15 de nov. de 2016

Análise fílmica Cabaré Mineiro

A RUA DE BAIXO

ANÁLISE DO FILME CABARET MINEIRO, DE CARLOS ALBERTO PRATES CORREIA VERSÃO REDUZIDA, REVISTA BALALAICA, 1997

POR MANOEL RANGEL


      No final da década de 70, usufruindo de um clima maior de liberdade, o cinema brasileiro estava ocupado em apreender o processo de modernização que o país atravessou a partir do golpe de 64 e refletir sobre ele. Filmes como Black tie (Leon Hirszman, 81) e Bye bye Brasil (Cacá Diegues, 79) inquiriam as transformações culturais, econômicas e políticas ocorridas.
      Cabaret Mineiro, de Carlos Alberto Prates Correia, com suas marcas fortemente regionais, seu tom memorialístico e a aparente desordem temporal/narrativa, opera na mesma direção realizando uma viagem pelo imaginário coletivo de Minas e em certo sentido do Brasil. Nele estão, a seu modo, os sinais da modernização, as ideias que povoaram o país e uma clara opção diante das opções ocorridas.

Paixão no Cabaret Mineiro

      Em uma pequena cidade do interior vemos um muro de um casarão antigo, uma casa com uma grande árvore ao centro e, logo após, Paixão passeando por uma rua em que as portas das casas estão abertas. No armazém, o proprietário faz a sesta deitado em uma mesa, tira a dentadura e arranha uma rapadura que está pendurada por um cordão ao alcance de suas mãos. A câmera demora em cada gesto, como se eles fossem vistos após muito tempo. Paixão, apresentado como um viajante, convida Tôni para um pôquer em Montes Claros. Tôni anuncia que perdeu até as calças na noite anterior, pretexto para que Paixão insista e diga que também passa por uma maré de azar.
      A partir daí segue-se o itinerário de Paixão por Minas Gerais, composto de cinco grandes blocos. O primeiro é marcado pelo contraponto com Thomaz, o americano, e ocorre em Montes Claros. No geral as situações têm muito de exterior a Minas. Nelas acontecem os diálogos fundamentais para a compreensão do momento que se vive e das circunstâncias que presidem a história do país/estado, e o próprio filme. É forte a presença do imaginário do cinema americano: o faroeste, os safáris, os índios, o zorro. No segundo, Paixão purga seu afastamento de Minas. Transcorre aqui o convívio com Tôni e com situações mais próximas das pequenas cidades do interior, quando o viajante trava contato com as utopias da década de 60. No terceiro bloco Paixão encontra a dançarina espanhola. A referência aos homens de esquerda é direta no anúncio do soldado cubano: “Perdi-a porque acredito na utopia”. A dançarina o convida a fugir pra Grão Mogol, para o seu sítio, o Paraíso de Avana. Minas vai se tornando mais presente com um suceder de planos que a caracterizam e com a vida da fazenda. No quarto, Paixão vive com Maruja, com quem dança as músicas locais e faz amor. Pela primeira vez há afetividade em suas relações com uma mulher. Aí ele liquida a morena da zona, fantasiada de onça, e a imagem de Thomaz, com quem de certa forma manteve compromisso. No quinto bloco assistimos, nós e Paixão com sua luneta, à representação da Minas do sertão. Assistimos à Marujada e vemos desenrolar o dramaSorôco, sua mãe, sua filha de Guimarães Rosa.
      Não há cronologia em suas representações. As várias situações são desencadeadas, como nos sonhos, por pequenos elementos contidos em situações anteriores. Seus fios condutores são o inventário das ideias que tomaram o país ao longo das décadas e a gradual submersão de Paixão na Minas Gerais mitológica, como se fosse um roteiro de fuga. Um retorno que pressupõe ajuste de contas com cada movimento feito no passado, para que se possa entender ao fim sua opção.

O memorialismo mineiro

      Minas Gerais desenvolveu ao longo de sua formação uma forte tradição memorialística. Boa parte de sua literatura, ao narrar as singularidades, ocupou-se em contar a vida nas pequenas cidades do estado, a vida na fazenda, a herança da mineração, os feitos gloriosos do passado.
      A obra desses memorialistas realiza uma apreensão toda particular do tempo, tendendo em suas exposições ao rompimento da linearidade. Nela despontam reflexões sobre o gênero e incorpora-se a linguagem poética. Há ainda uma “tentativa de rastrear as origens e afastar os componentes espúrios” ao lado da tendência de conceber a identidade cultural brasileira a partir de Minas, “como se fosse natural passar por aí para pensar o conjunto.”(Maria Arminda do Nascimento Arruda)
      Cabaret Mineiro filia-se a essa tradição memorialística não apenas pelo esforço da exaltação de Minas, mas pela linguagem poética, o rastreamento dos componentes espúrios, o esforço de universalização da condição mineira e, sobretudo, o rompimento da linearidade temporal e narrativa.

A mineiridade

      Ao longo dos anos foram sendo processados os fatores que tornaram os mineiros, a seus olhos e aos dos outros brasileiros, singulares. Tal construção mítica não esteve infensa às necessidades políticas e econômicas de suas elites, mas ganhou lugar no imaginário do povo e passou inclusive a constituir modelo, referencial ideológico para as novas gerações.
      A construção mítica ocupou-se dos mais diversos fatores. Desde as características físicas dos mineiros até sua caracterização social e psicológica.
      Com a Inconfidência e o mártir Tiradentes, Minas ganhou o status de berço da brasilidade. Tomou a si a responsabilidade de guardar a unidade nacional com a desenvoltura que guardou a unidade do estado, tão diverso.
      Cabaret Mineiro opera submerso na mitologia da mineiridade. Não esconde essa condição e a utiliza para conferir maior concretude ao discurso que realiza: a visita a Minas Gerais constitui um retorno para verificar o que a passagem do tempo fez a si, à sua terra e ao país, mas sobretudo à procura de valores que ficaram intocados.
      Os traços mitológicos despontam por todo o filme. Paixão e Maruja, tal Quixote e Dulcinéia. Paixão e Tôni, qual Quixote e Sancho Pança. A dançarina espanhola, mulata, remetendo ao objeto de desejo e perdição da Minas setecentista. O discurso de Thomaz “aos irmãos nascidos no berçário da Independência”, tomando nota de pontos nevrálgicos da história de Minas Gerais, como a Inconfidência e as bandeiras. A cultura popular, os vilarejos do interior, a fazenda mineira, local da comunhão de Paixão com a mineiridade.

As fontes literárias

      Em sua apropriação do mito, Prates Correia buscou referências na literatura mineira. Recorrer a elas foi um meio de legitimar a sua própria leitura do mito e usufruir da atualização e reinvenção que os escritores levaram a cabo.
      Não por acaso as referências diretas de Cabaret Mineiro são Carlos Drummond de Andrade, de quem toma emprestado o nome do filme e a letra de uma das músicas, e João Guimarães Rosa, cuja representação de Sorôco, sua mãe, sua filha o encerra significando a comunhão com a Minas mais profunda.
      Em Sorôco o diretor encontrou a representação da Minas dos Campos Geraes e do Sertão, que o tempo esqueceu e preservou como espaço de reencontro dos que se perderam. É no universo de Rosa que Paixão reencontrará por completo Minas Gerais.

