3 de nov. de 2013

Encarnação, José de Alencar no PAES 2013

Análise literária ENCARNAÇÃO, José de Alencar

Sobre o autor:

Um dos principais nomes do romantismo brasileiro, José Martiniano de Alencar é considerado o fundador do romance de temática nacional. O escritor nasceu em Mecejana, no Ceará, em 1o de maio de 1829. Cursou Direito em São Paulo e em Olinda, entre 1845 e 1850. Ainda estudante, publicou os primeiros trabalhos literários. Depois de formado, estabeleceu-se no Rio de Janeiro onde atuou como advogado e jornalista. No Diário do Rio de Janeiro publicou, em capítulos (folhetins), seus primeiros romances: Cinco Minutos (1856) e A Viuvinha (1857). Tornou-se famoso com O Guarani, publicado também em 1857. Ingressou na política quatro anos depois, sendo eleito deputado-geral pelo Ceará por quatro legislaturas. Foi ministro da Justiça de 1868 a 1870, mas não conseguiu realizar o desejo de tornar-se senador. Seus romances abordaram temáticas históricas e indianistas (O Guarani, Iracema), regionalistas (O Gaúcho, O Sertanejo) e urbanas (Senhora, Lucíola). Encarnação, escrito em 1877, só foi publicado em livro postumamente. Em vida de Alencar foi divulgado em folhetins: há dúvida quanto ao jornal em que apareceu. Último romance de José de Alencar, Encarnação foi escrito aos 47 anos de idade, meses antes do falecimento do autor. É o único romance de Alencar que apresenta um teor altamente fantasmagórico, tanto que pode ser encaixado no gênero fantástico.
Escreveu também peças teatrais. Morreu no Rio de Janeiro, vítima de tuberculose, em 12 de dezembro de 1877.

ENCARNAÇÃO
CARACTERÍSTICAS:


Essa última obra de Alencar, por ser uma obra romântica possui muitas características desse momento, principalmente no que diz respeito à morte, ao estranho, ao fantástico e ao duplo, temas recorrentes desse período literário. As mulheres das obras de Alencar são representações ficcionais daquelas que se destacam na sociedade do Segundo Reinado. Apesar de não fugirem à regra de figuras femininas idealizadas do Romantismo, vistas como puras, intocadas e até ingênuas, essas mulheres chegam a ocupar um lugar social e a circular num meio que normalmente caberia apenas aos homens naquele momento histórico.

O feminino em Alencar
As protagonistas dos romances alencarianos são mulheres independentes e pensantes, têm voz, o que só viria a se concretizar plenamente no século XX. Assim, Alencar faz um trabalho pioneiro ao dar relevância ao papel social feminino, mesmo que, ao final, as mulheres alencarianas se submetam ao seu verdadeiro destino social, o casamento. Esse grande passo de Alencar evidencia-se, principalmente, na concepção da mulher como um ser inteligente e capaz de ter o poder de decisão, o que lhe é geralmente negado na sociedade da época do Romantismo.

O amor
A combinação entre o amor e a morte inspira romances e poemas em todos os tempos, mas principalmente no Romantismo, época em que o homem encontra-se fraturado, e a ideia de morte lhe soa como solução para sua unificação enquanto ser cindido. Assim, morrer de amor era sublime, principalmente entre os poetas românticos, e houve alguns que, nesse clima de amor e morte, realmente morriam ainda no ápice de sua juventude.
Apesar de o amor estar intimamente ligado à morte, sobretudo na época literária romântica, ele liga-se  também à instituição do casamento, mesmo porque ele é um aspecto central em Encarnação.

O casamento
Em Encarnação, ocorrem não um, mas dois casamentos. O protagonista da história é um viúvo, Hermano, que se casa pela primeira vez com Julieta e em segundas  núpcias com Amália, bem mais jovem que ele, moradora da residência ao lado da sua. Nem Hermano nem Amália tinham intenção de contrair núpcias, ele não pensava em um segundo casamento, e ela não tinha a menor atração pelo matrimônio e nem mesmo por Hermano.

Julieta: a primeira esposa
Hermano é um rapaz bem apessoado e distinto, que frequenta os salões da época. Ele se distingue dos demais por seus modos, e também por sua invejável situação financeira.
Hermano pode escolher entre as melhores moças, as mais cobiçadas da corte, mas escolhe Julieta, que não é rica e não brilha nos salões.  Como toda mulher do Romantismo, ela é descrita como uma estátua, mas “como estátua ela era um esboço imperfeito, ainda mesmo com as correções que aplica o molde de um traje elegante, ou a feliz disposição dos enfeites” (ALENCAR, 2006b, p. 17). É filha de um coronel reformado do exército brasileiro, que serve algum tempo em Goiás e sua mãe falece ao dar-lhe à luz.
Um dia, no meio de seus triunfos, quando a sua estrela mais brilhava, correu a notícia de que Hermano estava para casar-se, o que não devia surpreender em sua idade. Foi, porém, geral a admiração quando se soube que D. Julieta, a moça por quem se apaixonara a ponto de sacrificar-lhe a liberdade, não era rica nem bonita. (ALENCAR, 2006b, p. 17).
Hermano não precisa de uma moça rica, visto que já possui uma posição financeira invejável. Mas o que atrai Hermano é a beleza do espírito de Julieta, ela não possui uma notável beleza exterior, porém deixa uma forte impressão naqueles com os quais tem contato.
O que une Hermano e Julieta é algo mais espiritual, ela mesma acredita nisso e emana espiritualidade.
Hermano acredita no casamento como união de duas almas que se completam, e mesmo após a morte de Julieta, que ocorre quando ela consegue abrigar em seu ventre o fruto desse amor transcendental, Hermano parece continuar unido a ela e sentindo sua presença no lar onde viveram juntos anos felizes.

