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2 de nov. de 2015

Análise da tela "A primeira missa no Brasil", de Cândido Portinari


A arte revisando criticamente a história:
o índio ausente se faz visto



CÂNDIDO PORTINARI

               1903 - Nasce em Brodósqui, no Estado de São Paulo. Filho de imigrantes italianos. Cursa apenas o curso primário.
               1918 - Vai para o Rio e, na Escola Nacional de Belas-Artes, estuda pintura.
               1929-1931 - Temporada em Paris.

               1931 - Volta renovado, com mudança na estética das obras, valorizando mais as cores e a ideia da obra. Retrata o povo brasileiro nas suas telas.


               1936 - Painéis no Monumento Rodoviário, na Via Dutra; afrescos do MEC (Rio), temática social, que será o fio condutor de toda a sua obra a partir de então.

               1943 - Executa oito painéis conhecidos como Série Bíblica, com influência  picassiana de “Guernica” e sob o impacto da Segunda Guerra Mundial.
               No  final da década de quarenta deixa de lado a dramaticidade expressiva e a temática social e busca temas históricos através da afirmação do muralismo.
               MURALISMO: arte e técnica da pintura ou da composição de murais. Corrente artística do século XX caracterizada pela execução de grandes pinturas murais sobre temas populares ou de propaganda nacional.
               1948 - Portinari se autoexila no Uruguai, por motivos políticos, onde pinta o painel “A Primeira Missa no Brasil”. Dá início à exploração dos temas históricos através da afirmação do muralismo.
               1949 - Grande painel “Tiradentes”, episódios do julgamento e execução do herói brasileiro. Por este trabalho recebeu, em 1950, a Medalha de Ouro do júri do Prêmio Internacional da Paz  (Varsóvia).
               1952 - Painel com temática histórica:” A Chegada da Família Real Portuguesa à Bahia”, e esboços dos painéis “Guerra e Paz”, de 14m x 10m cada, doados pelo governo brasileiro à  sede da ONU.
               1954 - Realiza o painel “Descobrimento do Brasil”. Tem sintomas de intoxicação por tintas.
               1961 - O pintor tem diversas recaídas da doença que o atacara em 1954 - a intoxicação pelas tintas.
                1962 - Tendo produzido cerca de cinco mil obras, Cândido Portinari falece no dia 6 de fevereiro, vítima de intoxicação pelas tintas que utilizava.

Característica da produção de Candido Portinari

               Forte influência cubista: uso de figuras geométricas; geometrização das formas.
               Deformação geométrica das pessoas.
               Uso de tons mais escuros.
               Expressionismo: sua produção exprime a crueza da realidade dos brasileiros. Sua abordagem é realista, não idealiza a condição dos sofrimentos do homem nascido aqui. A miséria, a fome e também a revisão crítica da história da pátria compõem sua obra.
               Valorização da cultura brasileira ao tematizar o brasileiro e sua condição de lutador frente às dificuldades do viver.
               Retrato dos tipos humanos do Brasil: do trabalhador braçal ao sofredor nordestino.
               Temática social. 


Na "Primeira missa"

               Revisão crítica da história brasileira: ao tematizar a “primeira missa”, Portinari “apaga” a presença do índio, tal como a aculturação fez com o nativo. Na perspectiva de Portinari, a primeira missa não fora oferecida a todos, mas apenas a uma elite dominante formada por religiosos, comerciantes e integrantes da coroa portuguesa.
               O tema está retratado com uma criticidade tipicamente moderna, diferente do que acontece na produção de Victor Meirelles. O cenário apresentado é artificial, pouco natural, o que denota a pouca reverência religiosa da tela. No centro, uma grande caixa representa o altar, mas não há ali uma figura explícita que remonte à cruz católica, a não ser a da bandeirola, posta de lado, que sugere mais uma representação de um símbolo militar, já que o militarismo está presente na produção. Portinari dispõe em grupos frades, fidalgos, marujos e soldados.
               Não há presença de vegetação ou qualquer alusão à flora e fauna brasileira.

Comparando as telas: Victor Meirelles e Cândido Portinari

Enquanto a versão de Vitor Meirelles [era] nitidamente naturalística, subordinada à realidade histórica, a detalhes pitorescos da natureza, com índios espantados em volta (…) em Portinari, essa suposta realidade histórica não existe. Tampouco se preocupa ele com as descrições da carta de Pero Vaz, com o pitoresco (natureza exuberante) intrínseco à cena, paisagens e personagens coloridas, mataria tropical densa, selvagens nus ou seminus, de cocares e penas, bichos.

Análise da tela de VICTOR MEIRELLES


A arte fabricando a história


A CARTA DE CAMINHA: O ENCONTRO ENTRE COLONIZADOR E COLONIZADOS

Os portugueses chegaram ao Brasil em suas expedições no dia 22 de abril, do ano de 1500. Logo avistaram um monte – o qual foi denominado Monte Pascoal –, depois seguiram para um lugar mais reservado no sul da Bahia, em Porto Seguro, mais especificamente na praia da Coroa Vermelha. Foi ali onde se realizou a primeira missa no Brasil.
A primeira missa brasileira foi realizada pelo frei Henrique de Coimbra com a ajuda de seus assistentes, poucos dias após o descobrimento do Brasil, em 26 de abril. Nela estavam presentes portugueses e índios da região. Existem poucos relatos sobre o desenrolar dessa missa, mas, pelo que se sabe, foi uma cerimônia consideravelmente fácil. Os índios por natureza eram ligados a certos tipos de rituais, assim, facilitaram o processo de realização da missa. Conta-se também que os índios ao verem os portugueses em seus preparativos, talhando a madeira com ferramentas de ferro, ficaram surpreendidos e admirados.