As fontes fílmicas

      Os procedimentos de Cabaret Mineiro – quebra da temporalidade, ausência de personagens, ênfase em situações, descompromisso com a narrativa – devem muito aos avanços empreendidos pelo cinema moderno.
      O filme dialoga com a melhor tradição do cinema brasileiro. Comunga com o Cinema Novo uma certa forma de olhar a cultura popular, que realça sua importância e sua qualidade definidora da nacionalidade.
      Tem ainda forte aproximação com Ganga Bruta (Humberto Mauro, 1933) na sequência de sedução da Maruja por Paixão na fazenda. Estão lá o entrelaçamento entre o ambiente de trabalho e a sedução, o fogo, a panela fervendo e a montagem que, sem mostrar o desfecho, demonstra toda a força do encontro.
      Diálogo explícito é o que Prates Correia mantém com o seu próprio cinema. Cabaret Mineiro reproduz a sequência de Perdida (1975) em que o caminhoneiro Júlio diz pra Janete que vai levá-la para a zona. Mas sua reprodução torna uma cena dramática, no primeiro filme, cômica em Cabaret. O diretor investe contra as ideias que permeiam seu filme anterior, como se elas não servissem mais no presente.
      Perdida, tendo por pano de fundo a chegada do desenvolvimento ao norte de Minas, conta a trajetória de Janete, filha de lavradores pobres. Expulsa da casa em que trabalhava como doméstica, essa moça conhece o caminhoneiro Júlio, que mantém relações sexuais com ela, depois a conduz para uma casa de prostituição e some. Janete visita os pais com Zeca de Oliva, um poeta que lhe propõe casamento e mudança para a roça onde eles moram. Ela recusa a opção de retorno à miséria mas, com a morte de Zeca, resolve trabalhar numa fábrica da região e é reconhecida por uma operária que lhe atira na cara: melhor seria continuar onde estava. No final, Júlio chega de viagem e a reencontra na cidade. Manda que ela volte para a zona. Janete, no entanto, parte para Belo Horizonte a fim de reorganizar sua vida, longe de tudo e de todos.  
      Em Perdida a trajetória de Janete vai do reconhecimento da sua condição miserável em Rio Verde para a aposta num futuro melhor na indústria e na cidade grande. Aí as pequenas cidades do norte de Minas, de vida centrada na lavoura, atrasadas, não possuem nenhum charme, representam a morte e a impossibilidade de trabalhar. As situações do filme são de perversidade do núcleo familiar, de cafajestismo nas relações amorosas e de interesse nas relações pessoais. A exceção corre por conta do poeta, um destrambelhado, e de Janete. 
      Exemplar da visão do filme é o que diz Janete ao poeta quando este lhe propõe casamento e mudança para a roça:  “Então você acha que eu posso levar a sério quem diz que vai me levar pra aquele fim de mundo?  Você não sabe de nada, Zeca, tá pensando que eu sou doida?”
      Cabaret Mineiro em tudo é oposto. Nele não apenas a representação recusa a narrativa linear que conduz Perdida, mas a trajetória da personagem central é diversa. Paixão aparenta ser um viajante, conhecedor do mundo. Aos poucos empreende um retorno ao imaginário mineiro composto pela exaltação da lentidão do tempo, das características naturais do estado, do elogio da vida nas pequenas cidades, do convívio generoso. No núcleo desse retorno está a vida rural de Minas e as ricas manifestações de seu folclore. Ao fim, Paixão vincula-se indissoluvelmente ao imaginário mineiro, terminando em uma pequena cidade, solidário aos dramas de sua gente.
      A forma encontrada pelo cineasta para conciliar visões tão opostas foi reapresentar parte do universo de Perdida em Cabaret Mineiro, ironizando-o como uma alternativa ingênua, e inventariar as ideias que habitaram o país naqueles anos, tudo à maneira dele.    
      No entanto, na leitura dos seus filmes, estão representadas duas opções diferentes diante de um mesmo movimento: a modernização do país. E mais, revelando que visão acabou predominando, Cabaret Mineiro está imerso no imaginário mineiro, diferentemente de Perdida, que apesar de ambientado em Minas, é a representação de uma história que se repete igual em inúmeras localidades atrasadas do país.

Cabaret Mineiro se revela

      Duas grandes linhas percorrem a obra de Prates Correia: um inventário das ideias e utopias, e um roteiro de fuga. Nelas, Minas, apesar de cenário, modelo e substância, é sobretudo parâmetro de processos mais amplos que atingem o país. Seu filme é uma tentativa de análise e resposta a um fenômeno nacional. Fenômeno ao qual seus conterrâneos, seus colegas de trabalho e ele próprio estão submetidos e com o qual são obrigados a lidar cotidianamente.

