Análise literária ENCARNAÇÃO, José de Alencar
Sobre o autor:
Escreveu também peças
teatrais. Morreu no Rio de Janeiro, vítima de tuberculose, em 12 de dezembro de
1877.
ENCARNAÇÃO
CARACTERÍSTICAS:
O feminino em Alencar
As
protagonistas dos romances alencarianos são mulheres independentes e pensantes,
têm voz, o que só viria a se concretizar plenamente no século XX. Assim, Alencar
faz um trabalho pioneiro ao dar relevância ao papel social feminino, mesmo que,
ao final, as mulheres alencarianas se submetam ao seu verdadeiro destino
social, o casamento. Esse grande passo de Alencar evidencia-se, principalmente,
na concepção da mulher como um ser inteligente e capaz de ter o poder de
decisão, o que lhe é geralmente negado na sociedade da época do Romantismo.
O amor
A
combinação entre o amor e a morte inspira romances e poemas em todos os tempos,
mas principalmente no Romantismo, época em que o homem encontra-se fraturado, e
a ideia de morte lhe soa como solução para sua unificação enquanto ser cindido.
Assim, morrer de amor era sublime, principalmente entre os poetas românticos, e
houve alguns que, nesse clima de amor e morte, realmente morriam ainda no ápice
de sua juventude.
Apesar
de o amor estar intimamente ligado à morte, sobretudo na época literária romântica,
ele liga-se também à instituição do casamento,
mesmo porque ele é um aspecto central em Encarnação.
O
casamento
Em Encarnação, ocorrem não um, mas
dois casamentos. O protagonista da história
é um viúvo, Hermano, que se casa pela primeira vez com Julieta e em segundas núpcias
com Amália, bem mais jovem que ele, moradora da residência ao lado da sua. Nem Hermano nem Amália tinham intenção
de contrair núpcias, ele não pensava em um
segundo casamento, e ela não tinha a menor atração pelo matrimônio e nem
mesmo por Hermano.
Julieta: a primeira
esposa
Hermano
é um rapaz bem apessoado e distinto, que frequenta os salões da época. Ele se
distingue dos demais por seus modos, e também por sua invejável situação
financeira.
Hermano
pode escolher entre as melhores moças, as mais cobiçadas da corte, mas escolhe
Julieta, que não é rica e não brilha nos salões. Como toda mulher do Romantismo, ela é
descrita como uma estátua, mas “como estátua ela era um esboço imperfeito,
ainda mesmo com as correções que aplica o molde de um traje elegante, ou a
feliz disposição dos enfeites” (ALENCAR, 2006b, p. 17). É filha de um coronel
reformado do exército brasileiro, que serve algum tempo em Goiás e sua mãe
falece ao dar-lhe à luz.
Um
dia, no meio de seus triunfos, quando a sua estrela mais brilhava, correu a
notícia de que Hermano estava para casar-se, o que não devia surpreender em sua
idade. Foi, porém, geral a admiração quando se soube que D. Julieta, a moça por
quem se apaixonara a ponto de sacrificar-lhe a liberdade, não era rica nem
bonita. (ALENCAR, 2006b, p. 17).
Hermano
não precisa de uma moça rica, visto que já possui uma posição financeira
invejável. Mas o que atrai Hermano é a beleza do espírito de Julieta, ela não
possui uma notável beleza exterior, porém deixa uma forte impressão naqueles
com os quais tem contato.
O
que une Hermano e Julieta é algo mais espiritual, ela mesma acredita nisso e
emana espiritualidade.
Hermano
acredita no casamento como união de duas almas que se completam, e mesmo após a
morte de Julieta, que ocorre quando ela consegue abrigar em seu ventre o fruto
desse amor transcendental, Hermano parece continuar unido a ela e sentindo sua
presença no lar onde viveram juntos anos felizes.
Amália: a segunda
esposa
A
segunda esposa de Hermano é completamente diferente da primeira, a diferença
começa já com a cor dos cabelos, pois Julieta é morena e Amália é loira. Além disso,
Amália é bonita e rica, dois atributos que não são dados a Julieta. Amália tem também
opiniões e sentimentos bem diferentes dos da primeira esposa de Hermano. Ela não
é uma moça que sonha com o casamento, com algum partido vantajoso, e até mesmo
dispensa pretendentes ou se faz de desentendida quando algum homem galante lhe
diz palavras que insinuam intenção de algo mais sério em termos de
relacionamento afetivo. Vive nos bailes e festas, mas não quer assumir nenhum
compromisso. Amália, no começo da narrativa, não expressa opiniões de uma moça
típica do Romantismo em relação ao amor e ao casamento, parecendo ser mais uma
figura feminina do Realismo. Ela quer apenas viver bem sua mocidade sem se
preocupar com os encargos que a vida de casada lhe acarretaria, o casamento
seria o fim de tudo o que ela vivia em seu feliz dia-a-dia. Para quê se casar
se possui em casa tudo o que precisa?
