perpétua e imperturbada, a
gente se assustava de repente. – "Nhinhinha, que é que você está
fazendo?" – perguntava-se. E ela respondia, alongada, sorrida,
moduladamente: - "Eu... to-u... fa-a-zendo". Fazia vácuos. Seria
mesmo seu tanto tolinha?
Nada a intimidava. Ouvia o Pai querendo que a Mãe coasse um café forte,
e comentava, se sorrindo: - "Menino pidão... Menino pidão..."
Costumava também dirigir-se à Mãe desse jeito: - "Menina grande... Menina
grande..." Com isso Pai e Mãe davam de zangar-se. Em vão. Nhinhinha murmurava
só: - "Deixa... Deixa..." – suasibilíssima, inábil como uma flor.
Terceira Fase Modernista ou
Pós-Modernismo (1945-1960)
O regionalismo, uma
das mais férteis correntes de nossa literatura, voltou à tona na terceira fase
modernista. Trata-se, porém de um regionalismo de outra natureza. Primeiro,
pela violenta experimentação a que o narrador submete a linguagem, não só
incorporando termos regionais, como criando novas palavras e empregando uma
sintaxe inusitada. Segundo, porque a personagem regional – representada pelo
jagunço – ultrapassa a problemática decorrente do seu espaço físico ou social,
e passa a refletir sobre questões de natureza filosófica, questões eternas do
homem e independentes de tempo e lugar.
Contexto
Histórico:
1945-1960:
1945-
Término da Segunda Guerra Mundial; 1945 – Deposição de Getúlio Vargas; 1946 –
Início do processo de redemocratização do Brasil; 1955 – Eleição de Juscelino
Kubitschek; 1960 – Inauguração de Brasília.
Características
literárias da terceira geração modernista brasileira
- Retrocesso em
relação às conquistas de 1922.
- Volta ao passado:
revalorização da rima, da métrica, do vocabulário e das referências
mitológicas.
- Passadismo,
academicismo
OS
GRANDES CRIADORES DE 45, QUE RETOMAM E FECUNDAM AS EXPERIÊNCIAS DESENVOLVIDAS
NO PAÍS
Prosa: João Guimarães
Rosa e Clarice Lispector
Poesia: João Cabral
de Melo Neto
Literatura: constante
pesquisa de linguagem + senso de compromisso entre arte e realidade,
engajamento
Síntese de ambas as
gerações: experimentalismo + maturidade artística; nacionalismo + universalismo
Guimarães Rosa:
narrativas mitopoéticas que resgatam a sutileza do elo entre a fala e o texto
literário.
Clarice Lispector:
romances e contos introspectivos que dialogam com as fronteiras do indizível
João Cabral de Melo
Neto: poesia que associa compromisso social e precisão arquitetônica,
substantiva.
POESIA
DE 45
Concretismo:poesia composta pela
concretude das palavras, utilizadas em seu aspecto semântico, sonoro e visual.
Há também a proposta de acabar com a exclusividade do verso, valorização da
disposição gráfica das palavras e a valorização do espaço da página como
elemento de composição do poema.
Principais
representantes do Concretismo: Décio Pignatari, Augusto de Campos e Haroldo de
Campos.
Neoconcretismo: distingue-se do
Concretismo por atribuir ao leitor o papel de decodificador do texto. O
significado não estaria pronto sem a atuação do leitor. Defendia, portanto, a
arte participativa. Poema “não-objeto”: tinha um projeto de escrita, mas só se
realizava quando fosse lido.
Principal autor:
Ferreira Gullar: a poesia como afirmação da força da humanidade para resistir
às pressões sociais, econômicas e políticas que trazem sofrimento e desamparo
ao ser humano.
Tendências Literárias Contemporâneas
MARCAS DA PRODUÇÃO PÓS-MODERNA
O homem preso a seu tempo
O
desenvolvimento de novas tecnologias de reprodução e difusão da arte
(fotografia, rádio, cinema, televisão, vídeo, computador) fez com que a separação entre a arte considerada culta
e a denominada arte popular fosse desaparecendo. Alguns dos mais conhecidos
artistas deste século investiram na reprodução de autênticos símbolos da
sociedade de consumo.
Um dos objetivos da
arte pós-moderna é a sua comunicabilidade.
Por isso, ela promove a incorporação de todas as estéticas passadas,
combinando-as de modo inovador.
Da mesma forma como
diferentes estéticas e estilos foram misturados pelos pós-modernos, um outro
traço característico de sua produção é a intertextualidade:
textos escritos no passado são relidos a partir de uma visão paródica, muitas
vezes com objetivo irônico. Esse procedimento que já era utilizado pelos
autores da primeira geração modernista, faz do texto uma grande colagem de
outros textos.