Inventário das ideias e utopias

      A grande linha que o percorre é o inventário das ideias e utopias que habitaram o país. Elas despontam, sem grandes preocupações sociológicas, nos hábitos, no discurso, no resultado das ações e principalmente por meio de pequenos símbolos usados inteligentemente.
      Passada a abertura, assistimos desfilar um conjunto de símbolos exteriores ao ambiente nacional. Sedução num vagão-restaurante de um trem, um avião pousando em um imenso descampado trazendo mulheres, um enorme carro aberto seguido por um homem montado a cavalo, um homem loiro vestido de vaqueiro com uma raquete e uma bola de tênis na mão, uma bandeira dos Estados Unidos. As palavras do vaqueiro anunciam o fim de um tempo e a chegada de um novo: “Silêncio que o tempo da discórdia está vencido! A disputa inconsequente, que exaltou os ânimos em dias passados, deu lugar a uma solidariedade nova...”
      O discurso de Thomaz remete a muitos momentos da história do país. “Tempo da discórdia” em que o Brasil criou a Petrobras, estatizou a Light e outras multinacionais. Tempo de namoro em que entrou muito dinheiro externo para financiar o milagre econômico. Remete ainda à divisão de trabalho proposta pelos países do primeiro mundo, reservando aos países  subdesenvolvidos a condição de fornecedores de matéria prima, agricultores, pecuaristas. Dá ainda uma estocada em valores simbólicos da nacionalidade, como a referência à luta pela Independência, às bandeiras que rasgaram o país em busca do ouro e às gentes do cerrado e do sertão, antes de tudo uns fortes.
      Paixão, que o escutava tomando whisky, sai sem comentários, apenas alguma irritação. Em seu quarto após a sesta, começamos a ouvir barulho de trem e ver a cena em que ele é seduzido por Tamara Taxman. A montagem insinua que Thomaz também busca seduzi-lo. E a impressão é reforçada pela sequência seguinte, quando o americano lança para ele olhares cúpidos, depois de beijado por uma mulher, e Louise Cardoso, de biquíni, ostentando uma garrafa de coca-cola, pisca, e um homem de óculos escuros é lambido no bíceps por duas mulatas nuas.
      Adiante ouvimos a voz off de Paixão, enquanto o vemos e a Thomaz, sentados em poltronas, cruzando e descruzando as pernas. Paixão, calçando sandálias de couro, está irritado porque Thomaz, calçando tênis, cruza as pernas como ele. Paixão lhe diz: “Mr. Thomas Caps (Thomaz Capiau), as máquinas que perfuram nossa terra fazem a riqueza da Inglaterra, de seus filhos e irmãos”. Ao que Thomaz responde: “As máquinas e toda a sapiência vão tragar a indolência e transformar esse povo , em rico povo, generoso fornecedor de cereais. Quem duvida?”
      Novamente o discurso de Thomaz revela dois conceitos caros ao país. O primeiro, uma crença cega no progresso, a modernização a todo custo. A modernização são as máquinas e o saber. O segundo, um preconceito que vem dos tempos dos viajantes, que vê o brasileiro como um povo que cultiva o ócio e o ganho fácil.
      Em outro momento, após deixar os domínios de Thomaz, vamos encontrar Paixão
na areia, largado. Vemos uma jovem tirando fotos com uma Laika. Quando desperta, ele vê a jovem nua, fazendo ioga. Do seu lado, uma garrafa de cachaça, onde lemos “Havana” e “Santiago”. Ela pergunta se ele tem cigarros e ele responde que tem charutos. Saltamos à frente e vemos Paixão no cabaré assistindo ao show da dançarina espanhola. Ao lado do palco está Tavinho Moura com um charuto na boca, roupa de soldado e um boné verde com uma estrela vermelha. Terminado o show, Paixão dirige-se com flores  para o camarim da dançarina espanhola e vê sair o soldado, que lhe diz: - Perdi-a porque acredito na utopia.
      São poucos os sinais, mas inequívocos. Nas duas sequências temos alusões a Cuba, tornada a principal referência das esquerdas latino-americanas na década de 60. Símbolo da possibilidade de enfrentar o vizinho norte-americano e ser independente. Símbolo da utopia. No filme são apenas traços, bem menos presentes do que as alusões aos EUA e ao nacionalismo. No entanto, também no cenário do país sua penetração foi menor. Paixão, ladeado por esses símbolos, demonstra não ter por eles grande envolvimento. Assiste patético ao soldado dizer que perdeu a dançarina porque acredita na utopia, no socialismo, e ganha sua namorada seguindo com ela para o Paraíso de Avana, lugar onde conhece Maruja.
      Ao fim, após “casar-se” com Maruja, Paixão parte abençoado pela dançarina espanhola. O casal participa de uma roda de dança no vilarejo, namora em uma ruína e dá vazão ao amor. Em meio ao enleio surge uma mulher-onça, que Paixão abate com um tiro. Ao tirar a sua máscara, ele ouve seu sussurro, Thomas. Surge na tela o último plano que vimos do texano e Paixão, livre, parte para um lugar de onde vê a confluência do Sorôco com a Marujada.
      Nessas sequências a gênese da marujada surge com força. Paixão incorpora sua origem e de homem do mundo transmuda-se em mineiro. O filme adentra o território da década de 60, em que ganhou força a necessidade de descobrir o país, expô-lo e comungar dos referenciais da gente simples. O diretor parece ter encontrado as ideias a que ele aceita entregar-se. No fundo, mais que ideias, à voz profunda do passado, da lenta construção de um povo e de sua cultura.

Um roteiro de fuga

      Os anos que precedem a realização de Cabaret Mineiro são controversos. O regime militar teve êxito em interromper o processo de acumulação de forças, que tornava possível pensar em um programa de desenvolvimento soberano para o Brasil. Em seu lugar adotou um programa de modernização conservadora. Realizou importação maciça de capitais, investiu pesadamente em infraestrutura, completou a industrialização do país, cuidou de integrar as várias regiões, mudou a face do país.
      O cinema aos poucos desperta, ainda que parcialmente, para o processo em curso e vai percebendo os resultados desses “modernos”. A questão que mais preocupa é a perda da identidade nacional. Há também reflexões sobre as mudanças na consciência dos homens após tanto tempo de arbítrio. Filmes como Eles não usam black tie e Bye bye Brasil são ilustrativos do esforço.
      Cabaret Mineiro constitui um roteiro de fuga para o cenário crítico que se estabeleceu. Aceita a premissa de que o país realmente se modernizou e que o ocupante chegou para ficar.
      Mas sua personagem, apesar das relações cordiais com esse universo, pouco a pouco passa a não admitir que ele substitua o seu próprio universo original e segue recolhendo os instrumentos de resistência. A personagem não trilha o roteiro de forma consciente. Reage. Desobstrui lentamente e desordenadamente os “grandes rios que são profundos como a alma do homem”.  No seu retorno à Minas mais profunda, Paixão livra-se de toda e qualquer influência que possa ser externa a esse ambiente e não apenas do imaginário norte-americano.
      Há momentos bastante característicos do retorno. O primeiro, que já fornece a pista de sua aventura, é o texto over que ele fala enquanto cruza as pernas, após o discurso de Thomaz, onde ressalta a permanência da “rua de baixo como era, simples e bonita como sempre foi,... da rua de baixo (que) repele todo esse modernismo idiota...”
      Mais à frente, depois que discute a exploração do país, ele come um fruto do cerrado e, ao invés de deleitar-se com as mulheres da casa de jogos ofertadas pelo texano, devaneia com uma parada de carro na estrada para mijar, quando duas “januarinas, de ancas largas, barranqueiras” surgem, pegam no pau dele e solicitam “a fineza da fodança”.  A câmera, antes concentrada em seus rostos, sobe e faz uma panorâmica, associando o êxtase à paisagem dos campos gerais.
Paixão parte então dos domínios de Thomaz para a cidade de Tôni. No novo ambiente a contaminação externa é menor. Ouvimos músicas folclóricas e assistimos a devaneios de cidade pequena. No encontro com a moça da máquina fotográfica, hospedados na mesma pensão, os dois compartilham brincadeiras. A moça entedia-se, ouvimos rapidamente um yesda sua parte e ele canta uma música bestialógica (“Vamos dançar tudo nu / tudo com dedo no cu...”). Assistimos em seguida a duas sequências em que a ideia do retorno é reforçada.
      Na primeira, Paixão está sentado sobre o carrinho, com Tôni e a Fortuna atrás de si. A câmera pega os três de perfil, mostrando ao fundo as portas abertas dos armazéns e das casas da cidade, como na sequência de abertura. Paixão sofre, ouvimos “Lady Laura” de Roberto Carlos e mais uma vez a música confere sentido ao filme: “Tenho às vezes vontade de ser novamente um menino / E na hora do meu desespero gritar por você / Te pedir que me abrace e me leve de volta pra casa...”
      Na segunda, de noite, uma mulher é assada na fogueira. A música, um cântico das procissões católicas, fala de uma “intangível procissão”, da “espiritualidade” e da “alvorada” tranquila dos que “ficam de vigília a noite inteira”. Percebemos que a mulher assada é a moça da máquina fotográfica. Paixão, antropofagicamente, no melhor Oswald de Andrade, a devora com prazer. Raia o sol e mais uma vez ele escapa dos domínios alheios.
      O outro momento importante do “roteiro de fuga”, e que precede o desfecho já conhecido, desenrola-se no Paraíso de Avana. Paixão já está imerso nos campos gerais. Os elementos externos resumem-se à dançarina espanhola e a uma televisão. Na TV, ele assiste ao jogo Argentina e Peru, pela Copa do Mundo de 78, acompanhado da dançarina, de Maruja e de habitantes da região. O ambiente é de patriotismo e de sedução. Troca de olhares de Paixão e Maruja, interceptados pela dançarina. Semblantes anuviados diante do resultado do jogo. Depois, Paixão discursa sobre três jogos: o de futebol, o da sedução e o que move o filme. No texto, reflexões sobre a luta em condições adversas orientada pela “certeza de um triunfo incontestável” e sobre a ajuda dos fracos, em nome dos quais age.
      Pronunciado o discurso, desenrola-se a sequência de sedução, que tem seu desenlace acompanhado pela dançarina espanhola. Esta, canta nos primeiros momentos o anúncio de suas vinganças terríveis. Depois, consente e libera o amante.
      O novo casal parte do Paraíso de Avana, Paixão liquida Thomaz encarnado na onça e mergulha em Minas.
      O que faz acreditar num roteiro de fuga diante da crise de identidade nacional que o cineasta percebe é a insistência com que, mesmo com muita leveza e nonsense, irrompem as situações de recusa ao que é estrangeiro, com a contraposição do nacional, aqui o rico imaginário mineiro.
      O diretor parece acreditar que o antídoto para a conjuntura adversa é o retorno ao que há de mais primitivo no país. Confia no mito como bloqueio da descaracterização que o modelo de desenvolvimento promove. Confia desconfiando, bem mineiro. Mas ao longo do percurso, confrontado com a necessidade de posicionar-se, opta por “manter os sentimentos elevados” qual “flores do campo” e “trilhar o caminho da esperança”.  
      No entanto, a Minas que deseja precisa despir-se da hipocrisia dos falsos valores. Precisa perder o recato e a sisudez. O mitológico, o profundamente mineiro, coaduna-se bem com o bom humor. Retornar ao mito não pode significar abrir mão do que a ele se incorporou pela pena dos seus escritores, por meio das “bandeiras” e do sonho de cada um.
      Há ainda a necessidade de não transigir com o estrangeiro. Ele se impregna. Ocupa sorrateiramente corações e mentes. Confunde objetivos, obscurece a vista, liquida as origens.

