14 de abr. de 2016

Análise conto Felicidade Clandestina, Clarice Lispector













“Felicidade Clandestina"
Análise literária


Sobre Clarice Lispector
Clarice Lispector nasceu em 10 de dezembro de 1920 em Tchetchelnik, Ucrânia. Quando tinha cerca de dois meses de idade, seus pais migraram para o Brasil, terra que considerava como sua verdadeira pátria. Em 1924, a família mudou-se para o Recife, onde iniciou seus estudos. Por volta dos oito anos, Clarice perdeu sua mãe. Três anos depois, a família muda-se para o Rio de Janeiro.
Ingressa em 1939 na Faculdade de Direito e, no ano seguinte, publica seu primeiro conto, Triunfo, em uma revista. Forma-se em 1943 e se casa no mesmo ano com o diplomata Maury Gurgel Valente, com quem teve dois filhos. Durante seus anos de casada, mora em diversos países pela Europa e nos Estados Unidos.
Em 1944, publica seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, vindo a ganhar o Prêmio Graça Aranha, da Academia Brasileira de Letras, no ano seguinte. Separa-se de seu marido em 1959 e volta para o Rio de Janeiro com seus dois filhos. No ano seguinte, publica seu primeiro livro de contos, Laços de família.
Em 1967, um cigarro provoca um grande incêndio em sua casa e Clarice fica gravemente ferida, correndo risco inclusive de ter sua mão direita amputada. Porém, após se recuperar, continua com sua carreira literária publicando diversos livros.
Publica em 1977 seu último livro A hora da estrela, vindo a ser internada pouco tempo depois com câncer. A escritora vem a falecer no dia 9 de dezembro do mesmo ano, véspera de seu aniversário de 57 anos.
Suas principais obras são: "Perto do coração selvagem" (1944), "Laços de família" (1960), "A maçã no escuro" (1961), "A legião estrangeira" (1964), "A paixão segundo G.H." (1964), "Felicidade clandestina" (1971), "Água viva" (1973) e "A hora da estrela" (1977).

Felicidade clandestina:
Considerações sobre o conto e a escrita clariceana
O conceito de crueldade, quando aplicado a uma criança, sempre choca e provoca mal estar. É como se julgássemos impossível que alguém muito jovem estivesse corrompido e apresentasse comportamento iníquo.Crianças trazem sempre aos nossos olhos a imagem da inocência, da credulidade, e imaginá-las sendo maldosas fere profundamente nossa crença no ser humano, no mundo e na racionalidade.
Com parte dos contos rememorando sua meninice em Recife, a leitura de Felicidade Clandestina, no livro homônimo de Clarice Lispector, nos fere um pouco, ao mesmo tempo em que nos obriga a rever conceitos eexpectativas sobre a infância. Clarice mostra-se hábil artesã, tece um enredo que delicia ao mesmo tempo em que machuca: a história da menina pobre, que não pode comprar livros, e sua completa submissão à impiedade da outra criança, que se compraz com seu desejo expresso de ler um determinado livro, comove e revolta.
paixão revelada, e por isso mesmo escravizadora e humilhante, já foi vivida por todos em algum momento da vida. O sentimento de estar disponível para outrem, sujeitado ao seu poder, e, principalmente, o fato de ser exatamente uma criança exercendo tal poder sobre outra, com certeza nos remete à infância, a alguns momentos da vida em que cada um de nós sentiu e sofreu a situação de um lado, ou, o que até mesmo pode ser pior, de outro.

Oestudo e análise do ser humano: conhecer-se para ser
Através de um mergulho no universo interior das personagens, Clarice traz à tona temas existencialistas e as contradições, dúvidas, inquietudes do ser humano. É importante ressaltar que a autora conduz o sujeito (as personagens) para um inevitável isolamento. Assim, em toda a obra de Clarice Lispector teremos personagens desconfiadas, inadaptadas ao meio em que vivem, com temores e inquietações.Como a preocupação de Clarice é com a personagem em si e sua viagem ao interior do ser humano, o cenário físico ao redor é muitas vezes deixado de lado. A não ser que o cenário interfira diretamente ou ativamente na história. Por isso, dificilmente encontramos passagem descritiva nos contos de Clarice. Além disso, a escritora utiliza uma linguagem subjetiva, abusando de adjetivos, metáforas e comparações. Do ponto de vista formal, a narrativa utiliza o estilo circular, que consiste na repetição sistemática de palavras, expressões ou frases, para conseguir um efeito enfático. 
Clarice Lispector emprega o processo narrativo do fluxo da consciência, que é o rompimento dos limites de espaço e de tempo. O pensamento fica solto. Pequenos fatos exteriores provocam uma longa viagem abstrata das ideias, sem se basear numa estrutura sequencial da narração.
Ela faz os personagens viverem o processo chamado de “epifania”, ou seja, revelação. Em outras palavras, de repente, diante de ocorrências mínimas, o personagem se descobre e vê revelada uma realidade mais profunda. Muitas vezes, ele mesmo não consegue perceber com clareza que realidade é essa, porém sua vida ou sua visão mudam.A menina que se torna “amante” do livro é um exemplo dessa situação epifânica.A condição de mulher faz Clarice muito sensível aos problemas das pessoas carentes. A marca registrada de seus personagens é serem tipos desprezados aos olhos da sociedade (meninas, velhas, adolescentes), mas ricos em sua interioridade.
Ainda integra a característica de mulher-autora a visão do nascimento da mulher na menina. São numerosas as personagens-meninas que, de uma forma ou de outra, se tornam adultas a partir de experiências aparentemente corriqueiras.
Toda essa exaustiva pesquisa do interior do ser humano – a subjetividade procurando se orientar envolvida pela objetividade – pode passar despercebida ao leitor desatento. Isso porque os textos são muito pobres de fatos, aliás, propositalmente pobres. Cenas comuns, desenhadas sem rebuscamentos, mas com bastante precisão de detalhes, podem esconder a profundidade do conteúdo analítico. As palavras não são raras, os aspectos descritos e narrados parecem irrelevantes, a sintaxe não se complica. O campo da linguagem fica livre para o leitor acompanhar os pensamentos que movem as intenções dos personagens à procura de se ajustarem com eles mesmos.

