Dados
do autor
Dias Gomes (Alfredo de Freitas D. G.),
romancista, contista e teatrólogo, nasceu em Salvador, BA, em 19 de outubro de
1922. Dias Gomes conquistou numerosos prêmios por sua atuação no Rádio e por
sua obra para teatro, cinema e televisão. Poucas obras, no Brasil, foram tão
premiadas quanto O pagador de promessas,
que mereceu, dentre outros, a Palma de Ouro do Festival Internacional de Cinema
de Cannes, em 1962. Outros trabalhos de Dias Gomes também foram distinguidos
com os mais importantes prêmios nacionais em sua especialidade.
ASPECTOS ESTRUTURAIS
Publicada
em 1959, trata-se de um texto escrito para teatro, ou seja, para ser levado ao
palco, ser encenado. A peça é dividida em três atos, sendo que os dois
primeiros ainda são subdivididos em dois quadros cada um. Após a apresentação
dos personagens, o primeiro ato mostra a chegada do protagonista Zé do Burro e
sua mulher Rosa, vindos do interior, a uma igreja de Salvador e termina com a
negativa do padre em permitir o cumprimento da promessa feita. O segundo ato
traz o aparecimento de diversos novos personagens, todos envolvidos na questão
do cumprimento ou não da promessa e vai até uma nova negativa do padre, o que
ocasiona, desta vez, explosão colérica em Zé do Burro. O terceiro ato é onde as
ações recrudescem, as incompreensões vão ao limite e se verifica o dramático
desfecho.
Tempo e espaço da narrativa
Tempo: a peça é contemporânea e universal. Podendo ser encenada em qualquer tempo.
Tempo: a peça é contemporânea e universal. Podendo ser encenada em qualquer tempo.
Duração da história: 1 dia.
Há também a presença
do tempo psicológico (flashbacks, lembranças)
Espaço: a história acontece no Estado da Bahia, na escadaria da igreja de Santa Bárbara.
Espaço: a história acontece no Estado da Bahia, na escadaria da igreja de Santa Bárbara.
QUESTÕES TEMÁTICAS
Intolerância, traição, intransigência,
ambição, luxúria, sincretismo religioso e religiosidade.
A peça de Dias Gomes
tem nítidos propósitos de evidenciar certas questões socio-culturais da vida
brasileira, em detrimento do aprofundamento psicológico de seus personagens.
Assim, ganha força no drama a visão crítica quanto:
a) à intolerância da Igreja católica,
personificada no autoritarismo do
Padre Olavo, e na insensibilidade do Monsenhor convocado a resolver o problema;
b) à incapacidade das autoridades que representam o Estado - no episódio, a polícia - de lidar
com questões multiculturais, transformando um caso de diferença cultural em um caso policial;
c) à voracidade
inescrupulosa da imprensa,
simbolizada no Repórter, um perfeito mau-caráter, completamente desinteressado
no drama do protagonista, mas muito interessado na repercussão que a história
pode ter; ·.
d) ao grande fosso que separa, ainda, o Brasil urbano do Brasil rural: Zé do Burro não consegue compreender porque lhe
tentam impedir de cumprir sua promessa; os padres, a polícia, a imprensa não
conseguem compreender quem é Zé do Burro, sua origem ingênua, com outros
códigos culturais, outras posturas. Além disso, a peça mostra as variadas facetas
populares:
o gigolô esperto, a vendedora de quitutes, o poeta improvisador, os
capoeiristas.
O final
simbólico aponta em duas direções: em primeiro lugar a morte do Zé do Burro
mostra-se com fim inevitável para o choque
cultural violento que se opera na peça: ninguém, entre as autoridades da
cidade grande, é capaz de assimilar o sincretismo
religioso tão característico de grandes camadas sociais no Brasil,
especialmente no interior nordestino.