Coerência da construção fílmica

      Cabaret Mineiro mantém perfeito entrosamento entre suas partes. O roteiro, a trilha sonora e sobretudo a montagem do filme, asseguram-lhe a possibilidade de percorrer caminho tão complexo e tão controverso com muita leveza. Sua construção serve às ideias do diretor. Onde não há compromisso com alternativas reais, uma forma descompromissada de proceder a exposição das ideias. Onde não há certezas absolutas, uma exposição desprovida de causa e consequência.
      Cabaret consegue equilibrar-se entre as vertentes históricas do cinema a que recorreu e a obra de mestres como Drummond e Guimarães Rosa.  Melhor, consegue combinar todo esse reino ilustrado com o popularesco, o bestialógico e a mais legítima cultura popular.
      O filme é de um lado circunspecto e compenetrado. E de outro, corrosivo e irreverente.
      Ainda que ele seja despojado das pretensões de projeto coletivo, Prates Correia não deixa, em certa passagem, de convocar os amigos e colegas de trabalho a virarem o rosto para o pedaço de Brasil que lhes pertence: Minas Gerais. E conclui seu filme com o que decidiu e talvez gostasse de dizer sobre toda a sua turma:

      “A gente agora estava levando ele pra casa, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde ia aquela cantiga.”

Análise literária O amanuense Belmiro

O AMANUENSE BELMIRO – Cyro dos Anjos

Belmiro: a paralisia por excesso de análise




Publicação: 1937
Sobre o autor e o período literário
Nascido em Montes Claros, Minas Gerais, Ciro dos Anjos é considerado um dos grandes representantes da literatura brasileira. Embora seu trabalho não tenha tido o reconhecimento merecido na época de sua publicação, pelo fato de não trabalhar diretamente na linha da denúncia social, atualmente tem sido objeto de estudo de grandes críticos e teóricos brasileiros, que apontam sua produção como modelo de refinamento e requinte O Amanuense Belmiro, de Ciro dos Anjos é o livro de estreia desse mineiro que integrou a geração modernista de 1930.
            Na década de 30, as obras literárias de maior reconhecimento eram aquelas que abordavam as misérias sociais de determinadas  regiões do país em tom de denúncia, mas que nem sempre traziam em sua constituição o requisito fundamental para a construção de um bom texto literário: a elaboração estética sofisticada. Ciro dos Anjos é um dos artistas que constituem a exceção nesta época em que há um certo desinteresse do público pela forma e uma supervalorização dos conteúdos relacionados às questões sociais.     Antes de iniciar seu trabalho como romancista, Ciro dos Anjos cursou a Faculdade de Direito em Belo Horizonte e trabalhou em diversos jornais como Diário da Tarde, Diário do Comércio, Diário de Minas, A Tribuna, ocupando primeiramente o cargo de repórter e posteriormente o de redator. Em sua atividade jornalística veio a conhecer escritores como Carlos Drummond de Andrade, Emílio Moura e João Alphonsus. Nesse período, iniciou a escrita de crônicas, que foram o germe para a constituição de seu primeiro romance O Amanuense Belmiro, publicado em 1937. Exerceu várias funções públicas ao longo de sua vida e chegou a ocupar o cargo de Subchefe do Gabinete Civil da Presidência da República em 1957. Foi professor de Estudos Brasileiros no México e em Portugal e assumiu a função de professor do Instituto de Letras da Universidade de Brasília. Todo esse percurso profissional atribuiu a Ciro dos Anjos um grande conhecimento sócio-cultural. Em sua carreira como escritor literário, publicou também os romances Abdias (1945) e Montanha (1956); o ensaio A Criação Literária (1954), publicado em Coimbra; um livro de memórias intitulado Explorações do Tempo (1963); além do livro Poemas Coronários (1965).
Em O Amanuense Belmiro, Ciro dos Anjos lida com os problemas do ser humano num tom profundamente penetrante, fazendo com que escritor e leitor se identifiquem. Não se trata de um romance que se imponha de fora para dentro, mas sim, que se insinua lentamente na sensibilidade, identificando-se com a própria experiência do leitor (CANDIDO, 1945).