A PRIMEIRA MISSA

Pero Vaz de Caminha, escrivão mais notório da esquadra portuguesa, narrou em sua carta ao rei de Portugal alguns de seus pontos de vista, além de relatos sobre a primeira missa. Depois de quarenta e sete dias de viagem pelo mar, todos os preparativos para a missa encontravam-se terminados. À frente da missa estava o frei, oito missionários e franciscanos, além de alguns sacerdotes. Um altar foi erguido, e nele, o capitão Pedro Álvares Cabral portando “a bandeira de Cristo” convocou seus  marinheiros, oficiais e subalternos, que totalizavam mil homens, todos armados à maneira europeia. Da praia do continente,


cerca de duzentos índios acompanhavam atentamente a missa que se passava naquela ilha, a qual foi “ouvida por todos com muito prazer e devoção”.
Caminha também faz esta citação: “E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles (os índios) se levantaram conosco e alçaram as mãos, ficando assim, até ser acabado: e então tornaram-se a assentar como nós… e em tal maneira sossegados, que, certifico a Vossa Alteza, nos fez muita devoção.”

A MISSA E A CATEQUIZAÇÃO

Ao terminar a missa, o sacerdote subiu em uma cadeira alta e fez uma “solene e proveitosa pregação”, onde foi narrada a vinda dos portugueses. Com a concretização da missa, acreditava-se que a ideia de uma futura catequização dos indígenas não seria algo difícil, pois estes, conforme relatos de Caminha, foram muito respeitosos durante a cerimônia, assim, apenas bastaria uma seleção de bons padres e a conversão dos índios ao catolicismo seria possível.

INFORMAÇÕES GERAIS SOBRE A TELA E A CAPTURA DO MOMENTO HISTÓRICO

- Quatro dias depois da chegada de Pedro Álvares Cabral no Brasil, exatamente num domingo de páscoa, foi celebrada a primeira missa no Brasil pelo

Frei Henrique Soares Coimbra em Porto Seguro na Bahia. A missa foi retratada pelo pintor Victor Meirelles (1832-1903), irmão do também pintor Aurélio de Figueiredo, autor da tela acima. O pensamento cristão dominante está representado pela cruz, em paralelo a aceitação e curiosidade indígena demonstrado na tela.

Sobre o autor: Victor Meirelles
- O autor da “Primeira Missa no Brasil” nasceu em Desterro, atual Florianópolis, capital do Estado de Santa Catarina, em agosto de 1832, na casa atualmente transformada em museu e na rua que hoje leva o seu nome.
- A pintura foi produzida em Paris, durante a longa viagem de estudos do artista (1853–1861) como bolsista da Imperial Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro. 
- Tentativa de retratar o país e sua cultura.
- Projeto civilizatório: Família Real no Brasil - 1808
- 1816 – Missão Artística Francesa no Brasil: objetivo: desenvolver a cultura artística no Brasil. Esse fato se consolidou mais tarde, em 1826, com a criação da Imperial Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro.
- 1822 – Independência do Brasil: necessidade de construção de uma identidade nacional.
- Referência ao descobrimento do país
- Identidade brasileira associada ao catolicismo
INTERTEXTUALIDADE:  “Lê Caminha, pinta e então caminha”: CConselho dado por Manuel Araújo Porto-Alegre, diretor da academia de Belas Artes do Brasil produzida após a leitura da Carta do Achamento, de Pero Vaz de Caminha.
- Nativismo; uso de cores vivas.
- Presença do nativo brasileiro, indígena.
- Portugueses posicionados ao lado direito da tela, ao lado do mar. Ideia de invasão, mesmo com a ausência de atos violentos (trata-se de uma invasão cultural).
- Polarização na tela: desencontro, mundos antagônicos.
- Perfeição na representação do corpo humano.
- Predominância da cultura portuguesa: catolicismo.
- Cruz no centro: imposição religiosa, aculturação indígena.
- Índios: descontraídos, curiosos e irreverentes.
- Imposição X conversão

Victor Meirelles: o pintor e sua colaboração no projeto de construção nacional

O autor da “Primeira Missa no Brasil” nasceu em Desterro, atual Florianópolis, capital do Estado de Santa Catarina, em agosto de 1832, na casa atualmente transformada em museu e na rua que hoje leva o seu nome. Seu interesse precoce pela aprendizagem do ofício de pintar, habilidade que começou a desenvolver quando ainda era menino e vivia em sua ilha natal, fez com que,  aos 14 anos  incompletos, fosse conduzido ao Rio de  Janeiro para integrar o grupo de estudantes da Imperial Academia de Belas Artes, onde iniciou uma trajetória de estudos que o levou ao Prêmio de Viagem à Europa, nos principais centros artísticos de então, na Itália e na França.

PROJETO CIVILIZATÓRIO DO BRASIL
A “Primeira Missa no Brasil”, antes de ser a produção isolada de um artista, é uma síntese visual do “Projeto Civilizatório” de cunho nacionalista do Segundo Império. Por isso, para compreender esta pintura é necessário ir àquele contexto.