Amália: a segunda esposa
A segunda esposa de Hermano é completamente diferente da primeira, a diferença começa já com a cor dos cabelos, pois Julieta é morena e Amália é loira. Além disso, Amália é bonita e rica, dois atributos que não são dados a Julieta. Amália tem também opiniões e sentimentos bem diferentes dos da primeira esposa de Hermano. Ela não é uma moça que sonha com o casamento, com algum partido vantajoso, e até mesmo dispensa pretendentes ou se faz de desentendida quando algum homem galante lhe diz palavras que insinuam intenção de algo mais sério em termos de relacionamento afetivo. Vive nos bailes e festas, mas não quer assumir nenhum compromisso. Amália, no começo da narrativa, não expressa opiniões de uma moça típica do Romantismo em relação ao amor e ao casamento, parecendo ser mais uma figura feminina do Realismo. Ela quer apenas viver bem sua mocidade sem se preocupar com os encargos que a vida de casada lhe acarretaria, o casamento seria o fim de tudo o que ela vivia em seu feliz dia-a-dia. Para quê se casar se possui em casa tudo o que precisa?
Amália não acreditava no amor. A paixão para ela só existia no romance.
Através da opinião de Amália em relação ao casamento, Alencar expõe e critica a realidade da época, e daí a semelhança com Senhora. No entanto, como bom romântico, apesar de ser um inovador, é também, paradoxalmente, um conservador, pois logo leva sua protagonista ao amor e, consequentemente, ao casamento. Apesar da opinião de Amália ser contaminada pela leitura de romances realistas, ainda domina nela a ideologia romântica e, por isso se apaixona por Hermano. Isso ocorre quando é enlevada pela história do Dr. Teixeira, um amigo do viúvo, que conta da adoração e fidelidade do mesmo à esposa morta. Hermano também se apaixona por Amália e os dois se casam. A moça tão realista e irônica em suas opiniões queda-se em silêncio diante do amor. Não vai mais às festas como antes, sua luz se apaga nos salões e ela passa a viver somente para o homem que ama.
A visão de casamento como negócio, assim como é representada na sociedade onde a personagem Aurélia está inserida, também é retratada em Encarnação através preocupação dos pais, especialmente do pai de Amália, pois “sabia-se do desejo que tinha o capitalista de casar a filha” (ALENCAR, 2006b, p. 54):
O casamento nessa narrativa só é consumado ao final, pois Hermano e Amália terão que superar a morte de Julieta, que ronda a casa e parece estar entre o novo casal.

A morte
A narrativa gira em torno do tema da morte. Aliás, é importante notar a ironia que consiste no fato de esta obra ter sido publicada postumamente, estando a morte, portanto, no cerne de sua publicação. No tocante à narrativa em si, os protagonistas estão ligados à morte de uma maneira ou de outra. Trata-se da história de Hermano e Amália. Na verdade, o que se forma é um sombrio triângulo amoroso, constituído por Hermano, Amália e Julieta.
A morte na obra aparece na forma da perda do ser amado (no caso, Julieta), com a qual Hermano não consegue conviver. Ele fica em estado de letargia, só conseguindo sair disso com a ajuda de um amigo de infância, o Dr. Teixeira, que o leva para uma viagem a Paris.
É após a viagem que a morte se apresenta sob o aspecto fantasmagórico, tenebroso e sombrio. Hermano agora parece ver Julieta em todos os lugares onde eles costumavam ficar juntos, especialmente na casa de São Clemente onde moravam. Ele chega ao ponto de incitar comentários de conhecidos que julgam-no demente.
Julieta e Hermano possuíam uma ligação mais espiritual que carnal.
Até mesmo a ópera através da qual Hermano se aproxima de Julieta fala de morte. É a ópera Lucia de Lammermoor, de Donizetti, inspirada no romance de Walter Scott, intitulado A noiva de Lammermoor. Ela fala da morte como algo sombrio, fantasmagórico, e até profético.
A convicção expressa por Julieta de que ela e Hermano se casariam e ficariam unidos um ao outro eternamente, deixa nele uma impressão tão forte que faz com que não consiga se livrar da presença da esposa, mesmo depois de morta. O toucador que era dela é mantido intacto, mesmo depois de ele ter-se interessado por Amália, e estarem se preparando para contrair bodas. Isso é percebido por Amália quando visita a casa onde antes Hermano vivera com Julieta, e agora viveria com ela.
Além disso, Hermano e o empregado Abreu sentem a presença de Julieta na casa e ainda acreditam que ela ali reina de forma absoluta.

A casa
Cabe aqui uma reflexão sobre o espaço da casa de Hermano, espaço esse muito significativo para a narrativa e o seu fio condutor: a morte.  No caso de Hermano, aquela casa é o espaço onde ele realiza seu ideário de felicidade conjugal ao lado de Julieta, lá vivendo um mundo de devaneios. Depois da morte de Julieta, há uma presentificação dela na casa, com especial valorização dos aposentos dela, os quais fossilizam sua memória.
A descrição do quarto intacto de Julieta, mesmo após sua morte, é importante nessa narrativa. O aposento de Julieta fica trancado, mas Amália acaba conseguindo as chaves e abrindo-o, pois, como diz Bachelard, “toda fechadura é um convite para o arrombador”. (BACHELARD, 1993, p. 94).
Amália teve grande dificuldade em se fazer aceitar por Abreu como a nova senhora daquela casa.

Amor e morte
Em parte significativa da obra, temos a impressão de que a morte não havia separado o casal Hermano e Julieta, ou seja, é lançada a ideia de vida após a morte; a presença da esposa falecida continua na vida dos que permaneciam vivos. É a visão romântica de que o amor pode ser maior que a morte.
Amália e o processo de “encarnação”
A morte de Julieta também começa a afetar Amália e a ligá-la a essa mulher de maneira estranha ou até assustadora. Ela a considerava já como uma irmã sua; evocava a sua imagem; falava-lhe, e ficava contente por saber que a falecida havia inspirado ao marido aquele amor indelével.
Logo após seu casamento com Hermano, quando já haviam decorrido quinze dias, Amália se dá conta de que a sua consumação não ocorreria (não tinham relações sexuais). Conclui que sua vida seguiria esse curso porque Hermano não consegue deixar de sentir a presença da primeira esposa perto de si, em cada momento, e em todos os lugares. Então ela procura se parecer cada vez mais com a esposa morta, não só fisicamente, mas nos modos também. Tem início o processo de “encarnação” da figura da outra. Tanto se transforma na figura de Julieta, que conquista para si a mesma atenção e o carinho antes dispensados pelo criado Abreu à menina que vira nascer. E até Hermano se confunde, já não sabendo se aquela que ali estava agora era Julieta ou Amália.
É devido a essa circunstância que a ária Lucia faz conexão com a narrativa de Alencar, pois Hermano converte-se no marido de uma morta, já que Julieta parece ter tomado o corpo e a alma de Amália.
A transformação de Amália já era tão perfeita, que enganava Hermano e até o Abreu, sobretudo quando ela disfarçava com uma renda preta os seus lindos cabelos louros, ou mesmo os tingia com algum cosmético.

Morte como salvação: o suicídio
Hermano, ao perceber o que fizera ao casar-se com Amália sem ter deixado de amar a primeira esposa, acredita ter traído Julieta e enganado a segunda esposa. Logo, ele tem a ideia de suicidar-se, ou, como ele diz, deixar-se morrer. Por isso, deixa o gás ligado para que a casa se incendeie com ele dentro. Mas o ato não é consumado, Hermano não morre, é salvo por Amália, que já suspeitava do plano sinistro do marido.
O suicídio não chega a se consumar, mas a morte aqui é vista pelo protagonista como um meio de salvação. Com seu aniquilamento, ele resolveria todos os seus problemas, se reuniria à primeira esposa, e deixaria livre a segunda sem macular-lhe a vida com um casamento desfeito. Detendo o título de viúva, ela poderia casar-se novamente e ser feliz. A felicidade seria conseguida por todos através de seu suicídio. Essa ideia da morte como salvação é tipicamente romântica. Ela era vista no Romantismo como o único meio capaz de purificar e enobrecer o ser humano.

