A literatura contemporânea, em muitas das suas manifestações, soará nas produções de hoje, como a tentativa de tradução das relações desconsoladas, da solidão humana e da desilusão existencial. Rubem Fonseca foi um dos primeiros escritores a trazer para a literatura o retrato brutal da violência que abala a sociedade brasileira. O mundo dos ricos sem escrúpulos, dos assassinos endinheirados, assim como o dos excluídos, dos marginais, foi incorporado aos contos e romances do autor, que traduziu numa linguagem coloquial e contundente a voz dos que, sob as condições de injustiça social ou sob pressões de uma vida sem sentido, se desumanizaram.
Passeio noturno I
Chegando em casa, fui ver o que estava escrito. Ângela, 287-3594. À noite, saí,
como sempre faço. No dia seguinte telefonei. Uma mulher atendeu. Perguntei se
Ângela estava. Não estava. Havia ido à aula. Pela voz, via-se que devia ser a
empregada. Perguntei se Ângela era estudante. Ela é artista, respondeu a
mulher. Liguei mais tarde. Ângela atendeu. Sou aquele cara do Jaguar preto, eu
disse. Você sabe que eu não consegui identificar o seu carro? Apanho você às
nove horas para jantarmos, eu disse. Espera aí, calma. O que foi que você
pensou de mim? Nada. Eu laço você na rua e você não pensou nada? Não. Qual é o
seu endereço? Ela morava na Lagoa, na curva do Cantagalo. Um bom lugar. Estava
na porta me esperando. Perguntei onde queria jantar. Ângela respondeu que em
qualquer restaurante, desde que fosse fino. Ela estava muito diferente. Usava
uma maquiagem pesada, que tornava o seu rosto mais experiente, menos humano.
Quando telefonei da primeira vez disseram que você tinha ido à aula. Aula de
quê?, eu disse. Impostação de voz. Tenho uma filha que também estuda impostação
de voz. Você é atriz, não é? Sou. De cinema. Eu gosto muito de cinema. Quais
foram os filmes que você fez? Só fiz um, que está agora em fase de montagem. O
nome é meio bobo, As virgens desvairadas, não é um filme muito bom, mas estou
começando, posso esperar, tenho só vinte anos. Na semi-escuridão do carro ela
parecia ter vinte e cinco. Parei o carro na Bartolomeu Mitre e fomos andando a
pé na direção do restaurante Mário, na rua Ataulfo de Paiva. Fica muito cheio
em frente ao restaurante, eu disse. O porteiro guarda o carro, você não sabia?,
ela disse. Sei até demais. Uma vez ele amassou o meu. Quando entramos, Ângela
lançou um olhar desdenhoso sobre as pessoas que estavam no restaurante. Eu
nunca havia ido àquele lugar. Procurei ver algum conhecido. Era cedo e havia
poucas pessoas. Numa mesa um homem de meia-idade com um rapaz e uma moça.
Apenas três outras mesas estavam ocupadas, com casais entretidos em suas
conversas. Ninguém me conhecia. Ângela pediu um martíni. Você não bebe?, Ângela
perguntou. As vezes. Agora diga, falando sério, você não pensou nada mesmo,
quando eu te passei o bilhete? Não. Mas se você quer, eu penso agora, eu disse.
Pensa, Ângela disse. Existem duas hipóteses. A primeira é que você me viu no
carro e se interessou pelo meu perfil. Você é uma mulher agressiva, impulsiva e
decidiu me conhecer. Uma coisa instintiva. Apanhou um pedaço de papel arrancado
de um caderno e escreveu rapidamente o nome e o telefone. Aliás quase não deu
para eu decifrar o nome que você escreveu. E a segunda hipótese? Que você é uma
puta e sai com uma bolsa cheia de pedaços de papel escritos com o seu nome e o
telefone. Cada vez que você encontra um sujeito num carro grande, com cara de
rico e idiota, você dá o número para ele. Para cada vinte papelinhos
distribuídos, uns dez telefonam para você. E qual a hipótese que você escolhe?,
Ângela disse. A segunda. Que você é uma puta, eu disse. Ângela ficou bebendo o
martíni como se não tivesse ouvido o que eu havia dito. Bebi minha água
mineral. Ela olhou para mim, querendo demonstrar sua superioridade, levantando
a sobrancelha - era má atriz, via-se que estava perturbada - e disse: você
mesmo reconheceu que era um bilhete escrito às pressas dentro do carro, quase
ilegível. Uma puta inteligente prepararia todos os bilhetinhos em casa, dessa
maneira, antes de sair, para enganar os seus fregueses, eu disse. E se eu
jurasse a você que a primeira hipótese é a verdadeira. Você acreditaria? Não.