A “Primeira Missa no Brasil” é o resultado de uma complexa rede de relações entre as ideias e utopias que se desenvolveram dentro do chamado “Projeto Civilizatório”, presente no imaginário da elite cultural e política do século XIX brasileiro. Este projeto se torna mais evidente, de forma direta ou indireta, com a transferência da Corte Portuguesa ao Rio de Janeiro, em 1808, e se consolida com as monarquias que se seguiram depois (1822–1889).
Com a vinda da Corte, o Rio de Janeiro se modernizava, perdendo aos poucos o aspecto colonial. Em torno dela se desenvolveu uma cultura laica, mundana, cortesã e aristocrática. A Corte divertia-se com touradas, cavalhadas, teatros, saraus e musicais. É neste cenário que emergiu a primeira academia de arte do País.
Devido a mudanças políticas entre Portugal e a França, como parte de uma estratégia de reaproximação dos dois países, que teria surgido a ideia de trazer para o Brasil uma Missão Artística Francesa, em 1816, com a finalidade de institucionalizar o ensino artístico no Brasil. Este fato se consolidou mais tarde, em 1826, com a criação da Imperial Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro.
O País se firmava como nação independente. Pensava-se em criar uma identidade nacional, e a arte era considerada um lugar privilegiado para pensar a sociedade e para inventar uma nova identidade para a jovem nação, independente desde 1822.


O índio brasileiro e o movimento romântico: o nativo como símbolo nacional

É no movimento literário romântico que vamos encontrar a figura do índio tomando forma desde 1826, quando o francês Ferdinand Diniz, empregado consular, chama a atenção dos brasileiros para a necessária substituição das tendências clássicas em favor das características locais. Defendia-se a descrição da natureza e dos costumes, nos quais o índio devia ser valorizado como primeiro e mais autêntico habitante do Brasil.
Assim, a história da Imperial Academia de Belas Artes e a produção dos seus alunos não podem ser dissociadas das significações maiores do Império. Esta história ainda está por ser mais bem contada, principalmente no que diz respeito à existência de um projeto civilizatório associado à construção do Estado e da nação.

A “Primeira Missa no Brasil”

Imagem simbólica da cultura brasileira, a “Primeira Missa no Brasil”, assim como seus numerosos estudos preparatórios, hoje fazem parte das coleções do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro sob o tombo nº 901. Foi produzida durante o Império de D. Pedro II, na França, entre 1859 e 1860, chegando ao Brasil em 1861.
A “Primeira Missa no Brasil” tem importante papel na construção de uma representação sobre o “Descobrimento” e sobre a identidade brasileira vinculada ao catolicismo e ao sentido de conversão que a navegação portuguesa trouxe consigo, o que amplia a importância desta pintura na construção do nosso imaginário cultural.
Em 1845, D. Pedro passou a custear o Prêmio de Viagem, aberto anualmente, que financiava estudos de alunos da Academia de Belas Artes no Exterior. O Imperador recebeu o título de Fundador e Protetor Perpétuo da Academia Imperial; proteger a Academia e os artistas era também uma forma de garantir a produção da iconografia oficial. Da Academia e de seus artistas, além da pintura “Primeira Missa no Brasil”, saíram os inúmeros retratos, as cenas familiares e de poder da Família Real que até hoje ilustram nossa história. A pintura histórica era o gênero mais valorizado na Academia em meados do século XIX. Como bem explicita Jorge Coli (1998: 117)
Meirelles atingiu a convergência rara das formas, intenções e significados que fazem com que um quadro entre poderosamente dentro de uma cultura. Essa imagem do descobrimento dificilmente poderá
vir a ser apagada, ou substituída. Ela é a primeira missa no Brasil. São os poderes da arte fabricando a história.
Os professores da Academia de Belas Artes e o corpo governamental do país estavam esperando que surgissem talentos.

Meirelles: garoto prodígio

Antes de Victor Meirelles a Academia enviou outros artistas para a Europa, através do sistema de bolsas de estudos, mas eles produziram pouco e voltaram logo. O primeiro que realmente se vê nos documentos e que tinha noção do que estava acontecendo é o pintor catarinense. Ele foi para a Europa e atendeu às exigências da Imperial Academia no Brasil nas obrigações dele esperadas. Enquanto os outros artistas mandavam um desenho ou dois, Victor Meirelles mandava dez ou vinte. Então o Imperador e os intelectuais da Academia sentiram que encontraram o artista que procuravam. E é por isso que Victor Meirelles conseguiu a prorrogação da bolsa de estudos por oito anos. O período normal era apenas de três anos.
Uma vez feito o primeiro esboço da “Missa”, Victor Meirelles enviou-o para a Academia no Brasil. A elite cultural queria criar esse tipo de imagem para ficar na memória cultural do País. Por isso, uma vez aceito o esboço da “Primeira Missa no Brasil”, o pintor de Desterro ganhou o financiamento para mais dois anos de estada na França e para as despesas da execução da obra.
Victor Meirelles analisou vasta documentação sobre o índio e sobre o Brasil, e também A carta de Caminha. Estudou a carta com afinco para representar a missa descrita por Caminha.


Antes de ser produto da mente isolada de um artista, a “Primeira Missa no Brasil” é uma síntese visual do projeto civilizatório de cunho nacionalista do  Segundo Império brasileiro, e Victor Meirelles de Lima foi o homem que concretizou em forma de pintura as ideias deste projeto.
Além de estudar a carta de Caminha e de seguir uma minuciosa orientação de Manuel de Araújo Porto Alegre, há um outro fato importante a considerar na construção da obra em questão: Victor Meirelles buscou inspiração para a cena principal de sua obra em outra missa, a do pintor Francês Horace Vernet (1789–1863). A missa pintada por Vernet intitula-se “Première messe en Kabyli” (1853), lembrando que o procedimento por citação é absolutamente legítimo dentro do gênero Pintura Histórica. O desconhecimento das regras da pintura histórica pela crítica de arte nacional causou grande polêmica quando a pintura chegou ao Brasil, e Victor Meirelles inclusive foi acusado de plagiário.