Em segundo lugar, a entrada dos capoeiristas na igreja, carregando a cruz com o
corpo, sinaliza para rechaçar a inutilidade
daquela morte: os populares compreenderam o gesto de Zé do Burro.
e)
Há ainda a mistura do sagrado com o
profano: um exemplo é a coexistência da Igreja e de
“uma vendola, onde também se vende café, refresco e cachaça”, no mesmo espaço
físico. A igreja de um lado, representando a oficialidade (defendida, no
decorrer dos fatos, pela força policial), e a vendola do outro, como o símbolo
do mundano, salientado principalmente pela alusão à cachaça.
f) Pluralidade e mistura dos mais variados estilos e gêneros, o
que é a presença, no mesmo espaço público, do verso e a prosa, o sério e o
cômico, o português, o espanhol e o “portunhol”, os discursos católicos e as mandingas,
os cantos de capoeira, a poesia popular (os abecês), a entrevista e o texto
jornalístico, os anúncios de feira, entre outras vozes que, interpenetrando-se,
corrompem a pureza dos estilos.
Os
choques entre a crença ingênua e a religião dogmática; a credulidade simples e
a armação maliciosa; a sinceridade das intenções e a completa distorção dos
fatos; a inocência e a malícia; a verdade e seu falseamento são alguns dos
componentes do embate entre a cultura do campo e a da cidade, cuja raiz é a má
vontade que coloca a incomunicabilidade como obstáculo intransponível a dividir
as pessoas.
Elementos
simbólicos:
A
escadaria da igreja:
A
grande maioria das cenas se passa na escadaria da Igreja Santa Bárbara. Ali, Zé
do Burro, o protagonista, viverá seus momentos de maior alegria (por ter quase
cumprido sua promessa e salvo seu burro Nicolau) e de maior agonia (por não
reconhecer mais a mulher, por não compreender e não ser compreendido mais pela
religião e, sobretudo, por não compreender os códigos morais e de conduta da
grande cidade). Ali naquela escadaria, Zé do Burro encontrará seu fim. No
entanto, a escada remete ao caminho a ser percorrido para a elevação
espiritual, ou seja, o trajeto que Zé teria que percorrer para cumprir seu voto
religioso.
A porta da igreja:
Considerando
a escadaria como trajeto em busca do espiritual, a porta da igreja é justamente
o que separa os dois mundos apresentados na obra de Dias Gomes: o universo
sincrético dos populares, os quais estão fora da Igreja, e o mundo “oficial” do
catolicismo, representado pelo interior da igreja. É atravessando a porta que o
protagonista cumpriria sua promessa. Porém, essa passagem lhe é negada, o que
impede a ascensão espiritual de Zé do Burro.
Zé do Burro: o nome dado ao
personagem não é à toa. Primeiramente, é interessante observar que, o burro da
história possui uma identidade, ele é Nicolau,
enquanto que seu dono, mesmo humano, tem uma identidade dependente do animal, é
o Zé do Burro. Zé é um nome
genérico, traz consigo a ideia de “qualquer um”, não é sem razão que
popularmente diz-se que uma pessoa sem importância é um “Zé-ninguém”. Isso
mostra o quanto o personagem é uma alegoria daqueles que não têm vez nem voz na
sociedade, é a minoria massacrada e oprimida, a qual não é permitida sequer uma
escolha religiosa respeitada. Já o nome Nicolau significa “o que vence junto
com o povo”. No final do filme, quando apenas depois de morto Zé do Burro, o
sem identidade, consegue pagar sua promessa e entrar na igreja com a cruz, ele
assume a identidade de seu burro, pois graças ao povo, numa vitória conjunta,
ambos, Zé do Burro e o povo, conseguem adentrar o local sagrado, até então
proibido para eles. Zé do Burro absorve o significado do nome Nicolau e vence
junto com o povo.
Burro: além de ser o animal
querido pelo personagem principal, é também sinônimo da teimosia e obstinação
de Zé do Burro. Além disso, popularmente o animal é também uma imagem da
ignorância.
Zé do Burro: um personagem ambíguo
Desde o início da trama, Zé-do-Burro desperta a curiosidade das
pessoas que circulam pela praça e muitas são as opiniões a seu respeito. O
Bonitão o considera um idiota; Marli, um beato pamonha, carola de uma figa e
corno manso; Minha Tia, um homem bom; Rosa, um homem bom até demais. Mais
importante do que estas opiniões pessoais são aquelas que refletem a
perspectiva do povo e da igreja. Segundo palavras de Rosa:
Rosa – Não brinque. Pelo caminho tinha uma porção de gente
querendo que ele fizesse milagre. E não duvide. Ele é capaz de acabar fazendo.