A morte: fogo destruidor e fogo libertador
O fogo nesse episódio é meio de suicídio e que traria a morte, mas que, ao final, trouxe a vida, a possibilidade de uma vida nova ao lado de Amália e também representada pela filha do casal que frutificou depois desse incêndio e aparece quando a narrativa é retomada, cinco anos depois.
Esse romance difere notavelmente dos outros devido ao teor fantasmagórico que permeia toda sua narrativa, que não está presente em outras obras do autor. Diferentemente dos demais textos do autor, esse pode ser classificado como pertencente ao gênero fantástico que reinou na literatura do século XIX, e onde a morte é um dos temas mais recorrentes.

GENÊRO FANTÁSTICO: Encarnação e o fantasmagórico
O protagonista de Encarnação apresenta reações e ações que, no decorrer da narrativa, causam estranheza e dúvidas sobre a ocorrência de fenômenos sobrenaturais na sua vida após a morte da primeira esposa. Também a casa e toda a ambientação da história traz um aspecto sombrio. Por isso, essa obra de Alencar é orientada com base no gênero fantástico.
Para Todorov (2004, p. 166), “o fantástico se fundamenta essencialmente numa hesitação do leitor – um leitor que se identifica com a personagem principal – quanto à natureza de um acontecimento estranho”.  Ou seja, o leitor, durante o exercício da leitura hesita em aceitar ou recusar os fenômenos da narrativa como sobrenaturais ou não: fica sempre a dúvida.

Encarnação: fantástico ou estranho?
Encarnação conta a história de um viúvo, Hermano, que se casa com uma segunda mulher, Amália, sem conseguir esquecer-se da primeira, Julieta. Esse triângulo amoroso tende ao sobrenatural, pois o espectro da mulher morta parece estar por toda a casa e, consequentemente, entre o novo casal, atrapalhando-lhes a convivência feliz.
Esse romance difere muito dos outros pelo seu aspecto tenebroso, cheio de prenúncios e presságios.  Amália, por exemplo, tem seu pressentimento com relação ao casamento com Hermano, pouco antes do grande dia. E o casal realmente não é feliz nos primeiros meses de sua união, Hermano não toma Amália como sua verdadeira esposa, a relação íntima entre marido e mulher não se realiza.
Muito antes do segundo casamento, nos recuados dias em que Hermano pede Julieta em casamento, outro trecho prenuncia um futuro sinistro, que parece se concretizar. Trata-se do diálogo entre Hermano e Julieta quando ele a pede em casamento, e a jovem expressa sua opinião a respeito dessa instituição, afirmando que para ela no casamento o marido lhe pertenceria de corpo e alma eternamente.
Isso realmente acontece, visto que a presença de Julieta impregna toda a casa e domina o espírito do marido, tomando conta de seus sentimentos e interpondo-se no seu relacionamento com a segunda esposa, concretizando, assim, o “eternamente”. Amália sente a intromissão.
Há outro trecho também significativo entre Hermano e Julieta, quando falam sobre a vinda de um filho, e, logo em seguida ocorre a morte de Julieta.
Hermano mostra-se como um homem estranho, de hábitos Quando Hermano retorna de sua viagem a Paris, depois da morte de Julieta, traz consigo uns caixões. Sua esquisitice torna-se ainda maior aos olhos do leitor quando descobre que esses caixotes carregam duas figuras de cera, feitas à imagem de Julieta e eram um simulacro dela. Hermano mandou fazê-las depois de sua viagem com o amigo Teixeira até o Louvre, onde ficou embevecido com uma pintura. No toucador de Julieta estava uma estátua à mesa de charão, e outra, recostada no sofá. Ambas refletiam gestos que anteriormente fizeram parte do dia-a-dia dela. Apesar disso, Amália mesma pôde constatar, através da equiparação com o retrato de Julieta, que essas estátuas não se igualavam realmente a sua verdadeira aparência.