VISÃO GERAL:
De linhagem psicológica, revelando profunda influência machadiana, porta-se como observador perspicaz e contido, utiliza-se frequentemente de uma fina ironia, do pessimismo amargo e revela-se continuador da tradição memorialista que foi comum no romance do século XIX.
O Amanuense Belmiro é narrado em primeira pessoa por Belmiro Borba, personagem central, homem tímido e sonhador, ao mesmo tempo dotado de grande capacidade de observar a si e aos outros. Solteirão e empregado de repartição pública, em que era amanuense (encarregado geralmente de fazer cópias e/ou ofícios), vive em Belo Horizonte com duas irmãs mais velhas. Em uma noite de carnaval contempla uma jovem desconhecida, identificada posteriormente como Carmélia, por quem se apaixona, mas mantém-se distante, nunca revelando seus sentimentos. Paralelamente, vai sequenciando uma série de meditações que surgem a partir de conversas com um grupo de amigos (Jandira, Silviano, Redelvim, Florêncio, Glicério). Ao mesmo tempo relembra a infância, fazendo coincidir a amada Carmélia, que ele chama de donzela Arabela, com uma antiga namoradinha. Em tudo, Belmiro refugia-se nos sonhos, nas ilusões, raramente enfrenta a realidade, é incapaz de ações incisivas. O mundo pequeno desse homem é revelado gradativamente, por meio de uma espécie de diário, em que procuraria registrar cenas do cotidiano e reflexões e recordações.

LINGUAGEM E FOCO NARRATIVO


FOCO NARRATIVO: Romance narrado em primeira pessoa.
LINGUAGEM: Uso de linguagem depurada, com uso de coloquialismo.
“- Mais amor e menas confiança, disse o magro, fingindo-se zangar.
  - Mancou, mesmo, prosseguiu. A sodade apertou, veio ver a nega e foi encanado. (...)”
“Miudinha, interessante, potelée ( gorda, roliça ). Sim, potelée é o termo justo, continuou, preocupado com a precisão vocabular: só os franceses é que classificam bem as mulheres.”
·         Belmiro, como literato, usa muitas expressões eruditas em latim e francês.
·         Atento à linguagem do outro, Belmiro reproduz a fala italiana de Giovanni, as expressões em inglês do vizinho Gouveia e de um português que o salvou de um acidente no Rio, além da linguagem rústica de suas irmãs, do interior de Minas.

ESPAÇO, TEMPO E CONTEXTO HISTÓRICO


Espaço: A narrativa como um todo se desenvolve em Belo Horizonte, nos anos 30. A história se desenvolve em Belo Horizonte, com passagens na cidade natal de Belmiro (Vila Caraíbas) e uma viagem ao Rio de Janeiro. Na terra carioca, o narrador faz referência à diversas intertextualidades machadianas.
Tempo: A obra apresenta tempo cronológico:
- Início: Natal de1934
- Fim: após o carnaval de 1936.
Não se pode descartar o uso do tempo psicológico: as reflexões, considerações e memórias de Belmiro.
Contexto histórico: O ano de 1935 foi marcado por manifestações comunistas.
·         Surge a Aliança Nacional Libertadora, com Luís Carlos Prestes como presidente.
·         Estouram algumas revoltas em Recife e Olinda, quando Getúlio Vargas manda fechar a ANL.
·         É retratado no livro a revolta no Rio, quando Redelvim ( anagrama de “vem líder”) é preso.
·         São citadas ainda a Revolução de 1930 e a Revolução Constitucionalista de 1932.

ESTRUTURA E ANÁLISE DA OBRA

As recordações de Belmiro foram organizadas por ele em forma de um diário, formato bastante inovador na época. Através dele, a personagem passa as informações ao leitor de uma forma mais amena, trabalhando com mais intensidade o interior, o psicológico, a subjetividade, de maneira que as informações exteriores são apresentadas apenas como complemento.
Em sua roda de amigos, Belmiro representa a figura do conciliador, tentando apaziguar as diferenças e suavizar o impacto da franqueza. Ele possui a vocação para discernir entre a palavra rude e a agradável, com diversas gradações entre os dois extremos. Por supervalorizar a forma com que se expressa uma ideia, acaba por hesitar em certos diálogos e até a arrepender-se em outros. Após a conversação, Belmiro se dedica a examinar incessantemente tudo o que foi dito, rememorando as gafes e expressões faciais, dissecando a estrutura de cada frase. A comunicação plena só ocorre através do diário. Tanto na família quanto no contato com os amigos ou com outros grupos sociais, predomina a atitude gauche. O amanuense apega-se ao diário como tábua de salvação, mas esse pode converter-se em morte, visto que comunicando-se apenas através do diário pode aniquilar-se como sujeito social. Nesse caso, o diário pode representar uma armadilha, levando a personagem a crer que é mais fácil estetizar a vida do que lidar com ela:
“Este caderno, onde alinho episódios, impressões, sentimentos e vagas idéias, tornou-se, a meus olhos, a própria vida, tanto se acha embebido de tudo o que de mim provém e constitui a parte mais íntima de minha substância” (p. 74).
Para Belmiro, sua vivência se constitui da escrita, da reflexão, da imaginação e não da realização de seus desejos e expectativas. Ele encontra dificuldade em expor seus sentimentos para as outras pessoas, e o papel em branco torna-se o espaço ideal para o desabafo, para a confissão sem reservas. No entanto, essa atitude escritural leva-o ao afastamento da realidade e o coloca à margem da sociedade, posto que se resigna a escrever ao invés de atuar.
Para o grupo de amigos, Belmiro não passa de um homem sem perspectivas, um conformista que se contenta em viver uma vida sem grandes emoções a fim de se manter longe do conflito. O fato, porém, é que Belmiro possui uma sensibilidade muito aguçada, uma alma de artista, e seus conflitos interiores são tantos, sua percepção da vida é tão refinada, que ele acaba por afastar-se das pessoas (sem a intenção de fazê-lo) por medo de ser incompreendido.

O CONFLITO INTERIOR
O amanuense é infeliz. É um lírico não realizado, solteirão nostálgico. Chegou quase aos quarenta anos sem nada ter feito de apreciável na vida. Sonha, carrega nas costas a enorme trouxa de um passado de que não pode se desprender, porque dentre dele estão as doces cenas da adolescência. De repente, uma noite de carnaval lhe traz a imagem de uma donzela gentil. O amanuense ama, mas à sua maneira: identificando a moça de carne e osso, que mal enxerga de quando em vez, com uma imagem longínqua da namorada da infância, ela própria quase um mito – um mito como a donzela Arabela.
            Belmiro, então, se entrega ao presente; mas não o vive. Submete-se, e readquire o equilíbrio da autoanálise. Sabe que não lhe adianta pensar em como as coisas seriam se não fossem o que são, e concluindo que “a verdade está na Rua Erê”, isto é, na sua casinha modesta e o seu cotidiano, recita com o poeta:
            “Mundo mundo, vasto mundo
            Se eu me chamasse Raimundo
            Seria uma rima, não seria uma solução
            Mundo mundo, vasto mundo
            Mais vasto é o meu coração.”