Análise do conto
O conto Felicidade Clandestina da autora Clarice Lispector narra a história de uma menina que tem como objeto de sua felicidade a posse de um livro. Como não possui recursos financeiros para tal aquisição, a menina vive a intensa espera do livro, prometido por outra, que aproveita da situação para subjugar a menina. Até o dia em que a espera chega ao fim, graças à descoberta da mãe da possuidora do livro que entrega sem prazo de volta o objeto tão ansiado. A menina, que esperançosamenteaguardava, descobre então a felicidade ao possuir o livro em mãos, saboreando lentamente o prazer de tê-lo.
As personagens do livro não são nomeadas, o que permite o processo da catarse e a identificação do leitor que se envolve com o enredo do conto. Para facilitar a identificação das personagens, neste estudo será usado como referência personagem 1 para a filha do dono da livraria, possuidora do livro; e personagem 2, para a narradora- personagem, que está à espera do livro.
A temática principal do conto está expressa no título: Felicidade Clandestina. A felicidade para a personagem 2 está contida no simples prazer de possuir o livro. Apesar de ser uma felicidade passageira ou ilegal, a busca por essa felicidade caracteriza o motivo da narração. Segundo as palavras dessa personagem: “A felicidade sempre iria ser clandestina para mim” (Lispector, 1971). Ela descreve a felicidade como clandestina devido à emoção que sente ao receber um objeto que, de fato, nunca seria seu, mas que lhe “embriagava” a alma.
O conto, segundo alguns estudiosos, é um texto autobiográfico de Clarice Lispector. A autora transpõe para a personagem 2 a paixão pela leitura e, por outro lado, mostra a desvalorização, praticada pela personagem 1 que, mesmo tendo fácil acesso à literatura, não desfruta desse sentimento. Percebe-se claramente essa situação no seguinte trecho: “Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria. Pouco aproveitava” (Lispector, 1971). Observa-se também uma alusão a Monteiro Lobato, que escreveu e estimulou a literatura infantil. O livro citado no conto e tão cobiçado pela personagem 2 é um livro de sua autoria: As Reinações de Narizinho.

A estrutura do conto
Felicidade Clandestina caracteriza-se por tratar de uma narrativa ficcional curta, com espaço, tempo e personagens reduzidos.
Clarice é uma autora que muito ousou em relação à narração. Sua narrativa normalmente não possui início, meio e fim sendo centrada na imaginação da personagem aliada ao fluxo de consciência e/ou epifania. Observamos o fluxo de consciência na personagem 2 com a utilização do discurso indireto livre logo no início do conto, exemplificado no seguinte trecho: “Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era puravingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar”  (Lispector, 1971). Notamos que o pensamento da menina é descrito sem que haja uma referência clara no texto, podendo passar despercebida na ausência de uma leitura mais atenta.
A complicação da narrativa se dá no momento em que a personagem 1 decide emprestar o livro à personagem 2. Exercendo a partir daí uma “tortura chinesa” (Lispector, 1971) sobre a menina. O clímax da narrativa, momento de maior tensão no conto, ocorre quando a mãe da personagem 1 aparece na história, causando a mudança de rumo da narrativa, ela interfere na história proporcionando a felicidade da personagem 2 e interrompendo a vingança da personagem 1.
O desenlace narrativo é representado pelo alcance da felicidade da personagem 2, quando ela consegue, finalmente, receber o livro e por tempo indeterminado que é, para ela, “tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer” (Lispector, 1971). A passagem expressa o amor e a importância da atividade literária na vida de uma menina. Era esta a porta de entrada para um mundo de fantasias e maravilhas que não eram conhecidas no seu dia a dia. O conto termina com uma frase que representa uma alegoria da felicidade clandestina para a menina: “Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante” (Lispector, 1971). Essa frase sintetiza o paradoxo do desejo pela busca do prazer e o medo do oculto que envolve uma paixão.