O ser humano da
sociedade pós-moderna parece cultivar uma postura
niilista: ele não acredita em nada, não luta por nenhum ideal humanista,
tendo abandonado as ilusões que animaram a história em momentos anteriores (a
religião, o progresso, a consciência, a utopia) Seu grande “deus” é o consumo.
Vivendo em um mundo
sem conceitos ou modelos sólidos para orientar sua existência, o ser humano
pós-moderno é individualista:
volta-se cada vez mais para si mesmo, preocupado em satisfazer seus desejos e
alcançar suas metas.
A vida em uma
sociedade voltada para o consumo traz marcas inequívocas. A principal delas é a
tentativa incessante de fazer com que o ser humano relaxe, viva de maneira mais
descontraída. Para tanto, investe-se em humor
e no erotismo, como meios de
tornar menos dramático o contexto social delicado em que vivemos.
Os
rumos da prosa contemporânea
O conto:
textos curtos exploram
a semelhança entre a literatura a e notícia. Temas como a violência, problemas
psicológicos, religiosos, filosóficos e morais estão presentes nos contos por retratarem
a vida urbana nos grandes centros. Autores como Rubem Fonseca, Dalton Trevisan
E Luiz Vilela são exemplos de expoentes dessas temáticas.
O realismo
fantástico, tematizando os limites entre o possível e o impossível, o real e o
sobrenatural aparece na obra de Murilo Rubião e Moacyr Scliar. Os dramas dos
relacionamentos amorosos e do sofrimento gerado pelas desilusões amorosas
encontram eco na escrita de Caio Fernando Abreu, Lygia Fagundes Telles,
Fernando Sabino, entre outros.
Na crônica, gênero narrativo
que transita entre o conto e a notícia, tem como expoentes contemporâneos
Carlos Heitor Cony, Luis Fernando Veríssimo e Martha Medeiros.
No romance, há a produção de
gêneros mais populares, como a narrativa ficcional, a policial e a de ficção
científica. Um dos principais autores aqui é João Ubaldo Ribeiro, o qual
reflete a realidade regional, tal qual nas estéticas anteriores. A narrativa de
memória tem Rubem Fonseca, autor de Agosto, como destaque. A prosa intimista é
representada por Lya Luft, Nélida Piñon e Chico Buarque.
Aliteratura contemporânea,em muitas das suas manifestações, soará nas produções de hoje, como a tentativa de tradução das relações desconsoladas, da solidão humana e da desilusão existencial. Rubem Fonseca foi um dos primeiros escritores a trazer para a literatura o retrato brutal da violência que abala a sociedade brasileira. O mundo dos ricos sem escrúpulos, dos assassinos endinheirados, assim como o dos excluídos, dos marginais, foi incorporado aos contos e romances do autor, que traduziu numa linguagem coloquial e contundente a voz dos que, sob as condições de injustiça social ou sob pressões de uma vida sem sentido, se desumanizaram.
Passeio noturno I
Eu ia para casa quando um carro encostou no
meu, buzinando insistentemente. Uma mulher dirigia, abaixei os vidros do carro
para entender o que ela dizia. Uma lufada de ar quente entrou com o som da voz
dela: Não está mais conhecendo os outros? Eu nunca tinha visto aquela mulher.
Sorri polidamente. Outros carros buzinaram atrás dos nossos. A avenida
Atlântica, às sete horas da noite, é muito movimentada. A mulher, movendo-se no
banco do seu carro, colocou o braço direito para fora e disse, olha um
presentinho para você. Estiquei meu braço e ela colocou um papel na minha mão.
Depois arrancou com o carro, dando uma gargalhada. Guardei o papel no bolso.
1- Na introdução, você
expõe o assunto da proposta e apresenta uma ideia (ou mais - duas é um bom número) relacionada a ele e que será discutida
ao longo do texto?
2- No desenvolvimento do
texto, você seleciona (no mínimo) dois bons argumentos e os explica de modo
claro e convincente, sendo que para cada argumento você separa um parágrafo,
para tornar o pensamento organizado?
3- Você apresenta
conceitos, referências históricas, filosóficas, literárias ou dados
estatísticos para ajudar a dar força aos seus argumentos?
4- Ao final da escrita
do desenvolvimento você consegue apresentar uma ideia clara e coerente, que não
apresente dificuldades para seu leitor-universal?
5- As partes do texto
estão bem articuladas, bem interligadas?
6- A proposta de
intervenção demonstra que para resolver/minimizar o problema são necessárias
ações governamentais, de grupos da sociedade (família, ong’s, igrejas...) e
individuais?