Outras características românticas
Encarnação também está cheia de antíteses, que é uma característica própria do Romantismo:
normalidade x doença,
espiritualidade x materialismo,
presente x passado,
morte x vida,
 bem x mal.
Amália representa a normalidade, e Hermano, a doença; Julieta, a espiritualidade, e Amália, o realidade; Amália, o presente, e Julieta, o passado. Mas essas antíteses não distanciam, e sim acabam aproximando o casal. Amália sente-se atraída por essa “doença” de Hermano, porém com a incumbência de curá-lo. Ela também é uma admiradora de Julieta, essa mulher que inspirou tanta devoção ao marido, e é grande a confluência do passado com o presente durante toda a narrativa.
A antítese morte x vida é predominante na obra, pois toda a narrativa gira em torno da morte, que acompanha a vida de Hermano e que passará a fazer parte da vida de Amália. Juntamente com a morte, está também a vida, representada por Amália, cujo papel será o de tirar seu amado do mundo dos mortos e trazê-lo novamente para o
dos vivos. É o tema do amor que salva, tão presente no Romantismo e nas obras alencarianas. Ele está ligado também ao da morte, que é recorrente na literatura fantástica.
O espectro da esposa morta, que parece rondar o protagonista de Encarnação, é característico das narrativas que exploram o insólito, o sobrenatural. Vimos, através de trechos da obra, que Hermano parece vislumbrar a primeira esposa nos momentos mais inesperados.
O tema da morte é frequente nas narrativas fantásticas, tanto quanto os fantasmas e os duplos. Notamos que Amália acredita na presença do espírito de Julieta rondando a casa e seu marido, tanto que se revolta contra isso.
O primeiro sentimento de Amália, depois da surpresa que lhe causara esse fato foi a revolta contra o império que exercia a lembrança de Julieta no ânimo do marido, e a fraqueza desse homem que se deixara subjugar àquele ponto. Essa dominação da esposa morta sobre Hermano fica clara desde o início da narrativa. Quando ele se decide a pedir a mão de Amália ao pai dela, recua diante do sentimento em relação à Julieta, que se apodera dele naquele momento. Tanto que, depois de casado, julga ter traído a primeira esposa e enganado a segunda.
Hermano esperou, com a emoção que assalta todo homem de caráter ao tomar tão grande responsabilidade. Não era a primeira vez que tinha essa emoção. Lembrou-se do momento em que pedira a mão de Julieta. O passado, que parecia morto, ressurgiu e apoderou-se dele.
O ponto culminante dessa narrativa fantástica em que a dúvida sobre a aparição fantasmagórica da primeira esposa perpassa toda a história, acontece quando Hermano põe em prática seu plano de se matar, ou melhor, de “deixar-se morrer”. Ele abre o gás e isso faz com que a casa se incendeie. Ele está no toucador que pertencera a Julieta, e a vê em visão, travando um diálogo com ela.  No início desse momento da narrativa, ficamos em dúvida se o que acontece é realmente um fato sobrenatural ou somente o delírio de um homem desnorteado por ter inalado o gás que deixou correr pelo ambiente. Depois achamos que é muito vívida a imagem e o diálogo com a esposa morta e que toda essa cena fantasmagórica realmente está acontecendo, é justamente nesse instante que a narrativa é interrompida para enfocar o incêndio causado por Hermano na casa.
Daí também a presença do fogo, que aparece na obra como um elemento purificador. É bem pertinente o tema da morte ligado ao fogo, visto que Encarnação está inserida no período de nossa literatura em que esses temas predominam.
É o fogo, visto como aquele que tudo purifica que será capaz de acabar de vez com o espaço da casa que tanto presentifica a figura de Julieta, e trazer a salvação e o reavivamento de Hermano para o amor de Amália. Amália é o amor que salva, mas o fogo tem que purificar aquele espaço para que esse amor possa florescer sobre essas cinzas.
Quando a narrativa é retomada, no capítulo seguinte, já decorreram cinco anos a partir do incêndio, e é relatada a volta de Amália e Hermano ao lar destruído e “purificado” pelo fogo. Através de um diálogo travado entre Amália e Hermano, ao contemplarem a casa destruída pelo fogo, é dada ao leitor a explicação de como tudo ocorreu.
Há algo de intensamente simbólico naquele incêndio: o meio de suicídio que Hermano imaginara para si, meio de morte, mas que se tornará possibilidade de uma nova vida. É por isso que o romance não acaba com o incêndio. Após a vitória do amor invencível, simbolizado pelo fogo, há um salto de cinco anos na narrativa, e conheceremos seu fruto: a meninazinha de quatro anos, bela como Amália, mas de olhos e cabelos castanhos como Hermano, como Julieta: é Julieta reencarnada, a filha do casal. Mas há outra possibilidade de compreensão: trata-se do amor como encarnação, primeiramente na pessoa de Julieta, depois nas pinturas e estátuas que Hermano viu e mandou confeccionar. Finalmente ele encarna esse ideário do amor em Amália, e é ela mesma que chega a essa conclusão quando encontra as imagens de cera nos aposentos de Julieta.
Assim termina a narrativa do romance, deixando a dúvida sobre a ocorrência ou não do sobrenatural, remetendo-nos à hesitação (dúvida) do leitor presente no gênero fantástico: Hermano realmente via Julieta ou era apenas alucinação? Era Julieta, filha do casal, a encarnação da primeira Julieta, esposa morta?


A luneta mágica

ANÁLISE LITERÁRIA: A LUNETA MÁGICA, Joaquim Manuel de Macedo
CONTEXTO HISTÓRICO
A ascensão da burguesia ao poder e o surgimento do jornal (o primeiro aparece em 1808, no RJ) vieram modificar o gosto do público pela literatura. A nova mentalidade, menos refinada, menos educada e mais pragmática - voltada para os problemas do dia a dia - requer um gênero literário que possa estar à altura do seu entendimento e do seu gosto. E o romance, que há mais tempo vinha tomando forma [na Espanha, na Inglaterra e na França, sobretudo], começou a ensaiar seus primeiros passos no Brasil. Dos primeiros folhetins, publicados em jornais, por autores agora completamente esquecidos, passamos às primeiras manifestações mais apropriadas e logo festejadas pelo grande público. Atentos, sempre, ao anseio do novo público, surgiram os primeiros romancistas. E, com eles, os primeiros folhetins, entre estes está A Luneta Mágica, de Joaquim Manuel de Macedo. A obra foge de tons piegas do romance e tem uma conotação maior de fábula com lição de moral.

SOBRE O AUTOR: Joaquim Manuel de Macedo nasceu em Itaboraí [RJ], em 1820. Fez o curso de Medicina  e, no mesmo ano de sua formatura, 1844, publicou A Moreninha, muito apreciado pelo público da época. Foi jornalista, professor secundário, dramaturgo e romancista, obtendo destaque literário com este último gênero. Fundou, em 1849, a 'Revista Guanabara', juntamente com Gonçalves Dias e Araújo de Porto Alegre. Morreu no RJ, em 1882. Macedo é o criador da ficção brasileira 'pela forma e pelo estilo'. Estuda a psicologia feminina, enquadrando-a no contexto emocional do Romantismo. Excelente observador, retrata a burguesia carioca, reproduzindo seus costumes, manias e a mediocridade de seu pensamento. Suas obras, apesar de variadas, apresentam estilo falho e superficial análise psicológica dos personagens, sendo, portanto, o seu principal mérito o de ser o introdutor da prosa de ficção em nosso Romantismo. Também Macedo proporcionou aos leitores duas coisas que lhe garantiram popularidade: narrativas cujo cenário e personagens eram familiares, de todo o dia; peripécias e sentimentos enredados e poéticos, de acordo com as necessidades médias de sonho e aventura.