Ou melhor, não me interessa, eu disse. Como que não interessa? Ela estava
intrigada e não sabia o que fazer. Queria que eu dissesse algo que a ajudasse a
tomar uma decisão. Simplesmente não interessa. Vamos jantar, eu disse. Com um
gesto chamei o maitre. Escolhemos a comida. Ângela tomou mais dois martínis.
Nunca fui tão humilhada em minha vida. A voz de Ângela soava ligeiramente
pastosa. Eu se fosse você não bebia mais, para poder ficar em condições de
fugir de mim, na hora em que for preciso, eu disse. Eu não quero fugir de você,
disse Ângela esvaziando de um gole o que restava na taça. Quero outro. Aquela
situação, eu e ela dentro do restaurante, me aborrecia. Depois ia ser bom. Mas
conversar com Ângela não significava mais nada para mim, naquele momento
interlocutório. O que é que você faz? Controlo a distribuição de tóxicos na
zona sul, eu disse. Isso é verdade? Você não viu o meu carro? Você pode ser um
industrial. Escolhe a sua hipótese. Eu escolhi a minha, eu disse. Industrial.
Errou. Traficante. E não estou gostando desse facho de luz sobre a minha
cabeça. Me lembra as vezes em que fui preso. Não acredito numa só palavra do
que você diz. Foi a minha vez de fazer uma pausa. Você tem razão. É tudo
mentira. Olha bem para o meu rosto. Vê se você consegue descobrir alguma coisa,
eu disse. Ângela tocou de leve no meu queixo, puxando meu rosto para o raio de
luz que descia do teto e me olhou intensamente. Não vejo nada. Teu rosto parece
o retrato de alguém fazendo uma pose, um retrato antigo, de um desconhecido,
disse Ângela. Ela também parecia o retrato antigo de um desconhecido. Olhei o
relógio. Vamos embora?, eu disse. Entramos no carro. Às vezes a gente pensa que
uma coisa vai dar certo e dá errado, disse Ângela. O azar de um é a sorte do
outro, eu disse. A lua punha na lagoa uma esteira prateada que acompanhava o
carro. Quando eu era menino e viajava de noite a lua sempre me acompanhava,
varando as nuvens, por mais que o carro corresse. Vou deixar você um pouco
antes da sua casa, eu disse. Por quê? Sou casado. O irmão da minha mulher mora
no teu edifício. Não é aquele que fica na curva? Não gostaria que ele me visse.
Ele conhece o meu carro. Não há outro igual no Rio. A gente não vai se ver
mais?, Ângela perguntou. Acho difícil. Todos os homens se apaixonam por mim.
Acredito. E você não é lá essas grandes coisas. O teu carro é melhor do que você,
disse Ângela. Um completa o outro, eu disse. Ela saltou. Foi andando pela
calçada, lentamente, fácil demais, e ainda por cima mulher, mas eu tinha que ir
logo para casa, já estava ficando tarde. Apaguei as luzes e acelerei o carro.
Tinha que bater e passar por cima. Não podia correr o risco de deixá-la viva.
Ela sabia muita coisa a meu respeito, era a única pessoa que havia visto o meu
rosto, entre todas as outras. E conhecia também o meu carro. Mas qual era o
problema? Ninguém havia escapado. Bati em Ângela com o lado esquerdo do
pára-lama, jogando o seu corpo um pouco adiante, e passei, primeiro com a roda
da frente - e senti o som surdo da frágil estrutura do corpo se esmigalhando -
e logo atropelei com a roda traseira, um golpe de misericórdia, pois ela já
estava liquidada, apenas talvez ainda sentisse um distante resto de dor e
perplexidade. Quando cheguei em casa minha mulher estava vendo televisão, um
filme colorido, dublado. Hoje você demorou mais. Estava muito nervoso?, ela
disse. Estava. Mas já passou. Agora vou dormir. Amanhã vou ter um dia terrível
na companhia.
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