1- O tempo e o espaço na narrativa
O tempo e o espaço na narrativa são influenciados pelo fluxo de consciência da personagem, característica comum à autora. O tempo obedece às lembranças sucessivas da narradora, em alguns momentos ela antecipa fatos que revelam o que se desenvolverá ao longo da narrativa. Observa-se a presença de termos que indicam as marcas temporais, por exemplo: no dia seguinte, diariamente, até que um dia. No entanto, a narradora não consegue mensurar durante quanto tempo a personagem 1 consegue exercer sua vingança. A impressão deixada é que se transcorre um longo período, pois para a narradora cada segundo longe do objeto desejado seria uma eternidade. Em dado momento ela cita: “dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira” (Lispector, 1971) relatando hiperbolicamente sua espera. Porém, o fato dessas marcas temporais se referirem a dias, revela-nos que essa espera foi relativamente curta, de no máximo, algumas semanas. A sensaçãoimensurável de tempo aparece também quando a menina recebe o livro, ela não percebe o tempo passar entre a casa da menina e a sua, pois agora pode ficar o tempo que desejar com o livro. No final do conto a menina se transfigura em uma mulher, remetendo a passagem de tempo com o amadurecimento da personagem. Esta passagem de tempo configura-se por perduração, que é a passagem de tempo psicológica, não pode ser demarcada no texto, pois é algo subjetivo.
O espaço físico é a cidade de Recife, o que é detectado logo no início da narrativa, lugar onde a autora Clarice Lispector foi criada na infância: “Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas” (Lispector, 1971). O ambiente, que alude ao espaço carregado de significados ou espaço social, é percebido no discurso da narradora ao mencionar que a personagem 1 morava numa casa e não em um sobrado, que era um tipo de residência popular bastante comum no início da urbanização, ela também não autoriza a entrada da personagem 2 em sua casa, por esta ser pobre. A narradora cita que vai literalmente correndo à casa da outra personagem, o que mostra-nos a proximidade entre as residências das personagens: “No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar” (Lispector, 1971).

2- As personagens na ficção
As personagens do século XX avançam bastante em relação aos modelos propostos por Aristóteles e Horácio. As personagens seguiam paradigmas pré-estabelecidos limitando-se a reprodução do ser humano, traziam consigo situações características arrematadas no final por um preceito de cunho moral. Com o decorrer do tempo as personagens ganham foco nas narrativas. Apresenta-se ao leitor o universo psicológico, social, político, de diferentes tipos de personagens dentro do verossímil, mas exibindo toda a complexidade do ser humano. As narrativas de Clarice Lispector seguem a linha de autores como Virgínia Woolf, Franz Kafka e James Joyce, que muito inovaram em suas obras, adentrando no universo psicológico das personagens. As características físicas são um elo para alcançar as características psicológicas das personagens.
O conto Felicidade Clandestina é iniciado com a descrição física da personagem 1 e apresentação de sua personalidade. Percebe-se o contraste físico e social entre as personagens, sendo a primeira marcada por ser “gorda, baixa e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados” (Lispector, 1971) e de condições financeiras mais elevadas. A personagem 2 é inserida inicialmente dentro de um grupo de garotas, pois refere-se a “nós” na apresentação da narrativa. O que indica que havia um vínculo de amizade entre essas personagens que, provavelmente, se conheciam da escola ou moravam no mesmo bairro. Essas são descritas como: “imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres” (Lispector, 1971), motivo do ódio e das maldades da personagem 1.
No conto são apresentadas três personagens. As personagens principais participam ativamente do enredo da narrativa, presentes no desenvolvimento da trama. Há ainda uma personagem secundária, sem tanta participação, mas que exerce um papel decisivo. A personagem protagonista é a menina que narra o conto e está à espera do livro. É uma espécie de heroína do enredo, está em primeiro plano e é através dela que conhecemos os elementos da narrativa. A menina que concebe a vingança e a “tortura” psicológica na protagonista é a antagonista. Ela representa uma vilã do conto, criando obstáculos para a realização da felicidade da protagonista. Estas representam as personagens principais do conto. A personagem secundária aparece uma só vez, mas desempenha um papel significativo; é a personagem auxiliar ou árbitro. Ela é a mãe da antagonista e aparece no conto para resolução da narrativa.
Quanto às ações que praticam na narrativa, as personagens principais podem ser divididas em planas e esféricas, ou redondas, segundo a definição de Forster. A antagonista é definida sob o critério de personagem plana, desde o início da narrativa é descrito seu caráter de vilã, que não evolui ao longo do conto. Enquanto a protagonista é uma personagem esférica. Ela aparece timidamente no início do conto como uma personagem passiva que sofrerá gradativamente os efeitos da vingança, aceitando a humilhação pela qual é submetida na esperança de receber o livro. A personagem reacenderá na narrativa ao ter a posse do livro. O sentimento de felicidade expande a personagem evoluindo na narrativa e adquirindo outra conotação, ela agora é mais que uma menina com um livro, ela é uma mulher com seu amante.
3- O foco narrativo
O narrador cumpre importante função na narrativa. Pode aparecer em 1° pessoa e participar como observador ou personagem. É uma criação do autor e depende do foco que o autor decide empregar a sua narrativa. Por isso pode aparecer tipos diversos de narrador.
No conto é apresentada a narrativa em primeira pessoa pelo ponto de vista da protagonista. A menina que aguarda o livro nos conta a história oferecendo primeiro a descrição da personagem 1, para permitir ao leitor formar uma opinião da personagem. Essa descrição física e psicológica da antagonista pode influenciar o leitor na sua interpretação, pois o ponto de vista oferecido é de apenas uma personagem e esta enfatiza as características físicas e morais que atribuem uma carga negativa à antagonista.
A protagonista dialoga com o leitor através da utilização de interrogações e respostas para situar o leitor no enredo do conto, por exemplo:“Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer. Como contar o que se seguiu?”(Lispector, 1971).
De certa forma, a protagonista incita o leitor a participar do conto e seguir o rumo da narrativa.O foco da narrativa encontra-se na felicidade da protagonista. Toda a trama se desenvolve em torno da busca dessa felicidade, apesar dos obstáculos que a personagem encontra no caminho. O encontro com a felicidade para a menina se torna algo clandestino porque o sentimento de felicidade não lhe é próprio, a instabilidade da posse do objeto lhe enche de felicidade, mas pode desaparecer a qualquer momento. A protagonista desfruta delicadamente de cada momento com o livro, pois como ela descreve: “era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo- o, dormindo-o” (Lispector, 1971).