7- As ações propostas
são objetivas e aplicáveis?
8- Como é o vocabulário
da sua produção?
( ) Há muitas repetições de termos ao longo
do texto. Há também erros no emprego de algumas palavras.
( ) Não há muitas repetições, mas o repertório
linguístico é pouco amplo para um aluno nesta etapa de formação.
( ) O vocabulário é simples, porém adequado
para a discussão feita.
( ) O vocabulário é rico e sofisticado, sem
ser pedante e artificial.
9- A estética do texto
está adequada quanto à:
( ) paragrafação ( )
ausência de rasuras ( ) legibilidade e tamanho da letra.
10- Você ofereceu seu
texto para que outra pessoa o leia, a fim de atestar a clareza da produção como
um todo?
1- Defina Pré-Modernismo e suas principais
características.
2- Registre quem são os principais autores e sua
respectivas obras, demonstrando como cada um deles contribui para retratar o
Brasil da virada do século.
3- Explique por que o Pré-Modernismo não é considerado
uma estética literária.
4- Descreva as características essenciais da poesia de
Augusto dos Anjos e explique por que sua obra é inovadora, singular dentro da
tradição literária do país.
5- Analise o poema a seguir ressaltando as características
da produção literária de Augusto dos Anjos.
Budismo Moderno
Tome, Dr., esta tesoura e…
corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração depois da morte?!
Ah! Um
urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contrato de bronca destra forte!
Dissolva-se,
portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;
Mas o
agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!
Carlos Drummond de Andrade, mineiro de Itabira radicado no Rio de Janeiro, é um autor de dimensão universal. Sua obra é das mais significativas, não apenas para a literatura brasileira, mas para toda a literatura de Língua Portuguesa.
As características de sua poesia podem ser analisadas como um processo. Inicialmente, é notável a influência da geração heroica do Modernismo, especialmente Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Manual Bandeira. Em 1930, Drummond publica o livro Alguma poesia. Neste volume, ficam claras a ironia, a coloquialidade, o prosaico e uma leitura não convencional do cotidiano. A visão de mundo do poeta aparece como um modo de propor uma reflexão subjetiva sobre temas amplos como ser brasileiro, o amor, a literatura, a política, a religião e impressões poéticas de viagens e cidades. Muitos poemas desta obra surgem de acontecimentos do cotidiano, aparentemente banais, mas que servem como reflexões poéticas e líricas sobre a vida. É também clara a filiação ao Modernismo, evidente com o uso do verso livre, uma sequência natural das rupturas estéticas e temáticas proporcionadas pelo movimento de 1922.
Nos livros seguintes, Brejo das Almas, Sentimento do Mundo, José e A rosa do povo, o poeta busca um aprofundamento desta subjetividade. A ironia e o humor vão se diluindo em uma visão de relativa amargura que culmina em um clima de denúncia social, próprio do intervalo entre 1930 e 1945. No Brasil, estava em curso a Era Vargas e a ditadura do Estado Novo. Na Europa, acontecia a ascensão de Hitler e do nazi-fascismo, a revolução comunista e a escalada de violência e dos conflitos políticos que culminaram na Segunda Guerra Mundial.
Este espírito da época reflete-se na poesia de Drummond. Nota-se a presença da angústia sobre o destino da humanidade, a incerteza sobre a efemeridade da vida, a dúvida sobre o caráter benevolente do ser humano e uma relativa obscuridade. Por meio de um tom social, o poeta expõe os absurdos do "mundo, vasto mundo", onde as rimas não são propriamente soluções, mas expressões, ora irônicas, ora angustiadas, do espírito de seu tempo.
A poesia de Drummond assume, após este período, um viés metafísico e existencialista. O questionamento passa a ser a própria condição humana e o poeta resgata as marcas irônicas e as preocupações formais que marcaram sua obra. Ao final de sua vida, na passagem dos anos 1970-1980, produziu uma obra mais sentimental, menos preocupada com as inovações formais ou as angústias metafísicas do início.
ANÁLISE "POEMA DE SETE FACES"
Poema de sete faces
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu
coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus,
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
Esse poema, que abre o primeiro livro de Drummond, pode ser lido como uma apresentação que o autor faz de sua poesia. Em sete estrofes (as sete faces) são apresentados sete aspectos da personalidade do eu-lírico.
O poema apresenta, em tom de ironia amargurada, uma profissão de fé do poeta, que expõe sua posição em relação ao mundo.