Há ainda a hipótese de que o tema da missa era então recorrente. No Museu Granet, na Provença, França, encontramos outra missa intitulada “Une messe au Louvre pendant la Terreur”, datada de 1847, de autoria de Marius Granet (1775–1849) . O altar no centro, com um padre levantando a hóstia, e outro de joelhos segurando suas vestes lembram a cena principal da “Missa” de Victor Meirelles. Este procedimento também teria sido legítimo dentro do contexto cultural estético das academias de arte do século XIX.
Abandonado e discriminado pelos republicanos, Victor Meirelles morreu pobre em 1903, no Rio de Janeiro.


Uma parte do texto acima foi adaptado da página: http://www.dezenovevinte.net/obras/vm_missa.htm


29 de out. de 2015

Aleijadinho: paixão, glória e suplício

ANÁLISE FÍLMICA

A história do gênio que amou, sofreu e se tornou uma glória das artes brasileiras
  
Direção:
Geraldo Santos Pereira e Renato Santos Ferreira.
Filme lançado em 2000, o longa retrata, através de flashback, a trajetória de Antônio Francisco Lisboa - o escultor mineiro que ficou conhecido como Aleijadinho. Suas obras estão principalmente nas cidades de Ouro Preto, Sabará, São João Del Rei e Congonhas.

Contexto histórico:

Século XVII: epopeia dos bandeirantes: ouro, pedraria e muita ambição nas terras brasileiras. É o momento em que surge a Vila Rica de Albuquerque, antigo nome da atual Ouro Preto.
Século XVIII: chegam ao Brasil artistas, artesãos e arquitetos portugueses, além de milhares de escravos africanos. É o grande momento do resplendor artístico e religioso em Minas Gerais, momento este que terá como figura ilustre Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.
No plano político, há luta pela emancipação e liberdade conduzida pelos inconfidentes e reprimida de forma violenta pelo colonizador.
Século XIX (1858): um historiador, Rodrigo José Ferreira Bretas, ouviu da parteira Joana Lopes, nora de Aleijadinho, a história narrada no filme “Aleijadinho: paixão, glória e suplício”.

A produção fílmica começa com um percurso histórico por Vila Rica. Rodrigo Bretas caminha pela cidade enquanto nos conta sobre o arraial onde Antônio Dias e outros bandeirantes encontraram as primeiras jazidas de ouro. A partir desse fato, vieram para as muitas minas do Brasil levas de portugueses e escravos. O historiador nos conta sobre o Arraial do Ouro Podre, o Morro da queimada... Fala sobre as casas de fundição, onde o ouro era trabalhado, e também conta sobre as revoltas causadas pela cobrança do quinto, o exorbitante imposto. São citados os primeiros revoltosos contras os abusos da metrópole -  Pascoal da Silva, Felipe dos Santos, Chico Rei – e o fim terrível que tiveram. A época é marcada por humilhações, miséria e sofrimento para os brasileiros e escravos do período.
Ainda em seu passeio pela cidade, Bretas apresenta os chafarizes, os quais, além de serem responsáveis pelo fornecimento de água às casas, também eram onde os amantes da cidade se encontravam, a exemplo do enlace amoroso de Maria Doroteia de Seixas e Tomás Antônio Gonzaga, eternizados na obra Marília de Dirceu.
Rodrigo Bretas vai até a casa de Joana, mulher em torno dos cinquenta anos, que fora nora de Aleijadinho (ela era casada com Manuel, filho do artista, que foi morar no Rio de Janeiro assim que a doença do pai iniciara – o filme não o apresenta). Joana foi testemunha ocular de muitos dos sofrimentos de Antônio Francisco.

Enredo do filme:

A primeira cena traz Bretas e Joana sentados na cozinha da casa em que Aleijadinho morrera 40 anos antes. O historiador diz à parteira que tudo o que ela guardou de lembrança sobre o artista precisa ser preservado. A ex-escrava então relata a história do escultor desde o seu nascimento. Joana afirma que Antônio Francisco Lisboa nasceu em 29 de agosto de 1738, no Bairro de Antônio Dias. Filho do arquiteto português Manoel Francisco Lisboa e de uma escrava, Isabel. O pai, Manoel, afirma ao tomar o filho nos braços:
“ – Será um artista e deixará as meninas doidas” – fazendo referência ao fato de que o bebê recém chegado ao mundo continuaria os passos do seu pai, que também era artista. Dessa forma, ainda menino, Antônio Francisco acompanha o pai em seus trabalhos, nas restaurações, e, pouco a pouco, absorve o conhecimento e revela apurado talento.

Há uma passagem de tempo, e Antônio Francisco já aparece adulto.

Influências:
Em sua trajetória, Antônio Francisco Lisboa recebe influência de apreciadores da arte e de artistas de renome como João Gomes da Silva e Francisco Xavier de Brito. João Gomes reconhece a beleza do traçado de Francisco. A primeira obra do jovem artista foi o busto de uma mulher, em 1752: um desenho para o chafariz do pátio do Palácio dos Governadores, em Ouro Preto. Seu estilo aproximava-se do Barroco e do Rococó. Enquanto o primeiro movimento artístico tem como principais características o contraste, a dramaticidade e a exuberância, o segundo privilegia a delicadeza, temas leves e cores claras.

Visão sobre a escravidão:
O artista presencia um negro apanhando e várias pessoas em volta gritando. A cena foi rodada no Pelourinho situado próximo à Igreja São Francisco de Assis, um dos principais pontos turísticos de Mariana – cidade que fica a 11Km de Ouro Preto. Na cena seguinte, o artista discute com seu pai a situação dos negros no país. Apesar de filho de português, Antônio Francisco não esquece seu sangue africano. Alforriado no batismo, o jovem não consegue ficar alheio à situação de sofrimento e desprezo vivida pelos seus irmãos de cor, os negros que viviam em Vila Rica e eram duramente explorados e maltratados nas minas de ouro. Perante seu pai, homem português que acha que Aleijadinho deve simplesmente esquecer suas origens, o rapaz assume sua raça, sua cor. Mas segue o conselho do pai: “- Cuide da tua arte, apenas da tua arte.” Mesmo assim, Antônio Francisco permanece frequentando o lugar de trabalho dos escravos, os quais servirão de inspiração para a originalidade de suas produções.