4- A felicidade clandestina
O conto de Clarice Lispector nos traz a perspectiva da felicidade vivida por uma menina: a clandestinidade. Essa característica de ilegalidade representa uma oposição ao que é o sentimento de felicidade, mas no conto alia-se a todas as dualidades pela qual vive a protagonista.
Em Felicidade Clandestina observa-se a reificação do livro para uma menina: o livro era mais que um simples objeto, era a realização de sua felicidade. Antes mesmo de receber em mãos o livro, a possibilidade de tê-lo proporcionava verdadeiros momentos de êxtase à protagonista. Sua esperança era tão intensa que mesmo diante da recusa da personagem 1, ela permanecia impávida. Mas a dificuldade em recebê-lo começa aos poucos a desanimar e entristecer a personagem 2. Seu cansaço é percebido nas olheiras que se formam, provavelmente devido às noites sem dormir na ânsia de receber o livro. Quando finalmente a protagonista consegue ter em mãos aquele que seria o motivo de sua felicidade, e por tempo indeterminado, conseguimos perceber como se expressa essa felicidade clandestina.
A felicidade não era um sentimento presente facilmente na vida da protagonista, que era uma menina pobre e convivia com as dificuldades de uma vida simples. O fato de não poder comprar o livro demonstra essa situação, por isso a protagonista aceita a humilhação em busca do objeto desejado.
Ser feliz para a protagonista era algo ilegal e oculto. O sentimento de felicidade se misturava ao perigo, à ambição, ao desejo pelo proibido e até à humilhação pela qual se submetia. Após receber o livro, ela cria diversas dificuldades para “surpreender-se” com o sentimento de felicidade. Em certo momento narra: “Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim.” (Lispector, 1971). Esse orgulho era a realização do sentimento, motivado pelo objeto possuído e o pudor estava presente porque a menina sentia “vergonha” de estar feliz com algo que não era seu, essa felicidade podia acabar a qualquer instante.
O conto termina com uma frase que conota o valor clandestino da felicidade para a protagonista: “era uma mulher com seu amante”, demonstra também a permanência da clandestinidade em sua vida, que como ela já havia presumido, a felicidade sempre estaria presente de modo ilegal em sua vida, em pequenas “doses” de perigo. É a metáfora do perigo causado pela imensidão de desejo. O sentimento é vivido ocultamente, às escondidas, mas causa um êxtase de prazer. Torna-se um ciclo vicioso para a personagem, por mais que ela tente escapar, está cada vez mais envolvida nessa trama.
É assim que Clarice nos apresenta a felicidade. A trama do conto nos deixa fascinados, inclusive por expressar a paixão pela atividade literária na vida de uma criança. Essa felicidade clandestina aparece para nósleitores de Clarice. A autora consegue nos fazer experimentar a felicidade de ler e se envolver com o enredo de suas histórias, o que nos deixa “em êxtase puríssimo” (Lispector, 1971) e a clandestinidade por saber que aquilo não é real, é apenas fruto de uma autora espetacular que consegue penetrar profundamente nas estranhezas do ser humano.

Clarice tem a capacidade de nos deixar assim: como uma mulher com seu amante ou uma criança descobrindo o mundo. Na verdade, somos todos personagens seus em busca de nossa felicidade clandestina.

27 de mar. de 2016

Análise literária do conto "Negrinha", Monteiro Lobato

Sobre o autor:
José Bento de MONTEIRO LOBATO – Romancista, contista e jornalista brasileiro, nasceu em 18 de abril de 1882, em Taubaté, São Paulo, e faleceu em 4 de julho de 1948, no mesmo Estado.
Bacharel em Direito, exerceu o cargo de Promotor Público, em São Paulo.
Monteiro Lobato é um dos escritores brasileiros mais lidos e populares. Suas obras têm sido traduzidas para quase todas as línguas e continua inspirando sentimentos nacionalistas e, principalmente, a defesa do petróleo e minérios radioativos.Foi o criador da literatura infantil no país e a sua produção, nesse gênero, é vultosa e importante. Tornou-se autor de uma extensa produção na área da literatura infantil, que inclui clássicos do gênero, como O Marquês de Rabicó (1922), Reinações de Narizinho (1931), Memórias de Emília (1936), Histórias de Tia Nastácia (1937) e O Sítio do Pica-pau Amarelo (1939). Sua obra voltada para os adultos inclui diversas histórias escritas em estilo leve e gracioso e são povoadas por tipos humanos interessantes.
Sua característica principal são o regionalismo e o conteúdo crítico. Aliando a crítica de costumes à criação de personagens como o caboclo Jeca-tatu, o escritor descreve a decadência econômica e social do vale do Paraíba paulista do início do século. O Sítio do Pica-pau Amarelo foi transformado na década de 1970 em uma série infantil de TV, de muito sucesso até hoje.