Se não fosse a hora, garanto que tinha uma romaria aqui, atrás dele (p. 24)
Em
confronto com esta posição popular, temos a da igreja, expressa aqui pelo
sacristão e pelo padre:
Sacristão – O senhor não ouviu ele [o padre Olavo] dizer? É
Satanás! Satanás sob um dos seus múltiplos disfarces! (p. 59)
Seja visto como uma espécie de santo, seja visto como o diabo, a
única constante em Zé-do-Burro é o signo ambivalente. E é esta visão que
subsiste até no momento de sua morte: o pagador de promessas foi crucificado
como Jesus Cristo e como Este, no dia de sua crucificação, teve os céus
tempestuosos. No entanto, no caso de Zé-do-Burro, até os trovões possuem um
duplo sentido: se por um lado fazem uma alusão à tempestade da cena bíblica,
reforçando a simetria entre Cristo e Zé-do-Burro, por outro apontam para a
esfera pagã da peça, sendo a própria representação dos poderes de “Iansan, a
Santa Bárbara nagô”. Sua última “palavra” irônica a afirmar vitória pela
entrada na igreja católica do seu pagador de promessas, o que significa a
superação do universo oficial pelo universo sincrético e mundano.
Zé-do-Burro
é a vítima-símbolo do criminoso, agressivo, massacrante e cruel sistema social
e político de que até a religião se torna instrumento.
O pagador de promessas como paródia do sacrifício de Cristo
Em O pagador de promessas, o grande movimento parodístico
consiste no pagamento da promessa de Zé-do-Burro. Com esta promessa,
Zé-do-Burro assume um papel semelhante ao de Jesus Cristo. No entanto, com uma
diferença apontada pelo Padre Olavo:
-Por que então repete a
Divina Paixão? Para salvar
a humanidade? Não, para salvar um burro! (p.37).
Resulta disto a seguinte analogia: Zé-do-Burro está para Jesus Cristo assim como o burro Nicolau está para
a humanidade. Há também o fato de ser vítima, assim como o Cristo e outras
personagens beatificadas, de tentações que o colocam à prova por sedução e
martírio. Durante todo seu percurso foi tentado a descansar no hotel, sair do
jejum, abandonar sua missão para ir tomar satisfação com o Bonitão, trocar de
promessa, além de outras tentações atribuídas por ele a própria santa que
estaria querendo testar a dimensão de sua fé. Essa analogia é reforçada no
desfecho da obra, quando Zé-do-Burro, depois de morto, é colocado “sobre a
cruz, de costas, com os braços estendidos, como um crucificado” (p. 95). Visto
por este prisma, O pagador de promessas pode ser considerado como uma espécie
de paródia sacra, uma profanação e dessacralização da via crucis. Ao
rebaixamento da via crucis junta-se a profanação de Santa Bárbara,
identificada com “Iansan, a Santa Bárbara nagô” (p. 29), como vem estampado na
rubrica que inicia o segundo quadro do primeiro ato. É importante perceber que,
neste caso, a profanação da santa só ocorre aos olhos das autoridades eclesiásticas
e daqueles que adotam a oficialidade católica como valor absoluto e superior.
Zé-do-Burro, ao contrário, não tem a consciência da profanação, pois ele, em
virtude de sua mentalidade sincrética (e carnavalesca!), não vê a santa como
uma entidade católica distanciada em sua sublimidade e a encontra em um terreiro
de candomblé, transfigurada em Iansan, sem que isto seja para a figura católica
nenhum desmérito. Ele apenas segue a “verdade popular não-oficial” também
expressa por Minha Tia: “A discurpe, Iaiá, mas Iansan e Santa Bárbara não é a
mesma coisa?” (p. 90).
Linguagem
e comunicação
É questionada na peça os vícios e deturpações
da linguagem. Procura denunciar como os fatos podem ser mal interpretados não
só pela "imprensa marrom", mas
também pelas próprias pessoas.
O texto é marcado pelas falas populares com
sua informalidade típica.