Amália não acreditava
no amor.
A paixão para ela só existia no romance.
Através
da opinião de Amália em relação ao casamento, Alencar expõe e critica a realidade
da época, e daí a semelhança com Senhora. No entanto, como bom romântico,
apesar de ser um inovador, é também, paradoxalmente, um conservador, pois logo
leva sua protagonista ao amor e, consequentemente, ao casamento. Apesar da opinião
de Amália ser contaminada pela leitura de romances realistas, ainda domina nela
a ideologia romântica e, por isso se apaixona por Hermano. Isso ocorre quando é
enlevada pela história do Dr. Teixeira, um amigo do viúvo, que conta da
adoração e fidelidade do mesmo à esposa morta. Hermano também se apaixona por
Amália e os dois se casam. A moça tão realista e irônica em suas opiniões
queda-se em silêncio diante do amor. Não vai mais às festas como antes, sua luz
se apaga nos salões e ela passa a viver somente para o homem que ama.
A
visão de casamento como negócio,
assim como é representada na sociedade onde a personagem Aurélia está inserida,
também é retratada em Encarnação através preocupação dos pais,
especialmente do pai de Amália, pois “sabia-se do desejo que tinha o capitalista
de casar a filha” (ALENCAR, 2006b, p. 54):
O
casamento nessa narrativa só é consumado ao final, pois Hermano e Amália terão
que superar a morte de Julieta, que ronda a casa e parece estar entre o novo
casal.
A morte
A
narrativa gira em torno do tema da morte. Aliás, é importante notar a ironia
que consiste no fato de esta obra ter sido publicada postumamente, estando a
morte, portanto, no cerne de sua publicação. No tocante à narrativa em si, os
protagonistas estão ligados à morte de uma maneira ou de outra. Trata-se da
história de Hermano e Amália. Na verdade, o que se forma é um sombrio triângulo amoroso, constituído por
Hermano, Amália e Julieta.
A
morte na obra aparece na forma da perda do ser amado (no caso, Julieta), com a
qual Hermano não consegue conviver. Ele fica em estado de letargia, só
conseguindo sair disso com a ajuda de um amigo de infância, o Dr. Teixeira, que
o leva para uma viagem a Paris.
É
após a viagem que a morte se apresenta sob o aspecto fantasmagórico, tenebroso
e sombrio. Hermano agora parece ver Julieta em todos os lugares onde eles costumavam
ficar juntos, especialmente na casa de São Clemente onde moravam. Ele chega ao
ponto de incitar comentários de conhecidos que julgam-no demente.
Julieta e Hermano
possuíam uma ligação mais espiritual que carnal.
Até
mesmo a ópera através da qual Hermano se aproxima de Julieta fala de morte. É a
ópera Lucia de Lammermoor, de Donizetti, inspirada no romance de Walter Scott,
intitulado A noiva de Lammermoor. Ela fala da morte como algo sombrio, fantasmagórico,
e até profético.
A
convicção expressa por Julieta de que ela e Hermano se casariam e ficariam
unidos um ao outro eternamente, deixa nele uma impressão tão forte que faz com
que não consiga se livrar da presença da esposa, mesmo depois de morta. O toucador
que era dela é mantido intacto, mesmo depois de ele ter-se interessado por Amália,
e estarem se preparando para contrair bodas. Isso é percebido por Amália quando
visita a casa onde antes Hermano vivera com Julieta, e agora viveria com ela.
Além
disso, Hermano e o empregado Abreu sentem a presença de Julieta na casa e ainda
acreditam que ela ali reina de forma absoluta.
A casa
Cabe
aqui uma reflexão sobre o espaço da casa
de Hermano, espaço esse muito significativo para a narrativa e o seu fio
condutor: a morte. No caso de Hermano,
aquela casa é o espaço onde ele realiza seu ideário de felicidade conjugal ao
lado de Julieta, lá vivendo um mundo de devaneios. Depois da morte de Julieta,
há uma presentificação dela na casa, com especial valorização dos aposentos
dela, os quais fossilizam sua memória.