Logo na primeira estrofe, a face revelada é a de um gauche, palavra francesa que indica um indivíduo com dificuldades de adaptação, de caminho tortuoso e opções equivocadas, marginal inadaptado desde o início da vida. Isso pode ser comparado com a visão de mundo angustiada e irônica, mas sempre sensível, que marcou a obra poética de Drummond.
Na segunda estrofe, há a insinuação do erotismo como uma busca desenfreada, um fim em si mesmo, que acaba se tornando um elemento de tristeza, que impede a tarde de se tornar azul, brilhante, por conta da vinculação aos desejos incontidos.
Na terceira "face" do poema, o eu-lírico remete à vida frenética e sem descanso das grandes cidades, com seus bondes cheios de pernas, idas e vindas sem sentido aparente - note que são "pernas" e não "rostos", o que remete à coletivização e à desumanização das pessoas em sua busca pela sobrevivência. O coração do poeta questiona o motivo de tanta correria desenfreada, mas seus olhos, analíticos e frios, resignam-se em apenas observar, como quem se resigna diante de um fato sobre o qual não se tem influência.
Na quarta estrofe, os "olhos" do eu-lírico observam um homem que se apresenta com uma aura aparente de seriedade, simplicidade e força. No entanto, podemos interpretar o bigode como uma máscara social que torna o homem comum um ser com dificuldades de convivência, e o faz fechado em si mesmo. Mesmo quando o homem tem um rosto e não apenas uma perna, sua identidade também se dilui na busca pelas aparências, mais importante do que a essência de seu espírito.
Na quinta estrofe, observamos um retorno ao problema do modo tortuoso que o eu-lírico vive a vida. Este trecho indica uma dificuldade de adaptação e faz referência à passagem bíblica em que Cristo pergunta a Deus por que o havia abandonado. A inadaptação, aliada às contradições do gauche, deixam evidente a angústia desta condição, que leva o eu-lírico a se identificar com o sofrimento angustiado da expiação de Cristo.
A sexta "face" pode ser interpretada como uma crítica ao modo parnasiano de fazer poético - a busca pela rima perfeita que não produz soluções à angústia do ser nem ao problema da tortuosidade e da inadaptação, mas apenas resolve o problema do poema, da arte distanciada da realidade.
Finalmente, a sétima estrofe revela o motivo de tanta digressão, por parte do eu-lírico: a distorção se apresenta em tom de confidência, como se a visão angustiada e também irônica presente no poema fosse fruto de uma comoção causada pelo excesso de bebida e de luar.
Clarice
Lispector nasceu em 10 de dezembro de 1920 em Tchetchelnik, Ucrânia. Quando
tinha cerca de dois meses de idade, seus pais migraram para o Brasil, terra que
considerava como sua verdadeira pátria. Em 1924, a família mudou-se para o
Recife, onde iniciou seus estudos. Por volta dos oito anos, Clarice perdeu sua
mãe. Três anos depois, a família muda-se para o Rio de Janeiro.
Ingressa
em 1939 na Faculdade de Direito e, no ano seguinte, publica seu primeiro conto,
Triunfo, em uma revista. Forma-se em
1943 e se casa no mesmo ano com o diplomata Maury Gurgel Valente, com quem teve
dois filhos. Durante seus anos de casada, mora em diversos países pela Europa e
nos Estados Unidos.
Em 1944,
publica seu primeiro romance, Perto do
coração selvagem, vindo a ganhar o Prêmio Graça Aranha, da Academia
Brasileira de Letras, no ano seguinte. Separa-se de seu marido em 1959 e volta
para o Rio de Janeiro com seus dois filhos. No ano seguinte, publica seu
primeiro livro de contos, Laços de
família.
Em 1967,
um cigarro provoca um grande incêndio em sua casa e Clarice fica gravemente
ferida, correndo risco inclusive de ter sua mão direita amputada. Porém, após
se recuperar, continua com sua carreira literária publicando diversos livros.
Publica
em 1977 seu último livro A hora da
estrela, vindo a ser internada pouco tempo depois com câncer. A escritora
vem a falecer no dia 9 de dezembro do mesmo ano, véspera de seu aniversário de
57 anos.
Suas
principais obras são:
"Perto do coração selvagem" (1944), "Laços de família"
(1960), "A maçã no escuro" (1961), "A legião estrangeira"
(1964), "A paixão segundo G.H." (1964), "Felicidade
clandestina" (1971), "Água viva" (1973) e "A hora da
estrela" (1977).
Felicidade
clandestina:
Considerações
sobre o conto e a escrita clariceana
O
conceito de crueldade, quando aplicado a uma criança, sempre choca
e provoca mal estar. É como se julgássemos impossível que alguém muito jovem
estivesse corrompido e apresentasse comportamento iníquo.Crianças trazem sempre
aos nossos olhos a imagem da inocência, da credulidade, e imaginá-las sendo
maldosas fere profundamente nossa crença no ser humano, no mundo e na
racionalidade.