Contexto histórico e literário: Pré-Modernismo
O início do século XX representou para a nação brasileira uma fase de enormes transformações, inclusive no terreno artístico. O período conhecido como Belle époque influenciou a recém-instaurada República a implantar no cenário já controverso (pós-escravidão e seus contrastes) um processo de “europeização”, na tentativa de embelezar o país, especialmente São Paulo e Rio de Janeiro. Tal processo trouxe a retirada das classes mais pobres para regiões periféricas das cidades, o que causou, obviamente, muita revolta popular.
Além das mudanças sociais, a visão Realista-Naturalista permanece, mas a linguagem afrouxa os laços parnasianos, aderindo a um falar mais coloquial, próximo à fala cotidiana. As vanguardas europeias começavam a ganhar público entre os artistas brasileiros. Essa miscelânea de fatores acontecendo em um breve espaço de tempo é que conhecemos como Pré-Modernismo, fase intermediária até a implantação das ideias modernistas com a Semana de Arte Moderna de 1922.
            Os escritores desse período procuravam apresentar o Brasil e seus contrastes, especialmente os regionais. No caso do autor de “Negrinha”, Monteiro Lobato, retratou os costumes interioranos do caboclo do Vale do Paraíba, sua miséria, hábitos e “causos”.
Uma breve polêmica quando da exposição de Anitta Malfatti, em 1917, deixou transparecer os ideais tradicionalistas de um Lobato que não aceitava a arte brasileira como imitadora de modelos estrangeiros. O autor cria que o Brasil basta a si mesmo, com seu povo, sua gente, seus costumes.

Análise do conto NEGRINHA: metonímia da vida escrava

Publicado em 1920, o conto demonstra como a escravidão, extinta na lei em 1888, ainda imprimia hábitos e preconceitos na sociedade do período. O início do século apresentava-se como uma etapa de grandes inovações e modernização no território brasileiro, no entanto, o preconceito racial permanecia.
Tipo de narrador: 3ª pessoa, onisciente. Uso dos discursos direto, indireto e indireto livre. A voz do narrador prevalece na obra. Apesar da 3ª pessoa, esse narrador mostra-se compadecido para com os sofrimentos da pobre menininha protagonista da narrativa.
Tendo a escravidão como tema, o conto nos apresenta uma mulatinha escura, de sete anos, órfã desde os quatro. Nascera na senzala e vivia pelos cantos da cozinha. Residia sob os “cuidados” de D. Inácia, uma senhora rica e gorda, que não possuía apego por crianças nem tinha filhos. Na verdade, a pobre menina vivia pela casa como um animal sem dono e incômodo.
Usando o tempo cronológico na maior parte das vezes, o narrador, de modo irônico e objetivo, demonstra como, em um espaço universal (não é citado o nome do local onde se passam os fatos) muitas “negrinhas”, órfãos da escravidão, permanecem sofrendo os vestígios do passado escravagista.
Negrinha é maltratada por D. Inácia. A ex-senhora de escravos, no entanto, posa de mulher caridosa, recebendo do padre da região os elogios pelas ações de amor para com o próximo.

Negrinha X D. Inácia:
Negrinha:não possuía nome, era amedrontada, subserviente, pobre, marginalizada, condicionada ao sofrimento herdado dos antepassados escravizados. Negrinha é uma metonímia daqueles que, no processo pós-escravidão, ainda sentem os resultados da condição do negro, ser desprezado e judiado. A menininha era tratada como bicho, recebia apelidos depreciativos e servia como forma de sua patroa descarregar suas tensões por meio dos diversos castigos aplicados à pequena.
D. Inácia: representa os que detêm o poder, é rica, preconceituosa, impaciente, agressiva. Diante das instituições religiosas apresenta-se como mulher virtuosa, que se compadece dos pobres e injustiçados; na vida íntima é cruel, má. Nunca pudera ter filhos; parece com tal informação do narrador que D. Inácia encarna o masculino rude e amargo, sem a doçura e feminilidade típico do sexo que dá a luz.

Fatos marcantes:
A alegria de Negrinha ao ver o cuco: o cuco do relógio, única diversão da menininha, é uma representatividade da liberdade, afinal é um animal que voa, desprendido dos terrores dos pés no chão, da vida real. Negrinha não possuía tal liberdade, nem podia nem conhecia sonhos... Além disso, o cuco marca a passagem do tempo de tristezas da menina, pois ela só se diverte quando o objeto badala as horas.
O castigo do ovo: nessa passagem, mesmo a menina tendo razão, afinal, a criada nova roubara “um pedacinho de carne que se vinha guardando para o fim”, Negrinha é castigada pela patroa: a velha senhora coloca na boca da menina um ovo quente, obrigando-a a suportar a queimadura.
§  O acontecimento retrata o silenciamento de uma classe que não tem direito de se manifestar, de reagir.
A vinda das sobrinhas loiras:a presença de uma infância tolerável e não sujeita a castigos surpreende
Negrinha. D. Inácia trata as meninas com carinho e meiguice, o que sugere que o horror da senhora não era para com as crianças de modo geral, mas sim com os negros, os quais, criança ou não, ela não suportava.
§  O acontecimento retrata a superioridade da raça branca, a aceitação do branco em detrimento do negro.
§  As meninas aparecem como anjos que amenizam os sofrimentos de Negrinha.
 A “descoberta” da boneca: às meninas loiras era dado o direito de brincar e seu objeto de deleite, a boneca, fora motivo de deslumbramento para a pobre menina negra.
§  EPIFANIA: Ao segurar a boneca, brinquedo feminino que Negrinha não conhecia, a menininha se descobre como criança, como ser humano, com sentimentos iguais aos das outras crianças.
A morte de Negrinha: a passagem das meninas loiras pela fazenda, ao dar a Negrinha a consciência de quem ela era, impede a menina de continuar vivendo em servidão e negação de identidade. A tristeza vai consumindo a pequena até que a morte lhe consome.
§  A morte surge como libertação da vida de opressão; ali, naquela casa, não havia lugar para a pobre menina.