A
descrição do quarto intacto de Julieta, mesmo após sua morte, é importante
nessa narrativa. O aposento de Julieta fica trancado, mas Amália acaba conseguindo
as chaves e abrindo-o, pois, como diz Bachelard, “toda fechadura é um convite
para o arrombador”. (BACHELARD, 1993, p. 94).
Amália
teve grande dificuldade em se fazer aceitar por Abreu como a nova senhora
daquela casa.
Amor e morte
Em
parte significativa da obra, temos a impressão de que a morte não havia
separado o casal Hermano e Julieta, ou seja, é lançada a ideia de vida após a morte; a presença da esposa
falecida continua na vida dos que permaneciam vivos. É a visão romântica de que
o amor pode ser maior que a morte.
Amália e o processo de
“encarnação”
A
morte de Julieta também começa a afetar Amália e a ligá-la a essa mulher de
maneira estranha ou até assustadora. Ela a considerava já como uma irmã sua;
evocava a sua imagem; falava-lhe, e ficava contente por saber que a falecida
havia inspirado ao marido aquele amor indelével.
Logo
após seu casamento com Hermano, quando já haviam decorrido quinze dias, Amália
se dá conta de que a sua consumação não ocorreria (não tinham relações sexuais).
Conclui que sua vida seguiria esse curso porque Hermano não consegue deixar de
sentir a presença da primeira esposa perto de si, em cada momento, e em todos
os lugares. Então ela procura se parecer cada vez mais com a esposa morta, não
só fisicamente, mas nos modos também. Tem
início o processo de “encarnação” da figura da outra. Tanto se transforma
na figura de Julieta, que conquista para si a mesma atenção e o carinho antes dispensados
pelo criado Abreu à menina que vira nascer. E até Hermano se confunde, já não
sabendo se aquela que ali estava agora era Julieta ou Amália.
É
devido a essa circunstância que a ária Lucia faz conexão com a narrativa
de Alencar, pois Hermano converte-se no marido de uma morta, já que Julieta
parece ter tomado o corpo e a alma de Amália.
A
transformação de Amália já era tão perfeita, que enganava Hermano e até o
Abreu, sobretudo quando ela disfarçava com uma renda preta os seus lindos
cabelos louros, ou mesmo os tingia com algum cosmético.
Morte como salvação: o
suicídio
Hermano,
ao perceber o que fizera ao casar-se com Amália sem ter deixado de amar a
primeira esposa, acredita ter traído Julieta e enganado a segunda esposa. Logo,
ele tem a ideia de suicidar-se, ou, como ele diz, deixar-se morrer. Por isso,
deixa o gás ligado para que a casa se incendeie com ele dentro. Mas o ato não é
consumado, Hermano não morre, é salvo por Amália, que já suspeitava do plano
sinistro do marido.
O
suicídio não chega a se consumar, mas a morte
aqui é vista pelo protagonista como um meio de salvação. Com seu aniquilamento,
ele resolveria todos os seus problemas, se reuniria à primeira esposa, e
deixaria livre a segunda sem macular-lhe a vida com um casamento desfeito.
Detendo o título de viúva, ela poderia casar-se novamente e ser feliz. A felicidade
seria conseguida por todos através de seu suicídio. Essa ideia da morte como
salvação é tipicamente romântica. Ela era vista no Romantismo como o único meio
capaz de purificar e enobrecer o ser humano.
A morte: fogo
destruidor e fogo libertador
O
fogo nesse episódio é meio de suicídio e que traria a morte, mas que, ao final,
trouxe a vida, a possibilidade de uma vida nova ao lado de Amália e também representada
pela filha do casal que frutificou depois desse incêndio e aparece quando a
narrativa é retomada, cinco anos depois.
Esse
romance difere notavelmente dos outros devido ao teor fantasmagórico que permeia
toda sua narrativa, que não está presente em outras obras do autor. Diferentemente
dos demais textos do autor, esse pode ser classificado como pertencente ao gênero fantástico que reinou na
literatura do século XIX, e onde a morte é um dos temas mais recorrentes.