Vida amorosa: Outro ponto relevante da vida do artista, que é tratado no filme, é o envolvimento amoroso com Helena. Moça negra, bela e cheia de encantos. Nasce então um romance que será o motivo de alegrias e também de desencantos. É durante o desenrolar desse caso de amor que Antônio Francisco será convidado por Claudio Manuel da Costa para produzir a parte artística da capela de São Francisco de Assis juntamente com o pintor Manoel da Costa Athaíde, um dos principais artistas do barroco mineiro. Essa capela se tornará a mais importante obra assinada por Aleijadinho em Ouro Preto, antiga Vila Rica.

 Estilo brasileiro: A amizade com Claudio Manuel da Costa, poeta árcade e um dos líderes da Inconfidência Mineira, propiciará a Antônio Francisco visitas à biblioteca do poeta. Com isso, Aleijadinho tem a possibilidade de ampliar seus conhecimentos e ainda, com base nos ensinos, estar seguro para abandonar o barroco e desenvolver um estilo próprio, um estilo brasileiro, uma abordagem rococó. Sua pretensão é desenvolver uma obra original, duradoura e que reflita o caráter do povo brasileiro. Sua produção é dividida em dois momentos: um são: as obras são serenas, delicadas; e o outro da fase enferma: as produções trazem expressões de angústia, de dor.

Período de lástimas
A doença: O pai de Antônio Francisco sofre um ataque e morre. Porém o maior sofrimento começaria ali, em torno dos quarenta e sete anos: uma doença terrível o assola, trazendo uma carga de dor quase insuportável, e o pior: a atrofia das mãos. Mestre Antônio, como era chamado, torna-se motivo de curiosidade entre as pessoas da cidade. A doença o fez perder os dentes, a boca entortou, o queixo e o lábio “caíram”, assumiu uma expressão de fera. Passa a sair de casa com trajes que encobriam todo o seu corpo; vai trabalhar muito cedo, na escuridão do fim da madrugada, para que não seja visto pela população. Mesmo assim, muitos veem vê-lo trabalhar. Vila Rica se pergunta qual seria a doença que atormenta Antônio Francisco, homem dado ao vinho, às mulheres e festejos: lepra, zamparina, febre tifóide, sífilis, escorbuto...? Para continuar produzindo, ata os instrumentos à mão e recebe a ajuda de Maurício, Januário e Agostinho, seus fiéis escravos e ajudantes.

A traição: No reduto familiar, sua esposa sente nojo daquele homem: a doença lhe deu uma aparência monstruosa, assustadora. Helena começa a trair Antônio Francisco com José Romão, tenente do governador Luis da Cunha Meneses, governador de Vila Rica.

Em certa ocasião, Luis da Cunha Meneses encomenda a Aleijadinho uma imagem de São  Jorge para uma procissão que ocorreria nos próximos dias. Tomado pelo ódio da traição, Antônio Francisco produz sim uma imagem, porém o “são Jorge” possuía a cara abobalhada e assustada de Zé Romão, amante de Helena e oficial de Meneses. Toda a cidade assiste ao ocorrido. Zé Romão vira motiva de piada. O fato desagrada Cunha Meneses. O governador envia Romão para o Rio de Janeiro. No entanto, Romão levará consigo Helena, esposa de Antônio Francisco Lisboa.
Aleijadinho não mostra nenhum tipo de reverência ao governador Meneses. Em uma das cenas do filme, Cunha Meneses é enxotado da igreja em que Antônio Francisco trabalha, no caso a capela de São Francisco de Assis.
O sofrimento físico, em decorrência da doença, e moral, pela traição de Helena, abatem ainda mais o artista mineira.
A inconfidência Mineira
A narrativa fala sobre um importante episódio da História do Brasil: a Inconfidência Mineira. Como Antônio Francisco era amigo do poeta Cláudio Manuel da Costa, presenciou algumas reuniões em que o escritor Tomás Antônio Gonzaga e outros intelectuais planejavam uma revolta pela independência de Minas Gerais. Quando os envolvidos são denunciados, Aleijadinho visita Cláudio Manuel na prisão. A cena parece ter sido rodada na Mina da Passagem, localizada no distrito de Passagem de Mariana. Atualmente, a mina transformou-se em um famoso ponto turístico da cidade, recebendo visitantes de todo o país. Durante a visita de Antônio Francisco, Cláudio Manuel fala ao amigo que foi Joaquim Silvério quem delatou o movimento. O poeta dá a entender que já sabia do interesse de Joaquim em pagar suas dívidas à coroa portuguesa, e não nos ideais dos parceiros.

Congonhas do Campo: Após os acontecimentos, o longa-metragem mostra Antônio Francisco de partida para Congonhas do Campo, em Minas Gerais. Ali ele construirá os famosos “profetas de Aleijadinho”: o conjunto de esculturas em pedra sabão feitas entre 1794 a 1804. Durante a construção, um dos escravos e ajudantes de Aleijadinho morre. Aos 72 anos Antônio Francisco retorna de Congonhas do Campo. Já bastante debilitado pela doença, perde a visão e fica dois anos acamado. Falece em 1814, aos 74 anos.