ENREDO DA OBRA
No romance A Luneta Mágica, Macedo nos conta a história de Simplício, um rapaz que padece de um mal terrível: uma dupla miopia, a qual lhe causa desespero e desgosto:
Ø  Miopia física: que o impede de ver ou distinguir qualquer coisa a duas polegadas de distância dos seus olhos.
Ø  Miopia moral: o impede de entender ou distinguir as ideias alheias ou de ajustar suas próprias ideias. [trata-se de um parvo, ingênuo...]
Simplício ficou órfão aos 12 anos de idade e, desde então, vive com o seu irmão Américo, que administra sua herança, com a devota tia Domingas e com a prima Anica. Certo dia, apesar de sua miopia, foi convidado para fazer parte de um júri. Lá conhece o Sr. Nunes que lhe fala do Reis, um gravador de vidros, capaz de resolver seu problema de miopia.
Depois de muitas tentativas, de lentes do mais alto grau, Reis reconhece que não pode ajudar Simplício, sua miopia é muito forte. Condoído, no entanto, com a dor do rapaz fala-lhe do Armênio - um artista de habilidades mágicas trazido da Europa pelo próprio Reis para trabalhar em sua oficina.
O desejo de Simplício de ver era tão grande que ele acaba aceitando ir visitar o Armênio. Este promete-lhe uma luneta mágica, mas avisa-lhe também que em pouco tempo o rapaz vai ter a convicção de que é melhor ser cego do que ver demais.
Assim, depois de pensar muito sobre tudo o que o Armênio havia lhe falado e consultar sua família, Simplício vai ao encontro do mágico no horário marcado, a meia-noite. Lá presencia o ritual de construção da luneta. Depois de muitas luzes, fogos e palavras mágicas, finalmente o mago entrega-lhe o objeto mágico, mas não antes de lhe avisar sobre os poderes e perigos da luneta: Simplício não deveria fixá-la mais de 3 minutos sobre qualquer objeto ou ser humano, pois assim passaria a ter a visão do mal (vingança da salamandra presa no vidro) e, além disso, não deveria também fixá-la em nada além de 13 minutos, pois esta seria a visão do futuro e, neste caso, para própria proteção do rapaz, a luneta se quebraria.
Ansioso com a possibilidade de enxergar, Simplício volta para casa e espera o amanhecer para experimentar a luneta. Maravilhado com a visão da aurora, acredita que será impossível ver qualquer coisa má nesta cena e decide, portanto, fixar sua luneta por mais de 3 minutos. De repente, fica horrorizado com o que vê: '-Meu Deus!...como a aurora é enganadora e falsa!...e como o sol é feio, terrível e mau!!!'. Concorda com o Armênio e diz que basta a visão da superfície e das aparências, a felicidade do homem está nas ilusões dos sentidos, nos enganos da alma, quer ser feliz e, portanto, não fará mais uso da visão do mal. No entanto, nosso jovem ingênuo, acaba por não resistir à visão do mal e começa a fixar sua luneta sobre tudo e todos.
            A visão do mal permite-lhe ver a 'verdade' sobre:
Ø  Prima Anica, moça fria, sem sentimentos, mulher calculista, incapaz de amizade, interessada em casar com Américo ou com Simplício por causa da fortuna;
Ø  Mano Américo, ambicioso avarento, rouba a família na administração dos bens;
Ø  Tia Domingas, invejosa, fofoqueira, sovina, deseja o casamento da filha com Américo pela fortuna.
Estas descobertas deixam Simplício horrorizado e decepcionado fazendo-o decidir procurar um advogado para administrar seus bens e uma esposa para formar uma nova família. Procura o Nunes para que este o ajude com seus planos. No entanto, ao fixar sua luneta sobre o velho, descobre um farsante e interesseiro.
            Passa-se um mês e ele só encontra decepções, ninguém em quem confiar, nada em que acreditar. Os amigos são todos interesseiros, exploradores, as moças são todas falsas e impuras.
            De repente, a cidade inteira comenta sua loucura e ele passa a ser perseguido e execrado em todos os locais. A família decide que ele está doente, tranca-o em casa e quer destruir sua luneta. A visita de um médico, no entanto, impede que ele seja declarado louco. Todos concordam que ele foi iludido pela magia e que com amor e carinho conseguirá superar tudo.
Ainda assim, Simplício não entrega a luneta e sabe que, embora não seja considerado louco será visto como um maníaco, portanto não há salvação. Decide, então, que a única coisa que poderá salvá-lo será a visão do futuro. Ele quer saber qual o seu futuro e por isso decide fixar a luneta nele mesmo (no espelho) por mais de 13 minutos. Entretanto, antes de chegar na visão do futuro, chega à visão do mal e se descobre um infame, caluniador, um inimigo da família, um homem capaz de maldizer todas as criações de Deus, um maldito...Antes de chegar na visão do futuro, a luneta quebra-se em suas mãos.
De novo, Simplício acha-se na escuridão, arrependido de ultrapassar a visão da superfície e das aparências, descobre-se, agora, sem nada, sem qualquer possibilidade de ver.
Depois de oito dias enclausurado em casa, decide que já pode sair, as pessoas não lembrarão de mais nada - 'Não há atividade de opinião que resista à extensão, à eternidade de oito dias na nossa capital'.
Durante o passeio, reencontra o Reis que lhe conta sobre as fofocas do Nunes e o convence a, novamente, procurar o Armênio. Assim, fica combinado um novo encontro, a meia-noite, no gabinete do mágico.
Mais uma vez Simplício presencia todo o ritual de construção da nova luneta e ouve os alertas do Armênio sobre o uso correto da lente. Dessa vez, se fixada por mais de três minutos, ela lhe dará a visão do bem.
Ao voltar para casa, esperançoso e feliz com a possibilidade de ver novamente, Simplício decide que escreverá a todos os jornais e falará sobre as maravilhas de que o Armênio é capaz. Ele não entende a descrença do Reis nas potencialidades mágicas. Acredita que o Armênio poderá ajudar muitas outras pessoas e que, portanto, não faz sentido manter tudo isso em segredo.
Depois de se questionar sobre que mal poderia haver na visão do bem, mais uma vez Simplício desobedece o mágico e fixa sua luneta por mais de três minutos. Começa por enxergar a prima Anica, um anjo de inocência e de candura; tia Domingas, a devoção e a piedade personalizada; o mano Américo, a pura dedicação fraternal. “ - Eu tinha a febre da felicidade. O mundo e a vida me festejavam o coração; eu desejava rir, divertir-me, folgar”.
Maravilhado com a visão do bem, apaixona-se pela prima Anica e por mais trinta e tantas outras moças, inclusive por Esmeralda, uma conhecida prostituta do 'Alcasar Lírico'. Reconhece a bondade e a pureza de coração em todos que dele se aproximam, ajuda a todos, paga jantares, dá esmolas, contribui para fundos de caridades através dos 'amigos', que são cada vez em maior número. Reencontra o Nunes, visita-lhe a família, apaixona-se por sua filha, salda suas dívidas. Enfim, passa a ser explorado e ridicularizado por todos sem perceber. Quando alguns tentam lhe avisar sobre o que está acontecendo, fica confuso, pois descobre a verdade na boca destas almas boas, mas não entende como isso pode ser possível.
Mais uma vez desesperado e angustiado, descobre que a visão do bem é um martírio.           
Com a alma atormentada, presencia um funeral e percebe a beleza, a felicidade da morte. Decide, portanto, que o melhor que tem a fazer é morrer. Como não tem armas ou veneno, nem meios para consegui-los, sobe até o alto do Corcovado para se jogar de lá de cima. Antes, porém, pensa uma vez na visão do futuro, dá uma última olhada através da luneta mágica para cidade, a capital do Império do Brasil. Passa-se os treze minutos e a luneta se quebra em suas mãos. Mais uma vez nas trevas, Simplício não hesita e se joga do parapeito... Duas mãos possantes, no entanto, suspenderam-lhe pelas orelhas - era o Armênio.
Depois de conversarem sobre tudo o que havia acontecido, o mágico fala-lhe sobre as lições das lunetas: Exagerar é mentir;  'No mundo há o bem e o mal, como há na vida o prazer e a dor.' 'Mas o bem é o bem, o mal é o mal como são e não podem deixar de ser para humanidade que é imperfeita: perfeito bem, absoluto mal não há para ela.' 'A imperfeição e a contingência da humanidade são as únicas ideias que podem fundamentar um juízo certo sobre todos os homens...Cada qual é o que é e cada qual tem as suas qualidades, e seus defeitos.'
Depois desta conversa, o Armênio decidiu dar-lhe uma última luneta mágica - A Luneta do Bom Senso. Desta vez, no entanto, Reis faz Simplício prometer segredo sobre o assunto.