Personagens
mais importantes:
Zé-do-Burro: "homem ainda moço, de 30 anos
presumíveis, magro, de estatura média. Seu olhar é morto, contemplativo. Suas
feições transmitem bondade, tolerância e há em seu rosto um 'que' de
infantilidade. Seus gestos são lentos, preguiçosos, bem como sua maneira de
falar. “
Rosa: "pouco parece ter de comum com ele
(Zé-do-Burro). É uma bela mulher, embora seus traços sejam um tanto grosseiros,
tal como suas maneiras. Ao contrário do marido, tem 'sangue quente'. É
agressiva em seu 'sexy', revelando, logo à primeira vista, uma insatisfação
sexual e uma ânsia recalcada de romper com o ambiente em que se sente sufocar.”
Marli: Seus
gestos e atitudes refletem o conflito da mulher que quer libertar-se de uma
tirania que, no entanto, é necessária ao seu equilíbrio psíquico - a exploração de que é vítima por parte de
Bonitão vem, em parte, satisfazer um instinto maternal frustrado. Há em seu
amor e em seu aviltamento, em sua degradação voluntária, muito de sacrifício
maternal, ao qual não falta, inclusive, um certo orgulho.
Bonitão: explora mulheres, é interesseiro e
mau caráter. "É insensível a tudo isso (a Marli e o que ela faz por ele).
Ele é frio e brutal em sua 'profissão. Encara a exploração a que submete Marli
e outras mulheres, como um direito que lhe assiste, ou melhor, um dom que a
natureza lhe concedeu, juntamente com seus atributos físicos. Veste-se sempre
de branco, colarinho alto, sapatos de duas cores."
Beata : Simboliza a figura clássica da mulher que
vive para a igreja, talvez para preencher algum vazio em sua vida ou talvez por
uma fé ingênua.
Padre Olavo : É o retrato da intransigência
religiosa. "É um padre moço ainda. Deve
contar, no máximo, quarenta anos. Sua convicção religiosa aproxima-se do
fanatismo. Talvez, no fundo, isto seja uma prova de falta de convicção e
autodefesa. Sua intolerância - que o leva, por vezes, a chocar-se contra
princípios de sua própria religião e a confundir com inimigos aqueles que estão
de seu lado - não passa, talvez, de uma couraça com que se mune contra uma
fraqueza consciente."
Dedé Cospe-Rima : "mulato,
cabeleira de pixaim, sob o surrado chapéu de coco - um adorno necessário à sua
profissão de poeta-comerciante. Traz, embaixo do braço, uma enorme pilha de
folhetos: abecês, romances populares em versos. E dois cartazes um no peito, outro nas
costas. Num se lê: 'ABC da Mulata Esmeralda - uma obra-prima' e no outro 'Saiu
agora, tá fresco-ainda! O que o cego Jeremias viu na Lua'.
Por meio de seus versos denuncia os problemas
locais. É o símbolo do poder literário de demonstrar a realidade.
Repórter : "é vivo e perspicaz".
Encontra em Zé-do-Burro uma grande matéria para o seu jornal. É o símbolo do
sensacionalismo e da imprensa desumana que tudo faz para conseguir uma
reportagem, ainda que explorando informações inverídicas.
Secreta : "o 'tira clássico. Chapéu
enterrado até os olhos, mãos no bolsos, inspira mais receio que respeito. À
primeira vista, tanto pode ser o representante da lei quanto da criminalidade.
Galego: comerciante de origem estrangeira. É dono
de um bar na praça da igreja de Santa Bárbara. É ambicioso e interesseiro, pois
deseja que Zé do Burro permaneça na portaria da igreja somente para que possa
lucrar com a movimentação que a situação promovia.
Minha Tia: típica comerciante de quitutes
baianos. É umbandista.
Delegado : simboliza a lei e mantenedor da
ordem.
Mestre Coca : "é um mulato alto, musculoso e ágil. Veste calças
brancas "boca de sino" e camisa de meia. Representa o espírito de
coletividade e a força do povo contra as forças oficiais (lembre-se que é ele e
seus companheiros que defendem Zé do Burro do ataque da polícia)