PAES 2013 –"Felicidade
Clandestina" análise literária do conto clariceano
Sobre
Clarice Lispector
Ingressa
em 1939 na Faculdade de Direito e, no ano seguinte, seu primeiro conto, Triunfo, em uma revista. Forma-se em
1943 e se casa no mesmo ano com o diplomata Maury Gurgel Valente, com quem teve
dois filhos. Durante seus anos de casada, mora em diversos países pela Europa e
nos Estados Unidos.
Em 1944,
publica seu primeiro romance, Perto do
coração selvagem, vindo a ganhar o Prêmio Graça Aranha, da Academia
Brasileira de Letras, no ano seguinte. Separa-se de seu marido em 1959 e volta
para o Rio de Janeiro com seus dois filhos. No ano seguinte, publica seu
primeiro livro de contos, Laços de
família.
Em 1967,
um cigarro provoca um grande incêndio em sua casa e Clarice fica gravemente
ferida, correndo risco inclusive de ter sua mão direita amputada. Porém, após
se recuperar, continua com sua carreira literária publicando diversos livros.
Publica
em 1977 seu último livro A hora da
estrela, vindo a ser internada pouco tempo depois com câncer. A escritora
vem a falecer no dia 9 de dezembro do mesmo ano, véspera de seu aniversário de
57 anos.
Suas
principais obras são:
"Perto do coração selvagem" (1944), "Laços de família"
(1960), "A maçã no escuro" (1961), "A legião estrangeira"
(1964), "A paixão segundo G.H." (1964), "Felicidade
clandestina" (1971), "Água viva" (1973) e "A hora da
estrela" (1977).
Felicidade
Clandestina, a obra
Lançado inicialmente em 1971,
"Felicidade Clandestina" reúne diversos textos de Clarice Lispector
que foram escritos em diversas fases da vida da autora. Os textos reunidos
nessa obra podem mais facilmente ser classificados como “contos”, mas como Clarice não se prendia a convenções de gêneros,
todo o conjunto reunido em Felicidade
Clandestina migra de gênero em
gênero, ora aproximando-se do conto,
ora aproximando-se da crônica, ou por vezes sendo quase um ensaio. Muitos
dos textos reunidos neste livro foram publicados como crônicas no Jornal do Brasil, para onde Clarice
escrevia semanalmente de 1967 a 1972.
Assim como o conto que dá título
ao livro, muitos dos textos apresentam algo de autobiográfico, trazendo recordações da infância da autora em
Recife, alguma personagem que marcou seu passado, etc. Através da recordação de
fatos do seu passado, Clarice Lispector busca nos contos fazer uma investigação psicológica de autoanálise.
Felicidade
clandestina:
Considerações sobre o conto e a escrita
clariceana
O
conceito de crueldade, quando aplicado a uma criança, sempre choca
e provoca mal estar. É como se julgássemos impossível que alguém muito jovem
estivesse corrompido e apresentasse comportamento iníquo. Crianças trazem sempre aos nossos olhos a imagem da inocência, da
credulidade, e imaginá-las sendo maldosas fere profundamente nossa crença no
ser humano, no mundo e na racionalidade.
Com parte dos contos rememorando sua meninice em Recife, a leitura de Felicidade
Clandestina, no livro homônimo de Clarice Lispector, nos fere um pouco, ao
mesmo tempo em que nos obriga a rever conceitos e expectativas sobre a
infância. Clarice mostra-se hábil artesã, tece um enredo que delicia ao mesmo
tempo em que machuca: a história da menina pobre, que não pode comprar livros,
e sua completa submissão à impiedade da outra criança, que se compraz com seu
desejo expresso de ler um determinado livro, comove e revolta.
A paixão revelada, e por isso
mesmo escravizadora e humilhante, já foi vivida por todos em algum momento da
vida. O sentimento de estar disponível para outrem, sujeitado ao seu poder, e,
principalmente, o fato de ser exatamente uma criança exercendo tal poder sobre outra, com certeza nos remete à infância, a
alguns momentos da vida em que cada um de nós sentiu e sofreu a situação de um
lado, ou, o que até mesmo pode ser pior, de outro.