Sobre a obra

            Narrador: narrador-personagem: Simplício, personagem central, é considerado incompetente para viver neste mundo: um tonto ou louco incapaz de gerir sua vida. 
            Foco narrativo: primeira pessoa.
            Estilo literário: prosa romântica com forte viés realista.  O autor observa e retrata a burguesia carioca, reproduzindo seus costumes, que nos remete às origens de nossa formação urbana.
             
CRÍTICA SOCIAL
A narrativa de Macedo satiriza a sociedade. O problema residiria na falta de transparência dos seres e das relações, que exigem o uso das lunetas para serem desvendadas. Porque este é o grande tema e problema da narrativa: a conquista da liberdade e a fundamentação do livre-arbítrio.  Cada ser humano é responsável pelo seu caminho. Aquele que precisa constantemente da opinião e orientação dos outros para pensar e agir, sem ter discernimento próprio, não é responsável por seus atos, sendo, a rigor, prisioneiro dos outros. Esta é a maior dificuldade de Simplício. Ele precisa de um olhar que o oriente a julgar a si mesmo, julgar o mundo, os cidadãos e os atos humanos, políticos ou éticos. Consciente de que teria o direito e o dever de dispor de critérios para julgar, desespera-se e busca solução, que vem sob a forma da luneta mágica.

            A luneta é como um mecanismo de conto de fadas: no romance, para se atingir o discernimento é preciso magia. Só a magia poderia, aparentemente, ajudá-lo, e vinda de um estrangeiro: o Armênio. A condição de “menoridade” de Simplício parece mais radical porque ele, na sua simplicidade, tem boa-fé. Com luneta ou sem luneta, ele é explorado pelo irmão, pela tia e pela prima. Os que se apresentam como se fossem maiores de idade, maduros, têm, diferentemente de Simplício, decisão e coragem nos seus atos abusivos e injustos. Falta decisão e coragem àqueles que persistem na condição de menores, de honestos. Simplício pensa consegui-las com a ajuda da luneta. A maioridade consiste na autonomia, na liberdade de ser e agir segundo o próprio entendimento. No romance de Macedo, a maioridade dependerá da luneta do bom senso, aliada ao silêncio e à discrição.

ESTRUTURA DO TEXTO:
Ao explorar um tempo linear e a organização do texto em partes simétricas, A luneta mágica constrói-se de forma simples: o narrador apresenta as personagens uma a uma, a começar por si próprio, e desenvolve um relato direto e sequencial. Contudo, por mostrar-se como um ingênuo míope com o significativo nome de Simplício, o personagem imediatamente introduz-se como nota dissonante na estrutura da narrativa. O procedimento irônico é reforçado pela denúncia da corrupção dos laços familiares e das estruturas políticas do Segundo Império, quando são apontados, como fenômenos de natureza idêntica, tanto as mazelas do sistema político-administrativo do Brasil quanto a família que controla as rendas e o futuro de Simplício. Assim, seu irmão Américo, a prima Anica e tia Domingas encenam na microestrutura familiar o mesmo comportamento de estadistas, ministros, polícia, guarda nacional e justiça pública, comparados por Simplício a grilos, cupins, aranhas e ratos empenhados na tarefa de dilapidar o patrimônio nacional e atravancar a máquina do Estado.
            A súbita mudança de quase cego a visionário, ao invés de melhorar a vida de Simplício, traz-lhe mais dilemas e aprofunda sua solidão. Se antes seu isolamento era devido às dificuldades visuais, quando passa a perceber os outros para além das aparências, depara-se com tantas vilanias que rejeita todos os homens e é por eles rejeitado. De forma semelhante, as lentes do bem lhe proporcionam uma mirada paradisíaca que, por cegá-lo e desprotegê-lo frente aos demais personagens, transforma-o em ridículo objeto de exploração, ampliando seu ostracismo e levando-o ao paradoxo de desejar a morte. Antes de tornar o mundo visível para o narrador, as lunetas tornam o narrador visível para o mundo que, logo após reconhecê-lo, volta a abandoná-lo.
            Contudo, embora pareça estimulá-las, a magia das lentes na verdade critica as visões do bem e do mal enquanto elementos diametralmente opostos, excludentes e caricaturais, mostrando como um personagem sem perspicácia se transforma em sagaz observador do mundo. A perda da miopia física e moral é resultado de um ritual de iniciação proposto pelo armênio e ao qual não faltam exorcismos e invocações dos anjos. Após as provas de praxe, nosso herói ascende à vida aspirada pelo leitor burguês do Brasil imperial. A experiência cabalístico-estética encerra-se com um ensinamento metalingüístico do armênio que se auto-intitula Lição e nomeia Simplício como o Exemplo - aquele que partiu do senso comum e, depois de tantas peripécias, logrou reunir o bem e o mal adquirindo a desejada autonomia por meio das lunetas do bom senso.


CONCLUSÃO A obra de Joaquim Manuel de Macedo serve de valoroso estímulo para a nossa reflexão sobre a qualidade das ações humanas, norteadas pelo antagonismo entre os princípios do Bem e do Mal. Na verdade, esse dito antagonismo somente ocorre mediante uma interpretação parcial da realidade, pois que, em um mundo marcado pela relatividade dos seus valores, o que realmente pode ser considerado de maneira categórica e definitiva como do âmbito do “Bem” ou do “Mal”? Essa indagação, no entanto, necessariamente não nos leva a um impasse irresolúvel, pois que, mediante o uso do bom senso, podemos constituir um modelo de vida crítico, no qual avaliamos de modo consciente aquilo que efetivamente nos proporciona algum benefício duradouro, ou, ao contrário, aquilo que nos prejudica. A visão plena do Mal envenena o ânimo do indivíduo, e a visão plena do Bem torna o indivíduo ingênuo diante dos aproveitadores cotidianos.