Em toda a narrativa, o leitor não conhece a voz nem os pensamentos de Negrinha. Já D. Inácia se faz vencer através do uso da palavra, seja ao dialogar com os padres ou mesmo ao xingar a pobre órfã.
O passado histórico terrível e destruidor e a crueldade com que os negros eram tratados são encarnados na personagem Negrinha.
À protagonista de Monteiro Lobato, após descobrir-se como sujeito e não objeto, resta-lhe apenas a morte, tal como era dada a tantos negros desde o período das levas dos navios negreiros.


12 de nov. de 2015

Análise literária Iracema, José de Alencar

ANÁLISE DA OBRA

Iracema, de José de Alencar, conta a trágica história da bela índia tabajara apaixonada pelo guerreiro branco. Considerado por muitos 'um poema em prosa', tem o ritmo e a força de imagens próprios da poesia.

Em Iracema, José de Alencar construiu uma alegoria perfeita do processo de colonização do Brasil e de toda a América pelos invasores portugueses e europeus em geral. O nome Iracema é um anagrama da palavra "América". O nome de seu amado Martim remete a Marte, o deus romano da Guerra e da Destruição. Já a partir do título, o autor demonstra um evidente trabalho de construção de uma linguagem e de um estilo que possam representar melhor "a singeleza primitiva da língua bárbara", com "termos e frases que pareçam naturais na boca do selvagem". O livro foi publicado em 1865 e, em pouco tempo, agradou aos leitores e aos críticos literários, a começar pelo jovem Machado de Assis, então com 27 anos, que escreveu sobre Iracema no Diário do Rio de Janeiro em 1866: 
"Tal é o livro do Sr. José de Alencar, fruto do estudo e da meditação, escrito com sentimento e consciência... Há de viver este livro, tem em si as forças que resistem ao tempo, e dão plena fiança do futuro... Espera-se dele outros poemas em prosa. Poema lhe chamamos a este, sem curar de saber se é antes uma lenda, se um romance: o futuro chamar-lhe-á obra-prima."

A lenda e a história
Iracema, subintitulado Lenda do Ceará, conta a triste história de amor entre a índia tabajara Iracema, a virgem dos lábios de mel, e Martim, o primeiro colonizador português do Ceará. Além disso, como resume Machado de Assis, o assunto do livro é também a história da fundação do Ceará e do ódio de duas nações inimigas – tabajaras e pitiguaras. Os pitiguaras habitavam o litoral cearense e eram amigos dos portugueses. Os tabajaras viviam no interior e eram aliados dos franceses.

Para lembrar
José de Alencar recorreu a circunstâncias históricas, como a rixa entre os índios tabajaras e pitiguaras, e utilizou personagens reais, como Martim Soares Moreno e o índio Poti, que depois viria a adotar o nome cristão de Antônio Felipe Camarão. Mas cercou-os de uma fértil imaginação e de um lirismo próprios da poesia romântica.

A heroína idealizada
Filha de Araquém, pajé da tribo tabajara, Iracema deve manter-se virgem porque "guarda o segredo da jurema e o mistério do sonho. Sua mão fabrica para o Pajé a bebida de Tupã". Um dia, Iracema encontra na floresta Martim, que se perdera de Poti, amigo e guerreiro pitiguara com quem havia saído para caçar e agora andava errante pelo território dos inimigos tabajaras. Iracema leva Martim para a cabana de Araquém, que abriga o estrangeiro: para os indígenas, o hóspede é sagrado. O momento em que Martim encontra Iracema revela a idealização romântica em seu grau mais elevado:
"Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado. Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas. Um dia, ao pino do sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre esparziam flores sobre os úmidos cabelos. Escondidos na folhagem os pássaros ameigavam o canto. Iracema saiu do banho: o aljôfar d'água ainda a roreja, como à doce mangaba que corou em manhã de chuva. Enquanto repousa, empluma das penas do gará as flechas de seu arco, e concerta com o sabiá da mata, pousado no galho próximo, o canto agreste. [...]

Diante dela e todo a contemplá-la, está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo.

O narrador, seguidas vezes, compara Iracema à natureza exuberante do Brasil. E a virgem leva sempre vantagem. Seus cabelos são mais negros e mais longos; seu sorriso, mais doce; seu hálito, mais perfumado; seus pés, mais rápidos. 
Anote!
Iracema é descrita por um narrador que, embora se apresente na terceira pessoa, é claramente emotivo e apaixonado. Retrata-a, portanto, como a síntese perfeita das maravilhas da natureza cearense, brasileira e americana. Iracema é muito mais do que uma mulher. A heroína é o próprio espírito harmonioso da floresta virgem.
Para lembrar
José de Alencar retrata o processo de estranhamento e fascínio mútuo que dominou o encontro dos dois povos. Começavam a se conhecer, sem sequer suspeitar as trágicas consequências que dele adviriam para os indígenas.