Com parte dos contos rememorando sua meninice em Recife, a leitura de Felicidade
Clandestina, no livro homônimo de Clarice Lispector, nos fere um pouco, ao
mesmo tempo em que nos obriga a rever conceitos eexpectativas sobre a infância.
Clarice mostra-se hábil artesã, tece um enredo que delicia ao mesmo tempo em que
machuca: a história da menina pobre, que não pode comprar livros, e sua
completa submissão à impiedade da outra criança, que se compraz com seu desejo
expresso de ler um determinado livro, comove e revolta.
A paixão revelada, e por isso
mesmo escravizadora e humilhante, já foi vivida por todos em algum momento da
vida. O sentimento de estar disponível para outrem, sujeitado ao seu poder, e,
principalmente, o fato de ser exatamente uma criança exercendo tal poder sobre outra, com certeza nos remete à infância, a
alguns momentos da vida em que cada um de nós sentiu e sofreu a situação de um
lado, ou, o que até mesmo pode ser pior, de outro.
Oestudo e análise do ser humano: conhecer-se para ser
Através de um mergulho no
universo interior das personagens, Clarice traz à tona temas existencialistas e
as contradições, dúvidas, inquietudes do ser humano. É importante ressaltar que
a autora conduz o sujeito (as personagens) para um inevitável isolamento.
Assim, em toda a obra de Clarice Lispector teremos personagens desconfiadas, inadaptadas ao meio em que vivem, com temores
e inquietações.Como a preocupação de Clarice é com a personagem em si e sua
viagem ao interior do ser humano, o cenário físico ao redor é muitas vezes
deixado de lado. A não ser que o cenário interfira diretamente ou ativamente na
história. Por isso, dificilmente encontramos passagem descritiva nos contos de
Clarice. Além disso, a escritora utiliza uma linguagem subjetiva, abusando de
adjetivos, metáforas e comparações. Do ponto de vista formal, a narrativa
utiliza o estilo circular, que consiste na repetição sistemática de palavras,
expressões ou frases, para conseguir um efeito enfático.
Clarice Lispector
emprega o processo narrativo do fluxo da
consciência, que é o rompimento dos
limites de espaço e de tempo. O pensamento fica solto. Pequenos fatos
exteriores provocam uma longa viagem abstrata das ideias, sem se basear numa
estrutura sequencial da narração.
Ela faz os
personagens viverem o processo chamado de “epifania”,
ou seja, revelação. Em outras palavras, de repente, diante de ocorrências
mínimas, o personagem se descobre e vê revelada uma realidade mais profunda.
Muitas vezes, ele mesmo não consegue perceber com clareza que realidade é essa,
porém sua vida ou sua visão mudam.A menina que se torna “amante” do livro é um
exemplo dessa situação epifânica.A condição de mulher faz Clarice muito
sensível aos problemas das pessoas carentes. A marca registrada de seus
personagens é serem tipos desprezados aos olhos da sociedade (meninas, velhas,
adolescentes), mas ricos em sua interioridade.
Ainda integra a
característica de mulher-autora a visão
do nascimento da mulher na menina. São numerosas as personagens-meninas
que, de uma forma ou de outra, se tornam adultas a partir de experiências
aparentemente corriqueiras.
Toda essa exaustiva
pesquisa do interior do ser humano – a subjetividade procurando se orientar
envolvida pela objetividade – pode passar despercebida ao leitor desatento.
Isso porque os textos são muito pobres de fatos, aliás, propositalmente pobres.
Cenas comuns, desenhadas sem rebuscamentos, mas com bastante precisão de
detalhes, podem esconder a profundidade do conteúdo analítico. As palavras não
são raras, os aspectos descritos e narrados parecem irrelevantes, a sintaxe não
se complica. O campo da linguagem fica livre para o leitor acompanhar os
pensamentos que movem as intenções dos personagens à procura de se ajustarem
com eles mesmos.
Análise do conto
O conto Felicidade Clandestina da autora Clarice
Lispector narra a história de uma menina que tem como objeto de sua felicidade
a posse de um livro. Como não possui recursos financeiros para tal aquisição, a
menina vive a intensa espera do livro, prometido por outra, que aproveita da
situação para subjugar a menina. Até o dia em que a espera chega ao fim, graças
à descoberta da mãe da possuidora do livro que entrega sem prazo de volta o objeto
tão ansiado. A menina, que esperançosamenteaguardava, descobre então a
felicidade ao possuir o livro em mãos, saboreando lentamente o prazer de tê-lo.