Felicidade Clandestina - Clarice Lispector

PAES 2013 –"Felicidade Clandestina" análise literária do conto clariceano
Sobre Clarice Lispector
Clarice Lispector nasceu em 10 de dezembro de 1920 em Tchetchelnik, Ucrânia. Quando tinha cerca de dois meses de idade, seus pais migraram para o Brasil, terra que considerava como sua verdadeira pátria. Em 1924, a família mudou-se para o Recife, onde iniciou seus estudos. Por volta dos oito anos, Clarice perdeu sua mãe. Três anos depois, a família muda-se para o Rio de Janeiro.
Ingressa em 1939 na Faculdade de Direito e, no ano seguinte, seu primeiro conto, Triunfo, em uma revista. Forma-se em 1943 e se casa no mesmo ano com o diplomata Maury Gurgel Valente, com quem teve dois filhos. Durante seus anos de casada, mora em diversos países pela Europa e nos Estados Unidos.
Em 1944, publica seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, vindo a ganhar o Prêmio Graça Aranha, da Academia Brasileira de Letras, no ano seguinte. Separa-se de seu marido em 1959 e volta para o Rio de Janeiro com seus dois filhos. No ano seguinte, publica seu primeiro livro de contos, Laços de família.
Em 1967, um cigarro provoca um grande incêndio em sua casa e Clarice fica gravemente ferida, correndo risco inclusive de ter sua mão direita amputada. Porém, após se recuperar, continua com sua carreira literária publicando diversos livros.
Publica em 1977 seu último livro A hora da estrela, vindo a ser internada pouco tempo depois com câncer. A escritora vem a falecer no dia 9 de dezembro do mesmo ano, véspera de seu aniversário de 57 anos.
Suas principais obras são: "Perto do coração selvagem" (1944), "Laços de família" (1960), "A maçã no escuro" (1961), "A legião estrangeira" (1964), "A paixão segundo G.H." (1964), "Felicidade clandestina" (1971), "Água viva" (1973) e "A hora da estrela" (1977).
Felicidade Clandestina, a obra
Lançado inicialmente em 1971, "Felicidade Clandestina" reúne diversos textos de Clarice Lispector que foram escritos em diversas fases da vida da autora. Os textos reunidos nessa obra podem mais facilmente ser classificados como “contos”, mas como Clarice não se prendia a convenções de gêneros, todo o conjunto reunido em Felicidade Clandestina migra de gênero em gênero, ora aproximando-se do conto, ora aproximando-se da crônica, ou por vezes sendo quase um ensaio. Muitos dos textos reunidos neste livro foram publicados como crônicas no Jornal do Brasil, para onde Clarice escrevia semanalmente de 1967 a 1972.
Assim como o conto que dá título ao livro, muitos dos textos apresentam algo de autobiográfico, trazendo recordações da infância da autora em Recife, alguma personagem que marcou seu passado, etc. Através da recordação de fatos do seu passado, Clarice Lispector busca nos contos fazer uma investigação psicológica de autoanálise.
Felicidade clandestina:
Considerações sobre o conto e a escrita clariceana
O conceito de crueldade, quando aplicado a uma criança, sempre choca e provoca mal estar. É como se julgássemos impossível que alguém muito jovem estivesse corrompido e apresentasse comportamento iníquo. Crianças trazem sempre aos nossos olhos a imagem da inocência, da credulidade, e imaginá-las sendo maldosas fere profundamente nossa crença no ser humano, no mundo e na racionalidade.
Com parte dos contos rememorando sua meninice em Recife, a leitura de Felicidade Clandestina, no livro homônimo de Clarice Lispector, nos fere um pouco, ao mesmo tempo em que nos obriga a rever conceitos e expectativas sobre a infância. Clarice mostra-se hábil artesã, tece um enredo que delicia ao mesmo tempo em que machuca: a história da menina pobre, que não pode comprar livros, e sua completa submissão à impiedade da outra criança, que se compraz com seu desejo expresso de ler um determinado livro, comove e revolta.
paixão revelada, e por isso mesmo escravizadora e humilhante, já foi vivida por todos em algum momento da vida. O sentimento de estar disponível para outrem, sujeitado ao seu poder, e, principalmente, o fato de ser exatamente uma criança exercendo tal poder sobre outra, com certeza nos remete à infância, a alguns momentos da vida em que cada um de nós sentiu e sofreu a situação de um lado, ou, o que até mesmo pode ser pior, de outro.

O estudo e análise do ser humano: conhecer-se para ser
Através de um mergulho no universo interior das personagens, Clarice traz à tona temas existencialistas e as contradições, dúvidas, inquietudes do ser humano. É importante ressaltar que a autora conduz o sujeito (as personagens) para um inevitável isolamento. Assim, em toda a obra de Clarice Lispector teremos personagens desconfiadas, inadaptadas ao meio em que vivem, com temores e inquietações.  Como a preocupação de Clarice é com a personagem em si e sua viagem ao interior do ser humano, o cenário físico ao redor é muitas vezes deixado de lado. A não ser que o cenário interfira diretamente ou ativamente na história. Por isso, dificilmente encontramos passagem descritiva nos contos de Clarice. Além disso, a escritora utiliza uma linguagem subjetiva, abusando de adjetivos, metáforas e comparações. Do ponto de vista formal, a narrativa utiliza o estilo circular, que consiste na repetição sistemática de palavras, expressões ou frases, para conseguir um efeito enfático. 
Clarice Lispector emprega o processo narrativo do fluxo da consciência, que é o rompimento dos limites de espaço e de tempo. O pensamento fica solto. Pequenos fatos exteriores provocam uma longa viagem abstrata das ideias, sem se basear numa estrutura sequencial da narração.
Ela faz os personagens viverem o processo chamado de “epifania”, ou seja, revelação. Em outras palavras, de repente, diante de ocorrências mínimas, o personagem se descobre e vê revelada uma realidade mais profunda. Muitas vezes, ele mesmo não consegue perceber com clareza que realidade é essa, porém sua vida ou sua visão mudam.  A menina que se torna “amante” do livro é um exemplo dessa situação epifânica. A condição de mulher faz Clarice muito sensível aos problemas das pessoas carentes. A marca registrada de seus personagens é serem tipos desprezados aos olhos da sociedade (meninas, velhas, adolescentes), mas ricos em sua interioridade.
Ainda integra a característica de mulher-autora a visão do nascimento da mulher na menina. São numerosas as personagens-meninas que, de uma forma ou de outra, se tornam adultas a partir de experiências aparentemente corriqueiras.
Toda essa exaustiva pesquisa do interior do ser humano – a subjetividade procurando se orientar envolvida pela objetividade – pode passar despercebida ao leitor desatento. Isso porque os textos são muito pobres de fatos, aliás, propositalmente pobres. Cenas comuns, desenhadas sem rebuscamentos, mas com bastante precisão de detalhes, podem esconder a profundidade do conteúdo analítico. As palavras não são raras, os aspectos descritos e narrados parecem irrelevantes, a sintaxe não se complica. O campo da linguagem fica livre para o leitor acompanhar os pensamentos que movem as intenções dos personagens à procura de se ajustarem com eles mesmos.