O estudo e análise do ser humano: conhecer-se para ser
Através de um mergulho no
universo interior das personagens, Clarice traz à tona temas existencialistas e
as contradições, dúvidas, inquietudes do ser humano. É importante ressaltar que
a autora conduz o sujeito (as personagens) para um inevitável isolamento.
Assim, em toda a obra de Clarice Lispector teremos personagens desconfiadas, inadaptadas ao meio em que vivem, com temores
e inquietações. Como a preocupação
de Clarice é com a personagem em si e sua viagem ao interior do ser humano, o
cenário físico ao redor é muitas vezes deixado de lado. A não ser que o cenário
interfira diretamente ou ativamente na história. Por isso, dificilmente
encontramos passagem descritiva nos contos de Clarice. Além disso, a escritora
utiliza uma linguagem subjetiva, abusando de adjetivos, metáforas e
comparações. Do ponto de vista formal, a narrativa utiliza o estilo circular,
que consiste na repetição sistemática de palavras, expressões ou frases, para
conseguir um efeito enfático.
Clarice Lispector
emprega o processo narrativo do fluxo da
consciência, que é o rompimento dos
limites de espaço e de tempo. O pensamento fica solto. Pequenos fatos
exteriores provocam uma longa viagem abstrata das ideias, sem se basear numa
estrutura sequencial da narração.
Ela faz os
personagens viverem o processo chamado de “epifania”,
ou seja, revelação. Em outras palavras, de repente, diante de ocorrências
mínimas, o personagem se descobre e vê revelada uma realidade mais profunda.
Muitas vezes, ele mesmo não consegue perceber com clareza que realidade é essa,
porém sua vida ou sua visão mudam. A
menina que se torna “amante” do livro é um exemplo dessa situação epifânica. A
condição de mulher faz Clarice muito sensível aos problemas das pessoas
carentes. A marca registrada de seus personagens é serem tipos desprezados aos
olhos da sociedade (meninas, velhas, adolescentes), mas ricos em sua
interioridade.
Ainda integra a
característica de mulher-autora a visão
do nascimento da mulher na menina. São numerosas as personagens-meninas
que, de uma forma ou de outra, se tornam adultas a partir de experiências
aparentemente corriqueiras.
Toda essa exaustiva
pesquisa do interior do ser humano – a subjetividade procurando se orientar
envolvida pela objetividade – pode passar despercebida ao leitor desatento.
Isso porque os textos são muito pobres de fatos, aliás, propositalmente pobres.
Cenas comuns, desenhadas sem rebuscamentos, mas com bastante precisão de
detalhes, podem esconder a profundidade do conteúdo analítico. As palavras não
são raras, os aspectos descritos e narrados parecem irrelevantes, a sintaxe não
se complica. O campo da linguagem fica livre para o leitor acompanhar os
pensamentos que movem as intenções dos personagens à procura de se ajustarem
com eles mesmos.
Análise do conto
Em Felicidade Clandestina a narradora
recorda sua infância no Recife. A introdução do conto apresenta as duas
protagonistas da narrativa, salientando os aspectos negativos de uma, que serão
bem mais evidentes que os da outra: “Ela era gorda, baixa, sardenta e de
cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme...” Mas,
apesar de todos esses defeitos, ela era agraciada com algo que a tornava
privilegiada: “possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria
de ter: um pai dono de livraria”. E isto a tornava superior a todas suas
amigas. A outra, apesar de ser como as demais meninas: “bonitinhas, esguias,
altinhas, de cabelos livres”, não tem acesso aos livros. Por isso, ela, que é a narradora em 1ª pessoa, relata a sua
experiência de amá-los e não poder desfrutá-los.