GENÊRO
FANTÁSTICO: Encarnação e o
fantasmagórico
O
protagonista de Encarnação apresenta reações e ações que, no decorrer da
narrativa, causam estranheza e dúvidas
sobre a ocorrência de fenômenos sobrenaturais na sua vida após a morte da
primeira esposa. Também a casa e toda a ambientação da história traz um aspecto
sombrio. Por isso, essa obra de Alencar é orientada com base no gênero fantástico.
Para
Todorov (2004, p. 166), “o fantástico se fundamenta essencialmente numa
hesitação do leitor – um leitor que se identifica com a personagem principal –
quanto à natureza de um acontecimento estranho”. Ou seja, o leitor, durante o exercício da
leitura hesita em aceitar ou recusar os fenômenos da narrativa como
sobrenaturais ou não: fica sempre a dúvida.
Encarnação:
fantástico
ou estranho?
Encarnação
conta
a história de um viúvo, Hermano, que se casa com uma segunda mulher, Amália, sem
conseguir esquecer-se da primeira, Julieta. Esse triângulo amoroso tende ao
sobrenatural, pois o espectro da mulher morta parece estar por toda a casa e,
consequentemente, entre o novo casal, atrapalhando-lhes a convivência feliz.
Esse
romance difere muito dos outros pelo seu aspecto tenebroso, cheio de prenúncios e presságios. Amália, por exemplo, tem seu pressentimento
com relação ao casamento com Hermano, pouco antes do grande dia. E o casal realmente
não é feliz nos primeiros meses de sua união, Hermano não toma Amália como sua
verdadeira esposa, a relação íntima entre marido e mulher não se realiza.
Muito
antes do segundo casamento, nos recuados dias em que Hermano pede Julieta em
casamento, outro trecho prenuncia um futuro sinistro, que parece se concretizar.
Trata-se do diálogo entre Hermano e Julieta quando ele a pede em casamento, e a
jovem expressa sua opinião a respeito dessa instituição, afirmando que para ela
no casamento o marido lhe pertenceria de corpo e alma eternamente.
Isso
realmente acontece, visto que a presença de Julieta impregna toda a casa e
domina o espírito do marido, tomando conta de seus sentimentos e interpondo-se no
seu relacionamento com a segunda esposa, concretizando, assim, o “eternamente”.
Amália sente a intromissão.
Há
outro trecho também significativo entre Hermano e Julieta, quando falam sobre a
vinda de um filho, e, logo em seguida ocorre a morte de Julieta.
Hermano
mostra-se como um homem estranho, de hábitos Quando Hermano retorna de sua
viagem a Paris, depois da morte de Julieta, traz consigo uns caixões. Sua
esquisitice torna-se ainda maior aos olhos do leitor quando descobre que esses
caixotes carregam duas figuras de cera, feitas à imagem de Julieta e eram um
simulacro dela. Hermano mandou fazê-las depois de sua viagem com o amigo
Teixeira até o Louvre, onde ficou embevecido com uma pintura. No toucador de
Julieta estava uma estátua à mesa de charão, e outra, recostada no sofá. Ambas
refletiam gestos que anteriormente fizeram parte do dia-a-dia dela. Apesar disso,
Amália mesma pôde constatar, através da equiparação com o retrato de Julieta,
que essas estátuas não se igualavam realmente a sua verdadeira aparência.
Outras características
românticas
Encarnação também está cheia de
antíteses, que é uma característica própria do Romantismo:
normalidade
x doença,
espiritualidade
x materialismo,
presente
x passado,
morte
x vida,
bem x mal.
Amália representa a normalidade,
e Hermano, a doença; Julieta, a espiritualidade, e Amália, o realidade; Amália,
o presente, e Julieta, o passado. Mas essas antíteses não distanciam, e sim acabam
aproximando o casal. Amália sente-se atraída por essa “doença” de Hermano, porém
com a incumbência de curá-lo. Ela também é uma admiradora de Julieta, essa mulher
que inspirou tanta devoção ao marido, e é grande a confluência do passado com o
presente durante toda a narrativa.
A
antítese morte x vida é predominante na
obra, pois toda a narrativa gira em torno da morte, que acompanha a vida de
Hermano e que passará a fazer parte da vida de Amália. Juntamente com a morte,
está também a vida, representada por Amália, cujo papel será o de tirar seu
amado do mundo dos mortos e trazê-lo novamente para o
dos vivos. É o tema do
amor que salva, tão presente no Romantismo e nas obras alencarianas. Ele está
ligado também ao da morte, que é recorrente na literatura fantástica.