Fim do filme: Nesse momento a narrativa se desloca para o ano de 1858, quando a nora de Aleijadinho conversa com o historiador.
Joana mostra a Bretas o quarto no qual o escultor morreu e entrega a ele recibos e desenhos do artista que ainda estavam na casa. A ex-escrava desabafa sobre a possibilidade da obra de Aleijadinho estragar-se e do artista não ser lembrado com o passar do tempo. O historiador lembra à Joana que irá escrever sobre o escultor e que, além dele, muitos outros o farão e, assim, o artista e sua obra não serão facilmente esquecidos. A fala do historiador deixa clara a intenção do diretor em mostrar ao espectador a importância de registrar os patrimônios que temos – materiais, culturais ou imateriais – através de livros ou filmes (já que o enredo do longa é inspirado nos escritos do historiador Rodrigo José Ferreira Bretas). É possível deduzir, portanto, que além de preservar os patrimônios presentes no conteúdo da película - de extrema importância para a história do país - também é essencial a preocupação em conservar os meios pelos quais tal conteúdo foi registrado.


19 de out. de 2015

Análise da obra O pagador de promessas, Dias Gomes

Dados do autor

Dias Gomes (Alfredo de Freitas D. G.), romancista, contista e teatrólogo, nasceu em Salvador, BA, em 19 de outubro de 1922. Dias Gomes conquistou numerosos prêmios por sua atuação no Rádio e por sua obra para teatro, cinema e televisão. Poucas obras, no Brasil, foram tão premiadas quanto O pagador de promessas, que mereceu, dentre outros, a Palma de Ouro do Festival Internacional de Cinema de Cannes, em 1962. Outros trabalhos de Dias Gomes também foram distinguidos com os mais importantes prêmios nacionais em sua especialidade.

ASPECTOS ESTRUTURAIS
Publicada em 1959, trata-se de um texto escrito para teatro, ou seja, para ser levado ao palco, ser encenado. A peça é dividida em três atos, sendo que os dois primeiros ainda são subdivididos em dois quadros cada um. Após a apresentação dos personagens, o primeiro ato mostra a chegada do protagonista Zé do Burro e sua mulher Rosa, vindos do interior, a uma igreja de Salvador e termina com a negativa do padre em permitir o cumprimento da promessa feita. O segundo ato traz o aparecimento de diversos novos personagens, todos envolvidos na questão do cumprimento ou não da promessa e vai até uma nova negativa do padre, o que ocasiona, desta vez, explosão colérica em Zé do Burro. O terceiro ato é onde as ações recrudescem, as incompreensões vão ao limite e se verifica o dramático desfecho.
Tempo e espaço da narrativa
Tempo: a peça é contemporânea e universal. Podendo ser encenada em qualquer tempo.
Duração da história: 1 dia.
Há também a presença do tempo psicológico (flashbacks, lembranças)
Espaço: a história acontece no Estado da Bahia, na escadaria da igreja de Santa Bárbara.



QUESTÕES TEMÁTICAS
Intolerância, traição, intransigência, ambição, luxúria, sincretismo religioso e religiosidade.
A peça de Dias Gomes tem nítidos propósitos de evidenciar certas questões socio-culturais da vida brasileira, em detrimento do aprofundamento psicológico de seus personagens. Assim, ganha força no drama a visão crítica quanto:
a) à intolerância da Igreja católica, personificada no autoritarismo do Padre Olavo, e na insensibilidade do Monsenhor convocado a resolver o problema;
b) à incapacidade das autoridades que representam o Estado - no episódio, a polícia - de lidar com questões multiculturais, transformando um caso de diferença cultural em um caso policial;
c) à voracidade inescrupulosa da imprensa, simbolizada no Repórter, um perfeito mau-caráter, completamente desinteressado no drama do protagonista, mas muito interessado na repercussão que a história pode ter;       ·.
d) ao grande fosso que separa, ainda, o Brasil urbano do Brasil rural: Zé do Burro não consegue compreender porque lhe tentam impedir de cumprir sua promessa; os padres, a polícia, a imprensa não conseguem compreender quem é Zé do Burro, sua origem ingênua, com outros códigos culturais, outras posturas. Além disso, a peça mostra as variadas facetas populares: o gigolô esperto, a vendedora de quitutes, o poeta improvisador, os capoeiristas.
O final simbólico aponta em duas direções: em primeiro lugar a morte do Zé do Burro mostra-se com fim inevitável para o choque cultural violento que se opera na peça: ninguém, entre as autoridades da cidade grande, é capaz de assimilar o sincretismo religioso tão característico de grandes camadas sociais no Brasil, especialmente no interior nordestino. Em segundo lugar, a entrada dos capoeiristas na igreja, carregando a cruz com o corpo, sinaliza para rechaçar a inutilidade daquela morte: os populares compreenderam o gesto de Zé do Burro.
e) Há ainda a mistura do sagrado com o profano: um exemplo é a coexistência da Igreja e de “uma vendola, onde também se vende café, refresco e cachaça”, no mesmo espaço físico. A igreja de um lado, representando a oficialidade (defendida, no decorrer dos fatos, pela força policial), e a vendola do outro, como o símbolo do mundano, salientado principalmente pela alusão à cachaça.
f) Pluralidade e mistura dos mais variados estilos e gêneros, o que é a presença, no mesmo espaço público, do verso e a prosa, o sério e o cômico, o português, o espanhol e o “portunhol”, os discursos católicos e as mandingas, os cantos de capoeira, a poesia popular (os abecês), a entrevista e o texto jornalístico, os anúncios de feira, entre outras vozes que, interpenetrando-se, corrompem a pureza dos estilos.