A filha do dono da
livraria não aproveitava os livros e, segundo a narradora, nem as outras
meninas, uma vez que ela, até mesmo nos aniversários, não tinha a gentileza de
dar um livro de presente: “em vez de pelo menos um livrinho barato”. Nesse
ponto chegava a ser irônica, pois seu presente favorito para as outras eram
cartões postais da loja do pai, como para mostrar-lhes que o mundo dos livros,
para elas, era inacessível, sempre ficariam distantes dele, enquanto ela
detinha o poder de possuí-los.
Por isso, ela vivia
pedindo-os emprestados àquela colega filha de dono de livraria. Essa colega não
valorizava a leitura e inconscientemente se sentia inferior às outras,
sobretudo à narradora.
Em relação a esse comportamento da menina que
lhe dava cartões postais da livraria do pai, a narradora era indignada: “ela
nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de
paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas”.
Por entender que possuir livros
significava ter poder sobre os que não tinham, a filha do dono da livraria
resolveu que às outras não daria esse gostinho de querer mudar esta situação.
Pois é preciso entender que para essas meninas leitoras o seu adentramento na
ambiente dos livros seria uma opção pela liberdade “a ponto de entendê-lo
enquanto relação amorosa”.
Essa menina era mesmo cruel e com a narradora exerceu com calma ferocidade o seu sadismo, tanto que a pobre nem percebia, tal era a sua ânsia de ler: “continuava a implorar-lhe emprestado os livros que ela não lia”. Até que chegou o dia em que começou a exercer sobre a outra uma tortura chinesa, a informou que possuía As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, que para esta “era um livro grosso, [...], era um livro para se ficar vivendo, comendo-o, dormindo-o”.
Essa menina era mesmo cruel e com a narradora exerceu com calma ferocidade o seu sadismo, tanto que a pobre nem percebia, tal era a sua ânsia de ler: “continuava a implorar-lhe emprestado os livros que ela não lia”. Até que chegou o dia em que começou a exercer sobre a outra uma tortura chinesa, a informou que possuía As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, que para esta “era um livro grosso, [...], era um livro para se ficar vivendo, comendo-o, dormindo-o”.
Para a nossa
narradora, os livros lhe davam “um lar permanente”, e um lar que ela “podia
habitar exatamente como queria, a qualquer momento.” Porém, para ela, o livro estava
longe de suas posses. Então, foi logo pedindo emprestado o tal, a outra pediu
que passasse por sua casa no dia seguinte e ela o emprestaria.
Para a narradora, o livro é o objeto do seu desejo e para este não há limites: “Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam”. Ao chegar o tão esperado dia seguinte, foi à casa da outra “literalmente correndo”. Mal sabia a ingênua menina que a colega tinha um plano diabólico. A dona do livro, quando a narradora chegou até sua casa e pediu-o, disse que o havia emprestado à outra menina, que ela voltasse no dia seguinte. Ficou boquiaberta, mas seu desejo era tal que, a esperança invadiu novamente seu ser e ela andou pelas ruas pulando, sonhando: “guiava-me a promessa do livro”. No dia seguinte, outra desculpa, o livro ainda não havia sido devolvido. E assim se seguiram os dias. O terror por não ter o livro para ler e a outra se divertindo em alimentar uma esperança era uma cena digna de pena: “eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer”.
Para a narradora, o livro é o objeto do seu desejo e para este não há limites: “Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam”. Ao chegar o tão esperado dia seguinte, foi à casa da outra “literalmente correndo”. Mal sabia a ingênua menina que a colega tinha um plano diabólico. A dona do livro, quando a narradora chegou até sua casa e pediu-o, disse que o havia emprestado à outra menina, que ela voltasse no dia seguinte. Ficou boquiaberta, mas seu desejo era tal que, a esperança invadiu novamente seu ser e ela andou pelas ruas pulando, sonhando: “guiava-me a promessa do livro”. No dia seguinte, outra desculpa, o livro ainda não havia sido devolvido. E assim se seguiram os dias. O terror por não ter o livro para ler e a outra se divertindo em alimentar uma esperança era uma cena digna de pena: “eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer”.