Os literatos na obra não são descritos como homens comprometidos com a realidade social, mas sim como homens entregues aos seus conflitos interiores imaginários, dotados de um lirismo que os impossibilita de viver a vida de forma prática e objetiva. A falência, o fracasso de Belmiro na vida profissional aparece no texto como consequência de sua veia lírica, visto que ele se enquadra perfeitamente no protótipo de romântico sonhador. Seus amores são impossíveis e se repetem no decorrer de sua vida, o passado se apresenta como arquétipo do que se processa no presente: Carmélia (seu amor idealizado no presente) surge como uma forma de evocação de Camila (namorada do passado) ou mesmo do mito de Arabela que o acompanha desde a infância, pois o amor é vivido pela personagem sempre por meio da fantasia. Essa postura do amanuense, vinculada ao mito romântico, é anacrônica em 1930, já que se trata de um período no qual se exige atitude do escritor e não se espera que esse seja um gênio romântico. A relação de Belmiro com a literatura é bastante significativa e seu desejo de escrever um livro mostra-se constante e persistente: É plano antigo o de organizar apontamentos para umas memórias que não sei se publicarei algum dia
 (...) Sim, vago leitor, sinto-me grávido, ao cabo, não de nove meses, mas de trinta e oito anos. E isso é razão suficiente (...) O melhor seria vivermos sem livros, mas o homem não é dono do seu ventre, e esta noite insone de Natal (as sinistras noites de insônia, responsáveis por tanta literatura reles!) traz-me um desejo irreprimível de reencetar a tarefa cem vezes iniciada e outras tantas abandonada ( p.14).
A personagem acredita que “o melhor seria vivermos sem livros”, pelo fato de que esses incitam o pensamento e a reflexão. Viver sem eles significaria viver sem complexidade, sem atitude crítica, o que o amanuense julga ser o melhor, contudo, ele se sente dotado de uma força interior, de um “desejo irreprimível” que o impulsiona à reflexão como ocorre com tantos outros seres dotados de sensibilidade e lirismo. Conforme seu argumento, “o homem não é dono do seu ventre”, daí a existência de tantos livros. Nesse trecho, o projeto de elaboração do livro aparece como uma escrita gestada, o que remete à discussão a respeito da dificuldade de escrever e da vocação do escritor.

O CONFORMISMO EXTERIOR
A atitude romântica de Belmiro diante dos problemas e circunstâncias que a vida lhe impõe leva-o a uma posição de aparente conformidade. Havendo fracassado tanto na tentativa de tornar-se fazendeiro, segundo a vontade de seu pai, quanto no propósito de formar-se bacharel, de acordo com o desejo de sua mãe, devido aos devaneios românticos e aos atos impensados de sua mocidade, o narrador-personagem aceita a interseção de seu pai junto a um político influente a fim de conseguir-lhe um emprego que lhe permita suprir as necessidades básicas do dia-a-dia. Conforme afirma, “mais tarde um deputado me introduziu na burocracia” (p. 11). Belmiro só conseguiu um emprego público em razão do sistema de favoritismo tão vigente no Brasil há séculos. Se por um lado Belmiro foi favorecido com um cargo público, por outro tornou-se um integrante do sistema, sendo-lhe vetada, assim, a crítica exaltada. Isso explica de certa forma sua atitude amena, indiferente perante as ideologias sociais vigentes na sociedade da época.
Com relação às posições político-ideológicas de seu círculo de amizade, o amanuense comenta: “Enquanto Glicério e Silviano se inclinam para o fascismo, Redelvim e Jandira tendem para a esquerda. Só eu e Florêncio ficamos calados, à margem” (ANJOS, 1979, p. 33). Por não assumirem uma postura crítica com relação à situação do país, Florêncio e Belmiro se tornam seres marginais até mesmo na roda de amigos. Essa posição marginal de Belmiro se deve tanto à sua veia de observador, que, com um olhar analítico, tenta enxergar o interior das pessoas por detrás das palavras exaltadas e não se coloca dentro da discussão, quanto pelo fato de estar em grande parte do tempo absorto em suas questões interiores, nos mitos, nas artes.
As pessoas veem Belmiro como um homem conformista, acomodado com o que lhe é posto e com uma visão superficial da sociedade, as observações que os amigos fazem a seu respeito aludem a essa imagem. Jandira o intitula “analgésico”, ou seja, aquele de espírito dormente, que atua como calmante, evitando a todo custo qualquer tipo de conflito, um ser passivo diante das circunstâncias que a vida lhe impõe.
Se na vida social Belmiro é visto como um ser omisso, em seu diário expõe seus pontos de vista e desenvolve reflexões profundas a respeito da atitude das pessoas e da posição em que se colocam diante da sociedade. Seus apontamentos são bastante lúcidos e coerentes. No entanto, quando se trata de analisar a si próprio, Belmiro parte de uma visão derrotista, remoendo pensamentos negativos, encaminhando-se sempre para a comprovação de que não há possibilidade de transformação em sua vida pacata e, em certo grau, estéril. Com respeito ao campo sentimental, o amanuense expõe: “Lembra-te, Belmiro, de que essas bodas são impossíveis (...) Carmélia é fina, jovem, rica. É da alta, como diz Glicério (...) É inútil que faças projetos” ( p.38). Belmiro vê a diferença social, cultural e econômica como uma muralha intransponível para a realização desse amor. Em seu ponto de vista, seu amor por Carmélia representa algo impossível, acredita ser inútil qualquer esforço para conquistar a moça, porém, não desiste de amá-la e continua a alimentar esse sentimento que, segundo ele, está destinado ao fracasso e à desilusão. O fato de continuar alimentando essa paixão não realizável demonstra ser ele um homem sem ambições, já que prefere viver de ilusões a lutar por realizações. Por outro lado, de certa forma, essa atitude é também poética: Belmiro prefere viver da ilusão de amar a ter que se defrontar com a dor de ser rejeitado por esse amor não correspondido.
No fundo, Belmiro não está satisfeito com a vida que leva, todavia, não encontra forças que o impulsionem a romper com esse cotidiano repetitivo e previsível: Pouco antes de sairmos o jovem bacharel voltou à minha mesa para dizer que, um dia destes, abandonará a Seção. O Senador Furquim lhe obteve uma comissão no gabinete do Advogado Geral do Estado (...) Sua retirada dá-me uma sensação de desamparo. Já não terei com quem conversar na Seção. E, ao escrever estas notas, penso também em outra coisa: os outros se movimentam, rompem, progridem, mas, enfim, se deslocam. Só eu resto e envelheço nesta vida modorrenta (p.170-171).
Enquanto analisa o sofrimento, não vive, mas busca transformar a vida em literatura. Ele busca a literatura como salvação, mas essa não pode salvá-lo.