Os choques entre a crença ingênua e a religião dogmática; a credulidade simples e a armação maliciosa; a sinceridade das intenções e a completa distorção dos fatos; a inocência e a malícia; a verdade e seu falseamento são alguns dos componentes do embate entre a cultura do campo e a da cidade, cuja raiz é a má vontade que coloca a incomunicabilidade como obstáculo intransponível a dividir as pessoas.

Elementos simbólicos:
A escadaria da igreja:
A grande maioria das cenas se passa na escadaria da Igreja Santa Bárbara. Ali, Zé do Burro, o protagonista, viverá seus momentos de maior alegria (por ter quase cumprido sua promessa e salvo seu burro Nicolau) e de maior agonia (por não reconhecer mais a mulher, por não compreender e não ser compreendido mais pela religião e, sobretudo, por não compreender os códigos morais e de conduta da grande cidade). Ali naquela escadaria, Zé do Burro encontrará seu fim. No entanto, a escada remete ao caminho a ser percorrido para a elevação espiritual, ou seja, o trajeto que Zé teria que percorrer para cumprir seu voto religioso.
A porta da igreja:
Considerando a escadaria como trajeto em busca do espiritual, a porta da igreja é justamente o que separa os dois mundos apresentados na obra de Dias Gomes: o universo sincrético dos populares, os quais estão fora da Igreja, e o mundo “oficial” do catolicismo, representado pelo interior da igreja. É atravessando a porta que o protagonista cumpriria sua promessa. Porém, essa passagem lhe é negada, o que impede a ascensão espiritual de Zé do Burro.
Zé do Burro: o nome dado ao personagem não é à toa. Primeiramente, é interessante observar que, o burro da história possui uma identidade, ele é Nicolau, enquanto que seu dono, mesmo humano, tem uma identidade dependente do animal, é o Zé do Burro. Zé é um nome genérico, traz consigo a ideia de “qualquer um”, não é sem razão que popularmente diz-se que uma pessoa sem importância é um “Zé-ninguém”. Isso mostra o quanto o personagem é uma alegoria daqueles que não têm vez nem voz na sociedade, é a minoria massacrada e oprimida, a qual não é permitida sequer uma escolha religiosa respeitada. Já o nome Nicolau significa “o que vence junto com o povo”. No final do filme, quando apenas depois de morto Zé do Burro, o sem identidade, consegue pagar sua promessa e entrar na igreja com a cruz, ele assume a identidade de seu burro, pois graças ao povo, numa vitória conjunta, ambos, Zé do Burro e o povo, conseguem adentrar o local sagrado, até então proibido para eles. Zé do Burro absorve o significado do nome Nicolau e vence junto com o povo.
Burro: além de ser o animal querido pelo personagem principal, é também sinônimo da teimosia e obstinação de Zé do Burro. Além disso, popularmente o animal é também uma imagem da ignorância.

 Zé do Burro: um personagem ambíguo

Desde o início da trama, Zé-do-Burro desperta a curiosidade das pessoas que circulam pela praça e muitas são as opiniões a seu respeito. O Bonitão o considera um idiota; Marli, um beato pamonha, carola de uma figa e corno manso; Minha Tia, um homem bom; Rosa, um homem bom até demais. Mais importante do que estas opiniões pessoais são aquelas que refletem a perspectiva do povo e da igreja. Segundo palavras de Rosa:
Rosa – Não brinque. Pelo caminho tinha uma porção de gente querendo que ele fizesse milagre. E não duvide. Ele é capaz de acabar fazendo. Se não fosse a hora, garanto que tinha uma romaria aqui, atrás dele (p. 24)

Em confronto com esta posição popular, temos a da igreja, expressa aqui pelo sacristão e pelo padre:
Sacristão – O senhor não ouviu ele [o padre Olavo] dizer? É Satanás! Satanás sob um dos seus múltiplos disfarces! (p. 59)
Seja visto como uma espécie de santo, seja visto como o diabo, a única constante em Zé-do-Burro é o signo ambivalente. E é esta visão que subsiste até no momento de sua morte: o pagador de promessas foi crucificado como Jesus Cristo e como Este, no dia de sua crucificação, teve os céus tempestuosos. No entanto, no caso de Zé-do-Burro, até os trovões possuem um duplo sentido: se por um lado fazem uma alusão à tempestade da cena bíblica, reforçando a simetria entre Cristo e Zé-do-Burro, por outro apontam para a esfera pagã da peça, sendo a própria representação dos poderes de “Iansan, a Santa Bárbara nagô”. Sua última “palavra” irônica a afirmar vitória pela entrada na igreja católica do seu pagador de promessas, o que significa a superação do universo oficial pelo universo sincrético e mundano.
Zé-do-Burro é a vítima-símbolo do criminoso, agressivo, massacrante e cruel sistema social e político de que até a religião se torna instrumento.