Análise do conto
Em Felicidade Clandestina a narradora recorda sua infância no Recife. A introdução do conto apresenta as duas protagonistas da narrativa, salientando os aspectos negativos de uma, que serão bem mais evidentes que os da outra: “Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme...” Mas, apesar de todos esses defeitos, ela era agraciada com algo que a tornava privilegiada: “possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria”. E isto a tornava superior a todas suas amigas. A outra, apesar de ser como as demais meninas: “bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres”, não tem acesso aos livros. Por isso, ela, que é a narradora em 1ª pessoa, relata a sua experiência de amá-los e não poder desfrutá-los.
A filha do dono da livraria não aproveitava os livros e, segundo a narradora, nem as outras meninas, uma vez que ela, até mesmo nos aniversários, não tinha a gentileza de dar um livro de presente: “em vez de pelo menos um livrinho barato”. Nesse ponto chegava a ser irônica, pois seu presente favorito para as outras eram cartões postais da loja do pai, como para mostrar-lhes que o mundo dos livros, para elas, era inacessível, sempre ficariam distantes dele, enquanto ela detinha o poder de possuí-los.
Por isso, ela vivia pedindo-os emprestados àquela colega filha de dono de livraria. Essa colega não valorizava a leitura e inconscientemente se sentia inferior às outras, sobretudo à narradora.
Em relação a esse comportamento da menina que lhe dava cartões postais da livraria do pai, a narradora era indignada: “ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas”. Por entender que possuir livros significava ter poder sobre os que não tinham, a filha do dono da livraria resolveu que às outras não daria esse gostinho de querer mudar esta situação. Pois é preciso entender que para essas meninas leitoras o seu adentramento na ambiente dos livros seria uma opção pela liberdade “a ponto de entendê-lo enquanto relação amorosa”.
Essa menina era mesmo cruel e com a narradora exerceu com calma ferocidade o seu sadismo, tanto que a pobre nem percebia, tal era a sua ânsia de ler: “continuava a implorar-lhe emprestado os livros que ela não lia”. Até que chegou o dia em que começou a exercer sobre a outra uma tortura chinesa, a informou que possuía As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, que para esta “era um livro grosso, [...], era um livro para se ficar vivendo, comendo-o, dormindo-o”.
Para a nossa narradora, os livros lhe davam “um lar permanente”, e um lar que ela “podia habitar exatamente como queria, a qualquer momento.” Porém, para ela, o livro estava longe de suas posses. Então, foi logo pedindo emprestado o tal, a outra pediu que passasse por sua casa no dia seguinte e ela o emprestaria.
            Para a narradora, o livro é o objeto do seu desejo e para este não há limites: “Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam”. Ao chegar o tão esperado dia seguinte, foi à casa da outra “literalmente correndo”. Mal sabia a ingênua menina que a colega tinha um plano diabólico. A dona do livro, quando a narradora chegou até sua casa e pediu-o, disse que o havia emprestado à outra menina, que ela voltasse no dia seguinte. Ficou boquiaberta, mas seu desejo era tal que, a esperança invadiu novamente seu ser e ela andou pelas ruas pulando, sonhando: “guiava-me a promessa do livro”. No dia seguinte, outra desculpa, o livro ainda não havia sido devolvido. E assim se seguiram os dias. O terror por não ter o livro para ler e a outra se divertindo em alimentar uma esperança era uma cena digna de pena: “eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer”.
            Então todos os dias, invariavelmente, ela passava na casa e o livro não aparecia, sob a alegação de que já fora emprestado. Esse suplício durou muito tempo. A sua relação com o livro é tal, que todo esse sofrimento começou a afetar o seu físico: “eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados”. Tudo isso porque o ato da leitura para ela era uma necessidade, padecia com o não-ler, tinha uma fome que precisava ser saciada, pela chance que a outra poderia lhe dar, ao emprestar-lhe o livro tão esperado.
            Chegou finalmente o dia da redenção da narradora, quando todos seus males seriam sarados. Certo dia, a mãe da colega cruel interveio na conversa das duas e descobriu que sua filha estava enganando a outra menina: “mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!”
            E essa descoberta não era a pior, mas sim a descoberta, horrorizada, da filha que tinha. A narradora seria agora agraciada pelo tão almejado objeto do desejo: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser”. Esse “por quanto tempo quiser” significava muito mais do que dar-lhe o livro, ela teria posse sobre o seu objeto do desejo. Toda a sua espera, sua insistência, finalmente era recompensada.
            Para a narradora foi impossível descrever-nos o que sucedeu assim que recebeu o livro na mão. Ela só lembrava que “o segurava firme com as duas mãos, comprimindo contra o peito.” Imaginamos que agiu assim por temer que algo ou alguém a separasse dele. Esqueceu até mesmo quanto tempo levou até chegar à casa. Porém, isso não importava, o que valia a pena era sentir que o livro estava com ela: “meu peito estava quente, meu coração pensativo”. Isso indica um sentido diferente para a leitura.
            Para o leitor do conto, a menina que tanto queria o livro ao conseguir possuí-lo, devorá-lo-ia em pouco tempo. Mas não foi isso o que aconteceu. Ela chegou em casa e não começou a ler: “fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter”. Algum tempo depois, leu algumas partes, que considerou maravilhosas, fechou-o novamente, indo fazer outras coisas, fingia que não sabia onde guardava o livro, achava-o, lia novamente.
Essa foi a felicidade clandestina da menina. Fazia questão de “esquecer” que estava com o livro para depois ter a “surpresa” de achá-lo.
            A narradora “criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade”. A felicidade em ter acesso aos livros, à leitura, que para ela era clandestina, pois não possuía livros e nem condições financeiras que possibilitassem um maior contato com eles. Esta “felicidade clandestina” significa que ela está muito feliz por realizar algo para ela ilegal, pois o fato de possuir um livro, era, muitas vezes, na sociedade antiga, um privilégio dos mais favorecidos economicamente e continua sendo até hoje. Assim, podemos afirmar que a personagem narradora quebrou os paradigmas dessa diferença social, e por isso, cometeu grave delito, com sua insistência e amor aos livros. Conseguiu ter acesso ao seu objeto desejado.
            Ao realizar algo proibido, a narradora sabe que deveria ter orgulho, pois conseguiu alcançar seu objetivo, e pudor, pois poderia perder o que conseguiu, além disso, estava vivendo no ar. Agora ela “não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu ‘amante’”.
O ponto central desse texto é o conceito de “felicidade”. Nele, a escritora parece se questionar “afinal, o que é felicidade?”. A menina presente no conto parece conhecer bem o dito popular “felicidade é bom, mas dura pouco”, uma vez que ela se utiliza de todas as formas para prolongar seu sentimento de felicidade. Dessa forma, sua felicidade aparece como um sentimento “clandestino”, já que nem ela mesma pode se conscientizar de sua própria felicidade para que esse sentimento não acabe. Conclui-se, portanto, que a felicidade deve ser descoberta em todos os momentos e nas coisas mais simples, inclusive no ato de ler.





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