Então todos os dias, invariavelmente,
ela passava na casa e o livro não aparecia, sob a alegação de que já fora
emprestado. Esse suplício durou muito tempo. A sua relação com o livro é tal,
que todo esse sofrimento começou a
afetar o seu físico: “eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras
se cavando sob os meus olhos espantados”. Tudo isso porque o ato da leitura
para ela era uma necessidade, padecia com o não-ler, tinha uma fome que
precisava ser saciada, pela chance que a outra poderia lhe dar, ao
emprestar-lhe o livro tão esperado.
Chegou finalmente o dia da redenção da narradora, quando todos seus males seriam sarados. Certo dia, a mãe da colega cruel interveio na conversa das duas e descobriu que sua filha estava enganando a outra menina: “mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!”
Chegou finalmente o dia da redenção da narradora, quando todos seus males seriam sarados. Certo dia, a mãe da colega cruel interveio na conversa das duas e descobriu que sua filha estava enganando a outra menina: “mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!”
E essa descoberta não era a pior, mas
sim a descoberta, horrorizada, da filha que tinha. A narradora seria agora
agraciada pelo tão almejado objeto do desejo: “E você fica com o livro por
quanto tempo quiser”. Esse “por quanto tempo quiser” significava muito mais do
que dar-lhe o livro, ela teria posse sobre o seu objeto do desejo. Toda a sua espera,
sua insistência, finalmente era recompensada.
Para a narradora foi impossível
descrever-nos o que sucedeu assim que recebeu o livro na mão. Ela só lembrava
que “o segurava firme com as duas mãos, comprimindo contra o peito.” Imaginamos
que agiu assim por temer que algo ou alguém a separasse dele. Esqueceu até
mesmo quanto tempo levou até chegar à casa. Porém, isso não importava, o que
valia a pena era sentir que o livro estava com ela: “meu peito estava quente,
meu coração pensativo”. Isso indica um sentido
diferente para a leitura.
Para o leitor do conto, a menina que
tanto queria o livro ao conseguir possuí-lo, devorá-lo-ia em pouco tempo. Mas
não foi isso o que aconteceu. Ela chegou em casa e não começou a ler: “fingia
que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter”. Algum tempo depois, leu
algumas partes, que considerou maravilhosas, fechou-o novamente, indo fazer
outras coisas, fingia que não sabia onde guardava o livro, achava-o, lia
novamente.
Essa foi a felicidade clandestina da menina.
Fazia questão de “esquecer” que estava com o livro para depois ter a “surpresa”
de achá-lo.
A narradora “criava as mais falsas
dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade”. A felicidade
em ter acesso aos livros, à leitura, que para ela era clandestina, pois não
possuía livros e nem condições financeiras que possibilitassem um maior contato
com eles. Esta “felicidade clandestina” significa que ela está muito feliz por
realizar algo para ela ilegal, pois o fato de possuir um livro, era, muitas
vezes, na sociedade antiga, um privilégio dos mais favorecidos economicamente e
continua sendo até hoje. Assim, podemos afirmar que a personagem narradora
quebrou os paradigmas dessa diferença social, e por isso, cometeu grave delito,
com sua insistência e amor aos livros. Conseguiu ter acesso ao seu objeto
desejado.
Ao realizar algo proibido, a
narradora sabe que deveria ter orgulho, pois conseguiu alcançar seu objetivo, e
pudor, pois poderia perder o que conseguiu, além disso, estava vivendo no ar.
Agora ela “não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu
‘amante’”.
O ponto central desse texto é o conceito de “felicidade”. Nele, a
escritora parece se questionar “afinal,
o que é felicidade?”. A menina presente no conto parece conhecer bem o dito
popular “felicidade é bom, mas dura pouco”, uma vez que ela se utiliza de todas
as formas para prolongar seu sentimento de felicidade. Dessa forma, sua felicidade aparece como um sentimento
“clandestino”, já que nem ela mesma pode se conscientizar de sua própria
felicidade para que esse sentimento não acabe. Conclui-se, portanto, que a felicidade deve ser descoberta em todos os
momentos e nas coisas mais simples, inclusive no ato de ler.