O
espectro da esposa morta, que parece rondar o protagonista de Encarnação, é
característico das narrativas que exploram o insólito, o sobrenatural. Vimos, através
de trechos da obra, que Hermano parece vislumbrar a primeira esposa nos
momentos mais inesperados.
O
tema da morte é frequente nas narrativas fantásticas, tanto quanto os fantasmas
e os duplos. Notamos que Amália acredita na presença do espírito de Julieta
rondando a casa e seu marido, tanto que se revolta contra isso.
O primeiro sentimento
de Amália, depois da surpresa que lhe causara esse fato foi a revolta contra o
império que exercia a lembrança de Julieta no ânimo do marido, e a fraqueza
desse homem que se deixara subjugar àquele ponto. Essa dominação da esposa
morta sobre Hermano fica clara desde o início da narrativa. Quando ele se
decide a pedir a mão de Amália ao pai dela, recua diante do sentimento em
relação à Julieta, que se apodera dele naquele momento. Tanto que, depois de
casado, julga ter traído a primeira esposa e enganado a segunda.
Hermano
esperou, com a emoção que assalta todo homem de caráter ao tomar tão grande
responsabilidade. Não era a primeira vez que tinha essa emoção. Lembrou-se do
momento em que pedira a mão de Julieta. O passado, que parecia morto, ressurgiu
e apoderou-se dele.
O
ponto culminante dessa narrativa fantástica em que a dúvida sobre a aparição
fantasmagórica da primeira esposa perpassa toda a história, acontece quando Hermano
põe em prática seu plano de se matar, ou melhor, de “deixar-se morrer”. Ele abre
o gás e isso faz com que a casa se incendeie. Ele está no toucador que
pertencera a Julieta, e a vê em visão, travando um diálogo com ela. No início desse momento da narrativa, ficamos
em dúvida se o que acontece é realmente um fato sobrenatural ou somente o
delírio de um homem desnorteado por ter inalado o gás que deixou correr pelo
ambiente. Depois achamos que é muito vívida a imagem e o diálogo com a esposa morta
e que toda essa cena fantasmagórica realmente está acontecendo, é justamente
nesse instante que a narrativa é interrompida para enfocar o incêndio causado
por Hermano na casa.
Daí também a presença do fogo, que aparece na obra como um elemento purificador. É bem pertinente o tema da morte ligado ao fogo,
visto que Encarnação está inserida no período de nossa literatura em que
esses temas predominam.
É o fogo, visto como aquele que tudo purifica
que será capaz de acabar de vez com o espaço da casa que tanto presentifica a
figura de Julieta, e trazer a salvação e o reavivamento de Hermano para o amor
de Amália. Amália é o amor que salva,
mas o fogo tem que purificar aquele espaço para que esse amor possa florescer
sobre essas cinzas.
Quando a narrativa é
retomada, no capítulo seguinte, já decorreram cinco anos a partir do incêndio,
e é relatada a volta de Amália e Hermano ao lar destruído e “purificado” pelo
fogo. Através de um diálogo travado entre Amália e Hermano, ao contemplarem a
casa destruída pelo fogo, é dada ao leitor a explicação de como tudo ocorreu.
Há
algo de intensamente simbólico naquele incêndio: o meio de suicídio que Hermano
imaginara para si, meio de morte, mas que se tornará possibilidade de uma nova
vida. É por isso que o romance não acaba com o incêndio. Após a vitória do amor
invencível, simbolizado pelo fogo, há um salto de cinco anos na narrativa, e
conheceremos seu fruto: a meninazinha de quatro anos, bela como Amália, mas de
olhos e cabelos castanhos como Hermano, como Julieta: é Julieta reencarnada, a
filha do casal. Mas há outra possibilidade de compreensão: trata-se do amor como
encarnação, primeiramente na pessoa de Julieta, depois nas pinturas e
estátuas que Hermano viu e mandou confeccionar. Finalmente ele encarna esse
ideário do amor em Amália, e é ela mesma que chega a essa conclusão quando
encontra as imagens de cera nos aposentos de Julieta.
Assim
termina a narrativa do romance, deixando a dúvida sobre a ocorrência ou não do
sobrenatural, remetendo-nos à hesitação (dúvida) do leitor presente no gênero
fantástico: Hermano realmente via Julieta ou era apenas alucinação? Era
Julieta, filha do casal, a encarnação da primeira Julieta, esposa morta?