As personagens do livro não são nomeadas, o que
permite o processo da catarse e a
identificação do leitor que se envolve com o enredo do conto. Para facilitar a
identificação das personagens, neste estudo será usado como referência
personagem 1 para a filha do dono da livraria, possuidora do livro; e
personagem 2, para a narradora- personagem, que está à espera do livro.
A temática
principal do conto está expressa no título: Felicidade Clandestina. A
felicidade para a personagem 2 está contida no simples prazer de possuir o
livro. Apesar de ser uma felicidade passageira ou ilegal, a busca por essa
felicidade caracteriza o motivo da narração. Segundo as palavras dessa
personagem: “A felicidade sempre iria ser clandestina para mim” (Lispector,
1971). Ela descreve a felicidade como clandestina devido à emoção que sente ao
receber um objeto que, de fato, nunca seria seu, mas que lhe “embriagava” a
alma.
O conto, segundo alguns estudiosos, é um texto
autobiográfico de Clarice Lispector. A autora transpõe para a personagem 2 a
paixão pela leitura e, por outro lado, mostra a desvalorização, praticada pela
personagem 1 que, mesmo tendo fácil acesso à literatura, não desfruta desse
sentimento. Percebe-se claramente essa situação no seguinte trecho: “Mas
possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava” (Lispector, 1971). Observa-se também uma alusão a Monteiro
Lobato, que escreveu e estimulou a literatura infantil. O livro citado no conto
e tão cobiçado pela personagem 2 é um livro de sua autoria: As Reinações de
Narizinho.
A estrutura do
conto
Felicidade Clandestina caracteriza-se por tratar de
uma narrativa ficcional curta, com espaço, tempo e personagens reduzidos.
Clarice é uma autora que muito ousou em relação à
narração. Sua narrativa normalmente não possui início, meio e fim sendo
centrada na imaginação da personagem aliada ao fluxo de consciência e/ou epifania. Observamos o fluxo de
consciência na personagem 2 com a utilização do discurso indireto livre logo no início do conto, exemplificado no
seguinte trecho: “Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era
puravingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos
odiar” (Lispector, 1971). Notamos que o
pensamento da menina é descrito sem que haja uma referência clara no texto, podendo
passar despercebida na ausência de uma leitura mais atenta.
A complicação
da narrativa se dá no momento em que a personagem 1 decide emprestar o
livro à personagem 2. Exercendo a partir daí uma “tortura chinesa” (Lispector,
1971) sobre a menina. O clímax da
narrativa, momento de maior tensão no conto, ocorre quando a mãe da personagem
1 aparece na história, causando a mudança de rumo da narrativa, ela interfere
na história proporcionando a felicidade da personagem 2 e interrompendo a
vingança da personagem 1.
O desenlace
narrativo é representado pelo alcance da felicidade da personagem 2, quando
ela consegue, finalmente, receber o livro e por tempo indeterminado que é, para
ela, “tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer”
(Lispector, 1971). A passagem expressa o
amor e a importância da atividade literária na vida de uma menina. Era esta
a porta de entrada para um mundo de fantasias e maravilhas que não eram
conhecidas no seu dia a dia. O conto termina com uma frase que representa uma
alegoria da felicidade clandestina para a menina: “Não era mais uma menina com um
livro: era uma mulher com o seu amante” (Lispector, 1971). Essa frase sintetiza
o paradoxo do desejo pela busca do prazer e o medo do oculto que envolve uma
paixão.
1- O tempo e o espaço na narrativa
O tempo e o espaço na
narrativa são influenciados pelo fluxo de consciência da personagem,
característica comum à autora. O tempo obedece às lembranças sucessivas da narradora, em alguns momentos ela
antecipa fatos que revelam o que se desenvolverá ao longo da narrativa.
Observa-se a presença de termos que indicam as marcas temporais, por exemplo:
no dia seguinte, diariamente, até que um dia. No entanto, a narradora não
consegue mensurar durante quanto tempo a personagem 1 consegue exercer sua
vingança. A impressão deixada é que se transcorre um longo período, pois para a
narradora cada segundo longe do objeto desejado seria uma eternidade. Em dado
momento ela cita: “dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira”
(Lispector, 1971) relatando hiperbolicamente sua espera. Porém, o fato dessas
marcas temporais se referirem a dias, revela-nos que essa espera foi relativamente
curta, de no máximo, algumas semanas. A sensaçãoimensurável de tempo aparece
também quando a menina recebe o livro, ela não percebe o tempo passar entre a
casa da menina e a sua, pois agora pode ficar o tempo que desejar com o livro.