O pagador de promessas como paródia do sacrifício de Cristo
  
Em O pagador de promessas, o grande movimento parodístico consiste no pagamento da promessa de Zé-do-Burro. Com esta promessa, Zé-do-Burro assume um papel semelhante ao de Jesus Cristo. No entanto, com uma diferença apontada pelo Padre Olavo:
 -Por que então repete a Divina Paixão? Para salvar
a humanidade? Não, para salvar um burro! (p.37).
Resulta disto a seguinte analogia: Zé-do-Burro está para Jesus Cristo assim como o burro Nicolau está para a humanidade. Há também o fato de ser vítima, assim como o Cristo e outras personagens beatificadas, de tentações que o colocam à prova por sedução e martírio. Durante todo seu percurso foi tentado a descansar no hotel, sair do jejum, abandonar sua missão para ir tomar satisfação com o Bonitão, trocar de promessa, além de outras tentações atribuídas por ele a própria santa que estaria querendo testar a dimensão de sua fé. Essa analogia é reforçada no desfecho da obra, quando Zé-do-Burro, depois de morto, é colocado “sobre a cruz, de costas, com os braços estendidos, como um crucificado” (p. 95). Visto por este prisma, O pagador de promessas pode ser considerado como uma espécie de paródia sacra, uma profanação e dessacralização da via crucis. Ao rebaixamento da via crucis junta-se a profanação de Santa Bárbara, identificada com “Iansan, a Santa Bárbara nagô” (p. 29), como vem estampado na rubrica que inicia o segundo quadro do primeiro ato. É importante perceber que, neste caso, a profanação da santa só ocorre aos olhos das autoridades eclesiásticas e daqueles que adotam a oficialidade católica como valor absoluto e superior. Zé-do-Burro, ao contrário, não tem a consciência da profanação, pois ele, em virtude de sua mentalidade sincrética (e carnavalesca!), não vê a santa como uma entidade católica distanciada em sua sublimidade e a encontra em um terreiro de candomblé, transfigurada em Iansan, sem que isto seja para a figura católica nenhum desmérito. Ele apenas segue a “verdade popular não-oficial” também expressa por Minha Tia: “A discurpe, Iaiá, mas Iansan e Santa Bárbara não é a mesma coisa?” (p. 90).

Linguagem e comunicação

É questionada na peça os vícios e deturpações da linguagem. Procura denunciar como os fatos podem ser mal interpretados não só pela "imprensa marrom",  mas também pelas próprias pessoas.
O texto é marcado pelas falas populares com sua informalidade típica.

Personagens mais importantes:
Zé-do-Burro: "homem ainda moço, de 30 anos presumíveis, magro, de estatura média. Seu olhar é morto, contemplativo. Suas feições transmitem bondade, tolerância e há em seu rosto um 'que' de infantilidade. Seus gestos são lentos, preguiçosos, bem como sua maneira de falar. “
Rosa: "pouco parece ter de comum com ele (Zé-do-Burro). É uma bela mulher, embora seus traços sejam um tanto grosseiros, tal como suas maneiras. Ao contrário do marido, tem 'sangue quente'. É agressiva em seu 'sexy', revelando, logo à primeira vista, uma insatisfação sexual e uma ânsia recalcada de romper com o ambiente em que se sente sufocar.”
Marli:  Seus gestos e atitudes refletem o conflito da mulher que quer libertar-se de uma tirania que, no entanto, é necessária ao seu equilíbrio psíquico - a exploração de que é vítima por parte de Bonitão vem, em parte, satisfazer um instinto maternal frustrado. Há em seu amor e em seu aviltamento, em sua degradação voluntária, muito de sacrifício maternal, ao qual não falta, inclusive, um certo orgulho.
Bonitão: explora mulheres, é interesseiro e mau caráter. "É insensível a tudo isso (a Marli e o que ela faz por ele). Ele é frio e brutal em sua 'profissão. Encara a exploração a que submete Marli e outras mulheres, como um direito que lhe assiste, ou melhor, um dom que a natureza lhe concedeu, juntamente com seus atributos físicos. Veste-se sempre de branco, colarinho alto, sapatos de duas cores."
Beata : Simboliza a figura clássica da mulher que vive para a igreja, talvez para preencher algum vazio em sua vida ou talvez por uma fé ingênua.
Padre Olavo : É o retrato da intransigência
religiosa. "É um padre moço ainda. Deve contar, no máximo, quarenta anos. Sua convicção religiosa aproxima-se do fanatismo. Talvez, no fundo, isto seja uma prova de falta de convicção e autodefesa. Sua intolerância - que o leva, por vezes, a chocar-se contra princípios de sua própria religião e a confundir com inimigos aqueles que estão de seu lado - não passa, talvez, de uma couraça com que se mune contra uma fraqueza consciente."
Dedé Cospe-Rima : "mulato, cabeleira de pixaim, sob o surrado chapéu de coco - um adorno necessário à sua profissão de poeta-comerciante. Traz, embaixo do braço, uma enorme pilha de folhetos: abecês, romances populares em versos. E dois cartazes um no peito, outro nas costas. Num se lê: 'ABC da Mulata Esmeralda - uma obra-prima' e no outro 'Saiu agora, tá fresco-ainda! O que o cego Jeremias viu na Lua'.
Por meio de seus versos denuncia os problemas locais. É o símbolo do poder literário de demonstrar a realidade.
Repórter : "é vivo e perspicaz". Encontra em Zé-do-Burro uma grande matéria para o seu jornal. É o símbolo do sensacionalismo e da imprensa desumana que tudo faz para conseguir uma reportagem, ainda que explorando informações inverídicas.  
Secreta : "o 'tira clássico. Chapéu enterrado até os olhos, mãos no bolsos, inspira mais receio que respeito. À primeira vista, tanto pode ser o representante da lei quanto da criminalidade.
Galego: comerciante de origem estrangeira. É dono de um bar na praça da igreja de Santa Bárbara. É ambicioso e interesseiro, pois deseja que Zé do Burro permaneça na portaria da igreja somente para que possa lucrar com a movimentação que a situação promovia.
Minha Tia: típica comerciante de quitutes baianos. É umbandista.
Delegado : simboliza a lei e mantenedor da ordem.
Mestre Coca : "é um mulato alto, musculoso e ágil. Veste calças brancas "boca de sino" e camisa de meia. Representa o espírito de coletividade e a força do povo contra as forças oficiais (lembre-se que é ele e seus companheiros que defendem Zé do Burro do ataque da polícia) 
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