O AMANUENSE BELMIRO: A BUSCA PELA CONCILIAÇÃO ENTRE O SOCIAL E O INTIMISMO
Embora em seu romance Ciro dos Anjos não busque trabalhar ostensivamente as ideologias vigentes na sociedade brasileira, elas aparecem em segundo plano, permeando toda a obra, dado que seus personagens representam tipos sociais muito comuns do quadro cultural da época. Belmiro representa a figura do burocrata lírico, Silviano a do filósofo conservador, Redelvim espelha a imagem do sujeito revolucionário comunista de ideias inovadoras, Jandira ocupa a posição da mulher feminista de ideias socialistas, Carmélia a da jovem burguesa que é educada para ocupar o lugar da esposa ideal, dama da sociedade.
As questões sociais figuram em sua obra como elemento de reflexão da personagem central, Belmiro, que se encontra entre o ceticismo analítico e o lirismo romântico. Sua ótica vacila entre o espírito bem humorado, irônico, e o espírito melancólico. Assim, a narrativa que aparentemente busca retratar alguns fragmentos da vida social e os conflitos interiores de um homem comum (sujeito que se coloca no mundo sem causar grandes transformações ou alcançar conquistas notáveis), embebido de um espírito lírico, romântico e sonhador, dotado de um olhar analítico que o paralisa, abriga em seu interior a visão de um escritor que compreende muito bem a função da literatura na sociedade e  tece críticas a respeito de certos pontos de vista imediatistas que não passam de posturas românticas diante dos problemas da sociedade brasileira na década de 30.
Ao criar a personagem Belmiro, Ciro dos Anjos discute a relação existente entre a sociedade e o intelectual do período em questão, ressaltando que, independente das pressões que o escritor possa sofrer, esse deve manter-se sempre fiel à sua arte e escrever com consciência sem abrir mão do valor artístico de sua obra. Tratar de temas intimistas não significa alienar-se; não tomar partido ideológico na escrita não representa não refletir na situação social do país, significa apenas fazer valer a liberdade criativa, não podando a imaginação e a experimentação estética em razão de uma tendência literária (realista-documental

PERSONAGENS
·         Belmiro Borba Funcionário público. Medíocre, tímido, fracassado, tenta evadir-se para o passado escrevendo um diário.  Nele coexistem o lírico e o analista (“A vida estrangulada pelo conhecimento.”)
·         Silviano intelectual mergulhado em profundas questões filosóficas. Tem tendências aristocráticas. Apesar de ser casado, tem vários relacionamentos amorosos.  Extravagante, de imaginação inquieta, tem facilidade em mentir “A mentira é a base da ordem doméstica.” Proximidade com Quincas Borba, personagem de Machado de Assis.
·         Francisquinha e Emília     - São irmãs de Belmiro: onstituem o lado louco e rústico da família Borba. - Constituem o lado rural e interiorano na casa da  Rua Erê.
·         Florêncio   - Flor de pessoa, homem simples. Incorrigível bebedor de chope. “Homem sem abismos, homem linear.”
·         Jandira - “Mel de Abelha”. Belmiro nunca tentou conquistá-la “mais por timidez do que virtude.” Belmiro é seu confidente.
·         Glicério “Doce, amável.” Bem mais jovem do que Belmiro. Trabalhou na secretaria de Fomento. Tornam-se confidentes e apaixonados pela mesma mulher.
·         Redelvim Seu nome significa “Vem Líder”. É um revolucionário. Inconformado com as ideias aristocratizantes de Silviano e a vida burguesa de Belmiro. Preso, na revolta comunista do Rio.
·         Outros Destacam-se, ainda, o vizinho Prudêncio, com sua mania de falar inglês; o vizinho Giovanni e seu filho Pietro, encarnando o sentimentalismo melodramático dos italianos; Carmélia Miranda, responsável pela criação do mito de Arabela; Carolino, o contínuo da secretaria que ganha amizade de Belmiro e de Emília; Jerônimo, estudioso da filosofia de S. Tomás de Aquino; Jorge Figueiredo, noivo de Carmélia, e alguns eventuais amigos de Jandira – além de sua tia Hortênsia -, o Barroso, a professora Alice e o doutorando Dr. Leão.

ENREDO

            O enredo de “O Amanuense Belmiro” é simples. São passagens do cotidiano ocorridas em determinadas épocas do ano e destacadas por datas significantes tais como Natal, Ano Novo, Carnaval, São João, etc.
            Tudo se inicia com uma nova rodada de chope numa véspera de Natal entre os amigos Belmiro (o protagonista), Florêncio, Silviano, Jerônimo, Glicério e Redelvim. O universo do bar representa um espaço democrático marcado pela presença de estrangeiros, negros, proletários etc, compondo o quadro de mescla da sociedade brasileira da dé- cada de 30. Após alguns chopes, cada um vai para seu lado despedindo-se e desejando “Merry Christmas”.
            Belmiro chega a sua casa que fica a Rua Erê, onde mora com duas velhinhas: Emília e Francisquinha, adotadas por ele. Elas resmungam, xingam-no de “Excomungado”, mas gostam dele. Ele ignora esse comportamento das velhinhas por saber que já estão caducas.
            No Ano-Novo revê Jandira, uma antiga paixão que nunca se concretiza. Durante toda a história vamos encontrando reflexões do protagonista sobre a vida, o comportamento das pessoas, enfim, o mundo.
No Carnaval, mistura-se à massa dos foliões e entre muitas fantasias descobre um braço com uma mão branca e fina que o enlaça. Era Carmélia Miranda que Belmiro chama de Arabela. É quando o amanuense descobre o amor. Reencontra Jandira que diz estar pretendida por um candidato ao qual não quer corresponder. Belmiro então diz a ela que esta à disposição.
            Francisquinha piorou em sua demência cuidando de uma ninhada de ratos que descobriu sob o assoalho.
            Chegam as festas juninas e Belmiro fica refletindo sobre a poesia própria que esses dias suscitam.
            Em 25 de Agosto de 1935 Belmiro completa 38 anos e apesar da loucura de Emília, ela ainda lembra da data e fala para Belmiro, o que o deixa emocionado. Belmiro pressente que seu grupo de amigos está se dissolvendo, como consolo ainda pensa em Carmélia.
            Francisquinha piora de saúde.
            Mais alguns encontros com os amigos e velhas filosofias que retornam. No entanto, Belmiro está fazendo um grande esforço para mantê-los unido.
Novembro, dia de Finados. Belmiro resolve dar uma volta pelo cemitério e tem um mau pressentimento. Francisquinha volta do hospital, mas durante três dias seu quadro piora.
            Emília cuida dela como se cuidasse de uma criança. Francisquinha não resistiu uma semana e falece. Emília foi mais forte que Belmiro, até mesmo na hora de arrumar o corpo para o enterro.
Redelvim foi preso sob alegação de se apresentar como comunista. Belmiro é envolvido no problema, mas sem grandes complicações consegue sair do problema.
            Na manhã de 3 de Dezembro é anunciado o casamento de Carmélia Miranda com Dr. Jorge de Figueredo. Belmiro surpreende-se com a calma que recebeu a notícia. Achou que quando isso acontecesse, ficaria muito abalado, porém, não.
Novas conversas com os amigos e mais filosofia.
            No capítulo 64 há um flash-back que mostra Belmiro, Francisquinha e Emília enfrentando problemas com a Revolução de 30.
            Casamento de Carmélia. Belmiro anuncia o fim do grupo chegando às seguintes conclusões: Redelvim é um anarquista, Jandira, socialista; Silviano, um intelectual que não se mistura; Florêncio, um simples burguês que não opina; Glicério, um aristocrata.
            Belmiro fica mais resignado e reflete sobre a dissolução do grupo: “Por que hão de os homens separar-se pelas ideias? De bom grado, eu sacrificaria minha ideia mais nobre para não perder um amigo. Neste mundo sou apenas um procurador de amigos”.
            Mais um natal. Belmiro está em casa e Emília volta da missa. Nada de novo.
            O casamento de Carmélia está marcado para o dia 15 de janeiro do ano seguinte (1936). LITERATURA DECLARADA COMO SALVAÇÃO: “Quem quiser fale mal da literatura. Quanto a mim, direi que devo a ela a minha salvação. Venho da rua oprimido, escrevo dez linhas, torno-me olímpico”.  São as palavras de Belmiro para mostrar seu desabafo diante da vida.
            Belmiro está na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro e diz que os cariocas não sabem o valor que tem o mar para os mineiros.
            Passa por alguns lugares citados nas obras machadianas.
            Volta para Minas Gerais e constata mais uma vez que “a verdade está na Rua Erê” (local em que mora): sentimento de completude dado pelo lugar do nascimento.
            Sentindo a angústia da solidão, Belmiro vai procurar Silviano. Após alguma ausência, ele surge e os dois têm uma conversa filosófica.
Manhã de 28 de Fevereiro de 1936, Belmiro dá um passeio e observa os jovens alegres nas ruas. Sente também uma alegria e seus olhos se iluminam como se fosse jovem outra vez. Os amigos voltam a se reunir para um chope. Belmiro fica um tempo sem escrever em seu diário e afirma que sente novamente a vida vazia.
Belmiro ganha um bloco de papéis para continuar a escrever de Carolino, um amigo, mas diz a ele que já não precisa desse material, porque já não há mais nada para escrever.