No final do conto a menina se transfigura em uma mulher, remetendo a passagem
de tempo com o amadurecimento da personagem. Esta passagem de tempo configura-se
por perduração, que é a passagem de tempo psicológica, não pode ser demarcada
no texto, pois é algo subjetivo.
O espaço físico é a cidade de Recife, o que é detectado logo no
início da narrativa, lugar onde a autora Clarice Lispector foi criada na infância:
“Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que
vistas” (Lispector, 1971). O ambiente, que alude ao espaço carregado de
significados ou espaço social, é percebido no discurso da narradora ao
mencionar que a personagem 1 morava numa casa e não em um sobrado, que era um
tipo de residência popular bastante comum no início da urbanização, ela também
não autoriza a entrada da personagem 2 em sua casa, por esta ser pobre. A
narradora cita que vai literalmente correndo à casa da outra personagem, o que
mostra-nos a proximidade entre as residências das personagens: “No dia seguinte
fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e
sim numa casa. Não me mandou entrar” (Lispector, 1971).
2- As personagens na ficção
As personagens do século XX
avançam bastante em relação aos modelos propostos por Aristóteles e Horácio. As
personagens seguiam paradigmas pré-estabelecidos limitando-se a reprodução do
ser humano, traziam consigo situações características arrematadas no final por
um preceito de cunho moral. Com o decorrer do tempo as personagens ganham foco
nas narrativas. Apresenta-se ao leitor o universo psicológico, social,
político, de diferentes tipos de personagens dentro do verossímil, mas exibindo
toda a complexidade do ser humano. As narrativas de Clarice Lispector seguem a
linha de autores como Virgínia Woolf, Franz Kafka e James Joyce, que muito
inovaram em suas obras, adentrando no universo psicológico das personagens. As
características físicas são um elo para alcançar as características
psicológicas das personagens.
O conto Felicidade
Clandestina é iniciado com a descrição física da personagem 1 e apresentação de
sua personalidade. Percebe-se o contraste físico e social entre as personagens,
sendo a primeira marcada por ser “gorda, baixa e de cabelos excessivamente
crespos, meio arruivados” (Lispector, 1971) e de condições financeiras mais
elevadas. A personagem 2 é inserida inicialmente dentro de um grupo de garotas,
pois refere-se a “nós” na apresentação da narrativa. O que indica que havia um
vínculo de amizade entre essas personagens que, provavelmente, se conheciam da
escola ou moravam no mesmo bairro. Essas são descritas como: “imperdoavelmente
bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres” (Lispector, 1971), motivo do
ódio e das maldades da personagem 1.
No conto são apresentadas
três personagens. As personagens principais participam ativamente do enredo da
narrativa, presentes no desenvolvimento da trama. Há ainda uma personagem
secundária, sem tanta participação, mas que exerce um papel decisivo. A
personagem protagonista é a menina que narra o conto e está à espera do livro.
É uma espécie de heroína do enredo, está em primeiro plano e é através dela que
conhecemos os elementos da narrativa. A menina que concebe a vingança e a
“tortura” psicológica na protagonista é a antagonista. Ela representa uma vilã
do conto, criando obstáculos para a realização da felicidade da protagonista.
Estas representam as personagens principais do conto. A personagem secundária
aparece uma só vez, mas desempenha um papel significativo; é a personagem
auxiliar ou árbitro. Ela é a mãe da antagonista e aparece no conto para
resolução da narrativa.
Quanto às ações que
praticam na narrativa, as personagens principais podem ser divididas em planas
e esféricas, ou redondas, segundo a definição de Forster. A antagonista é
definida sob o critério de personagem plana, desde o início da narrativa é
descrito seu caráter de vilã, que não evolui ao longo do conto. Enquanto a
protagonista é uma personagem esférica. Ela aparece timidamente no início do
conto como uma personagem passiva que sofrerá gradativamente os efeitos da
vingança, aceitando a humilhação pela qual é submetida na esperança de receber
o livro. A personagem reacenderá na narrativa ao ter a posse do livro. O
sentimento de felicidade expande a personagem evoluindo na narrativa e
adquirindo outra conotação, ela agora é mais que uma menina com um livro, ela é
uma mulher com seu amante.
3- O foco narrativo
O narrador
cumpre importante função na narrativa. Pode aparecer em 1° pessoa e participar
como observador ou personagem. É uma criação do autor e depende do foco que o
autor decide empregar a sua narrativa. Por isso pode aparecer tipos diversos de
narrador.
No conto é
apresentada a narrativa em primeira pessoa pelo ponto de vista da protagonista.