A sedução
Enquanto esperam a volta de Caubi, o irmão de Iracema que reconduziria o guerreiro branco às terras pitiguaras, Iracema apaixona-se por Martim, mas não pode entregar-se a ele, pois, como afirma o Pajé, "se a virgem abandonou ao guerreiro branco a flor de seu corpo, ela morrerá...". Uma noite, Martim pede a Iracema o vinho de Tupã, já que não consegue resistir aos encantos da virgem. O vinho, que provoca alucinações, permitiria que ele, em sua imaginação, possuísse a jovem índia como se fosse realidade. Iracema lhe dá a bebida e, enquanto ele imagina estar sonhando, Iracema "torna-se sua esposa". É muito importante notar o valor alegórico dessa passagem. Ao "possuir" Iracema, Martim está inconsciente, completamente seduzido e inebriado. Esse gesto provocará a destruição da virgem, assim como a invasão do Brasil pelos portugueses provocará a destruição da floresta virgem.
Anote!
Assim como Martim não tinha qualquer intenção de provocar a morte de sua amada – fazendo-o por paixão –, os destruidores da natureza brasileira o fizeram de forma inconsciente e inconsequente. A consciência ecológica de Alencar vai muito além da ingênua defesa das nossas matas: percebe com clareza o seu processo de destruição.

O conflito
Martim é ameaçado pelo chefe guerreiro Irapuã que, enciumado, quer invadir a cabana de Araquém e matá-lo. Apesar da advertência de Araquém de que Tupã puniria quem machucasse seu hóspede, os guerreiros de Irapuã cercam a cabana, que é protegida por Caubi. Iracema encontra Poti, que está próximo à aldeia dos tabajaras e deseja salvar o amigo. Planejam, então, a fuga de Martim. Durante a preparação dos guerreiros tabajaras para a guerra com os pitiguaras, Iracema serve-lhes o vinho da jurema e, enquanto os guerreiros deliram, ela leva Martim e Poti para longe da aldeia. Quando já estão em terras pitiguaras, Iracema revela a Martim que ela agora é sua esposa e deve acompanhá-lo. Mas os tabajaras descobrem que Iracema traíra "o segredo da jurema" e perseguem os fugitivos. Os pitiguaras, avisados da invasão dos tabajaras, juntam-se aos fugitivos e é travado um sangrento combate. Iracema luta ao lado de Martim contra a sua tribo. Os pitiguaras ganham a luta e Iracema se entristece pela morte dos seus irmãos tabajaras.

O exílio
Iracema acompanha Martim e Poti e passa a morar com eles no litoral. Durante algum tempo, todos são muito felizes e a alegria completa-se com a gravidez de Iracema. Porém, Martim acaba por "saturar-se de felicidade" e seu interesse pela esposa e pela vida ao seu lado começa a esfriar. Iracema ressente-se da frieza do marido e sofre. Martim ausenta-se com frequência em caçadas e batalhas contra os inimigos dos pitiguaras. Enquanto guerreia, nasce seu filho, que a índia



chama Moacir, que significa "nascido do meu sofrimento, da minha dor". 
Para lembrar
Iracema dá ao filho o nome indígena correspondente ao nome hebraico Benoni, que também significa "filho de minha dor". Este é o nome dado por Raquel, mulher do patriarca bíblico Jacó, ao seu último filho. Raquel morre depois de dar à luz. Mas Jacó muda o nome do menino para Benjamim. 
Os filhos de Jacó dão origem às tribos que formarão a nação Israel, assim como o filho de Iracema representa o início de uma nação.
Solitária e saudosa, Iracema tem dificuldade para amamentar o filho e quase não come. Desfalece de tristeza. Martim fica longe dela durante oito luas (oito meses) e, quando volta, encontra Iracema à beira da morte. Ela entrega o filho a Martim, deita-se na rede e morre, consumida pela dor. Poti e Martim enterram-na ao pé do coqueiro, à beira do rio. Segundo Poti: "Quando o vento do mar soprar nas folhas, Iracema pensará que é tua voz que fala entre seus cabelos". O lugar onde viveram e o rio em que nasceu o coqueiro viriam a ser chamados, um dia, pelo nome de Ceará.
Anote!
Martim partiu das praias do Ceará levando o filho. Alencar comenta: "O primeiro cearense, ainda no berço, emigrava da terra da pátria. Havia aí a predestinação de uma raça?". 
O guerreiro branco volta alguns anos depois, acompanhado de outros brancos, inclusive um sacerdote "para plantar a cruz na terra selvagem". Começa a colonização e a narrativa termina: "Tudo passa sobre a terra". 

O narrador
O romance é narrado na terceira pessoa, mas o narrador está longe de se manter neutro e ser um mero observador. Multiplicam-se os adjetivos reveladores de admiração, principalmente em referência à natureza brasileira (Iracema). Em alguns momentos, o narrador arrebatado chega a revelar-se na primeira pessoa: "O sentimento que ele pôs nos olhos e no rosto, não o sei eu".
Anote!
Tais arroubos do narrador justificam-se pela afirmação, no início da obra, de que essa é "Uma história que me contaram nas lindas várzeas onde nasci". Assim, Alencar justifica a intromissão da voz na primeira pessoa em uma obra narrada na terceira.

O indianismo O índio começou a ser adotado como tema literário no Brasil pelos árcades, principalmente Basílio da Gama – que via o índio como "homem natural" – e Santa Rita Durão – para quem o índio era apenas o "comedor de carne humana, que só o Cristianismo salvaria". 
A busca de uma "poesia americana"
Já no Romantismo, o culto do passado e o nacionalismo literário permitiram aos escritores cultivarem a chamada "poesia americana". Esta valia-se da natureza, da História, de cenas e de costumes nacionais, fórmula a que o indianismo se encaixava perfeitamente.


2 de nov. de 2015

Análise da tela "A primeira missa no Brasil", de Cândido Portinari


A arte revisando criticamente a história:
o índio ausente se faz visto



CÂNDIDO PORTINARI

               1903 - Nasce em Brodósqui, no Estado de São Paulo. Filho de imigrantes italianos. Cursa apenas o curso primário.
               1918 - Vai para o Rio e, na Escola Nacional de Belas-Artes, estuda pintura.
               1929-1931 - Temporada em Paris.

               1931 - Volta renovado, com mudança na estética das obras, valorizando mais as cores e a ideia da obra. Retrata o povo brasileiro nas suas telas.


               1936 - Painéis no Monumento Rodoviário, na Via Dutra; afrescos do MEC (Rio), temática social, que será o fio condutor de toda a sua obra a partir de então.

               1943 - Executa oito painéis conhecidos como Série Bíblica, com influência  picassiana de “Guernica” e sob o impacto da Segunda Guerra Mundial.
               No  final da década de quarenta deixa de lado a dramaticidade expressiva e a temática social e busca temas históricos através da afirmação do muralismo.
               MURALISMO: arte e técnica da pintura ou da composição de murais. Corrente artística do século XX caracterizada pela execução de grandes pinturas murais sobre temas populares ou de propaganda nacional.
               1948 - Portinari se autoexila no Uruguai, por motivos políticos, onde pinta o painel “A Primeira Missa no Brasil”. Dá início à exploração dos temas históricos através da afirmação do muralismo.
               1949 - Grande painel “Tiradentes”, episódios do julgamento e execução do herói brasileiro. Por este trabalho recebeu, em 1950, a Medalha de Ouro do júri do Prêmio Internacional da Paz  (Varsóvia).
               1952 - Painel com temática histórica:” A Chegada da Família Real Portuguesa à Bahia”, e esboços dos painéis “Guerra e Paz”, de 14m x 10m cada, doados pelo governo brasileiro à  sede da ONU.
               1954 - Realiza o painel “Descobrimento do Brasil”. Tem sintomas de intoxicação por tintas.
               1961 - O pintor tem diversas recaídas da doença que o atacara em 1954 - a intoxicação pelas tintas.
                1962 - Tendo produzido cerca de cinco mil obras, Cândido Portinari falece no dia 6 de fevereiro, vítima de intoxicação pelas tintas que utilizava.

Característica da produção de Candido Portinari

               Forte influência cubista: uso de figuras geométricas; geometrização das formas.
               Deformação geométrica das pessoas.
               Uso de tons mais escuros.
               Expressionismo: sua produção exprime a crueza da realidade dos brasileiros. Sua abordagem é realista, não idealiza a condição dos sofrimentos do homem nascido aqui. A miséria, a fome e também a revisão crítica da história da pátria compõem sua obra.
               Valorização da cultura brasileira ao tematizar o brasileiro e sua condição de lutador frente às dificuldades do viver.
               Retrato dos tipos humanos do Brasil: do trabalhador braçal ao sofredor nordestino.
               Temática social. 


Na "Primeira missa"

               Revisão crítica da história brasileira: ao tematizar a “primeira missa”, Portinari “apaga” a presença do índio, tal como a aculturação fez com o nativo. Na perspectiva de Portinari, a primeira missa não fora oferecida a todos, mas apenas a uma elite dominante formada por religiosos, comerciantes e integrantes da coroa portuguesa.
               O tema está retratado com uma criticidade tipicamente moderna, diferente do que acontece na produção de Victor Meirelles. O cenário apresentado é artificial, pouco natural, o que denota a pouca reverência religiosa da tela. No centro, uma grande caixa representa o altar, mas não há ali uma figura explícita que remonte à cruz católica, a não ser a da bandeirola, posta de lado, que sugere mais uma representação de um símbolo militar, já que o militarismo está presente na produção. Portinari dispõe em grupos frades, fidalgos, marujos e soldados.
               Não há presença de vegetação ou qualquer alusão à flora e fauna brasileira.

Comparando as telas: Victor Meirelles e Cândido Portinari

Enquanto a versão de Vitor Meirelles [era] nitidamente naturalística, subordinada à realidade histórica, a detalhes pitorescos da natureza, com índios espantados em volta (…) em Portinari, essa suposta realidade histórica não existe. Tampouco se preocupa ele com as descrições da carta de Pero Vaz, com o pitoresco (natureza exuberante) intrínseco à cena, paisagens e personagens coloridas, mataria tropical densa, selvagens nus ou seminus, de cocares e penas, bichos.
Powered By Blogger

Flickr