A menina que aguarda o livro nos conta a história oferecendo primeiro a
descrição da personagem 1, para permitir ao leitor formar uma opinião da
personagem. Essa descrição física e psicológica da antagonista pode influenciar
o leitor na sua interpretação, pois o ponto de vista oferecido é de apenas uma
personagem e esta enfatiza as características físicas e morais que atribuem uma
carga negativa à antagonista.
A protagonista
dialoga com o leitor através da utilização de interrogações e respostas para
situar o leitor no enredo do conto, por exemplo:“Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo
tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode
ter a ousadia de querer. Como contar o que se seguiu?”(Lispector, 1971).
De certa forma,
a protagonista incita o leitor a participar do conto e seguir o rumo da
narrativa.O foco da narrativa encontra-se na felicidade da protagonista. Toda a
trama se desenvolve em torno da busca dessa felicidade, apesar dos obstáculos
que a personagem encontra no caminho. O encontro com a felicidade para a menina
se torna algo clandestino porque o sentimento de felicidade não lhe é próprio,
a instabilidade da posse do objeto lhe enche de felicidade, mas pode
desaparecer a qualquer momento. A protagonista desfruta delicadamente de cada
momento com o livro, pois como ela descreve: “era um livro para se ficar
vivendo com ele, comendo- o, dormindo-o” (Lispector, 1971).
4- A felicidade clandestina
O conto de Clarice
Lispector nos traz a perspectiva da felicidade vivida por uma menina: a
clandestinidade. Essa característica de ilegalidade representa uma oposição ao
que é o sentimento de felicidade, mas no conto alia-se a todas as dualidades
pela qual vive a protagonista.
Em Felicidade Clandestina
observa-se a reificação do livro para uma menina: o livro era mais que um
simples objeto, era a realização de sua felicidade. Antes mesmo de receber em
mãos o livro, a possibilidade de tê-lo proporcionava verdadeiros momentos de
êxtase à protagonista. Sua esperança era tão intensa que mesmo diante da recusa
da personagem 1, ela permanecia impávida. Mas a dificuldade em recebê-lo começa
aos poucos a desanimar e entristecer a personagem 2. Seu cansaço é percebido
nas olheiras que se formam, provavelmente devido às noites sem dormir na ânsia
de receber o livro. Quando finalmente a protagonista consegue ter em mãos
aquele que seria o motivo de sua felicidade, e por tempo indeterminado,
conseguimos perceber como se expressa essa felicidade clandestina.
A felicidade não era um
sentimento presente facilmente na vida da protagonista, que era uma menina
pobre e convivia com as dificuldades de uma vida simples. O fato de não poder
comprar o livro demonstra essa situação, por isso a protagonista aceita a
humilhação em busca do objeto desejado.
Ser feliz para a
protagonista era algo ilegal e oculto. O sentimento de felicidade se misturava
ao perigo, à ambição, ao desejo pelo proibido e até à humilhação pela qual se
submetia. Após receber o livro, ela cria diversas dificuldades para
“surpreender-se” com o sentimento de felicidade. Em certo momento narra: “Eu
vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim.” (Lispector, 1971). Esse orgulho
era a realização do sentimento, motivado pelo objeto possuído e o pudor estava
presente porque a menina sentia “vergonha” de estar feliz com algo que não era
seu, essa felicidade podia acabar a qualquer instante.
O conto termina com uma
frase que conota o valor clandestino
da felicidade para a protagonista: “era uma mulher com seu amante”, demonstra
também a permanência da clandestinidade em sua vida, que como ela já havia
presumido, a felicidade sempre estaria presente de modo ilegal em sua vida, em
pequenas “doses” de perigo. É a metáfora do perigo causado pela imensidão de
desejo. O sentimento é vivido ocultamente, às escondidas, mas causa um êxtase
de prazer. Torna-se um ciclo vicioso para a personagem, por mais que ela tente
escapar, está cada vez mais envolvida nessa trama.
É assim que Clarice nos
apresenta a felicidade. A trama do conto nos deixa fascinados, inclusive por
expressar a paixão pela atividade literária na vida de uma criança. Essa
felicidade clandestina aparece para nósleitores de Clarice. A autora consegue
nos fazer experimentar a felicidade de ler e se envolver com o enredo de suas
histórias, o que nos deixa “em êxtase puríssimo” (Lispector, 1971) e a
clandestinidade por saber que aquilo não é real, é apenas fruto de uma autora
espetacular que consegue penetrar profundamente nas estranhezas do ser humano.
Clarice tem a capacidade de
nos deixar assim: como uma mulher com seu amante ou uma criança descobrindo o
mundo. Na verdade, somos todos personagens seus em busca de nossa felicidade
clandestina.