 

Análise literária Contos Murilo Rubião

O fantástico e a condição do absurdo humano nos contos de Murilo Rubião


Murilo Rubião – Biografia

Murilo Eugênio Rubião
Nasceu  em  Silvestre  Ferraz,  hoje  Carmo  de  Minas  MG,  no  ano de  1916.  Formado  em  Direito,  foi   professor, jornalista,    diretor    de    jornal    e    de   estação    de    rádio (Rádio Inconfidência).  Criou o primeiro Suplemento Literário de Minas Gerais e, envolvido sempre em política, foi Oficial de Gabinete do Governador Juscelino Kubitschek. Morreu em 1991 com 33 contos produzidos, sendo três desses publicados postumamente. Nos anos de glória do romance nordestino, Rubião, que se esperava realista dado o período em que publica seu primeiro livro, revela-se na contramão dessa corrente, pois retrata a realidade por meio da fantasia, dando vazão ao Realismo Maravilhoso.
A  preferência  pela  escrita  fantástica,  em  detrimento  aos  aspectos  da geração  de  1940,  cujas narrativas se voltavam  para a discussão das questões mais sociais, levou-o  a figurar  de modo ínfimo nas tradições literárias no  Brasil.  Todavia, atualmente,  os  contos  de Rubião  constam  em  antologias  e em apresentações em congressos ao redor do país. Os contos são carregados de questões concernentes à contemporaneidade, partindo de narrativas fantásticas que apontam para o absurdo da vida contemporânea.
A obra de Murilo é critica ferrenha da postura conformista do homem diante dos angustiosos problemas da vida.

O realismo fantástico

Os contos de Murilo Rubião filiam-se a uma vertente conhecida como realismo fantástico, ou realismo mágico. Trata-se de uma corrente literária interessada em construir narrativas em que acontecimentos inexplicáveis e/ou impossíveis (do ponto de vista lógico ou científico) adentram o universo real (tal qual o conhecemos) sem terem sua existência questionada. Produz-se, assim, um efeito de estranhamento no leitor, que se defronta com cenas absurdas em situações absolutamente cotidianas.
Onirismo e Surrealismo são marcantes, já que a obra aborda situações inusitadas, dignas de uma cena de sonho, de delírio.
Já se estudaram, no contista, o zoomorfismo, o cromatismo, inúmeras aparências de metamorfose, a tensão entre o prodígio e a frustração, entre a transcendência e a contingência, e, às vezes, entre a onipotência e a mera impotência.
O próprio conto “O Ex-mágico da Taberna Minhota”, um clássico de Murilo Rubião, ilustra o encontro de duas culturas: aquela em que tudo é possível e a outra, na qual nada é permitido.


A questão das epígrafes
PROFETISMO EM QUE PREDOMINA A NEGATIVIDADE

Uma característica peculiar à obra de Murilo Rubião é o uso  das epígrafes bíblicas colocadas no início de cada livro e de cada conto. Elas apontam, de maneira simbólica, a temática a ser abordada. Isso não quer dizer que os contos tenham conteúdo cristão. As epígrafes resumem de modo universal o conteúdo do conto.
O uso dessas técnicas e temas fantásticos funciona não só  como recurso para prender o leitor numa leitura prazerosa e de distração. Mais do que isso, assume uma função crítica. Isto é, o fato sobrenatural e fantástico é um recurso da imaginação para remeter-nos aos conflitos de nossa própria existência. É assim que Murilo Rubião desvenda em seus contos os grandes dramas da natureza humana.
Os personagens da narrativa muriliana apresentam uma visão de que viver neste mundo é uma experiência sem solução. Não há salvação ou final feliz nos contos de Rubião. Seus personagens são solitários e caracterizam-se por eternas buscas e contínuos desencontros. As mulheres em sua narrativa não respondem aos desejos dos amantes.

O Pirotécnico Zacarias
O narrador-protagonista (o próprio Zacarias) inicia o conto dizendo que seus amigos e pessoas de suas relações não sabem se está vivo ou morto o pirotécnico Zacarias. Todas as pessoas do local têm dúvidas se o Zacarias que passeia pela cidade é o mesmo que havia morrido em acidente. Devido a essa dúvida, o narrador-defunto decide contar como morreu.
“ A princípio foi azul, depois verde, amarelo e negro. Um negro espesso, cheio de listras vermelhas, de um vermelho compacto, semelhante a densas fitas de sangue. Sangue pastoso com pigmentos amarelados, de um amarelo esverdeado, tênue, quase sem cor (...)  Quando tudo começava a ficar branco, veio um automóvel e me matou.(Rubião,2010,p.15-15)”
Neste conto, o tema da morte está presente desde a epígrafe bíblica do livro  de Jó, que concebe a morte como um renascimento, até o fim da narrativa em que o narrador, Zacarias, torna-se morto-vivo cidade.A fórmula (narrador=defunto) nos é familiar desde que Machado de Assis cria o morto-vivo mais famoso da literatura, Brás Cubas, em seu romance Memórias Póstumas de Brás Cubas.
A morte e o modo como as pessoas se relacionam com ela são questões centrais da narrativa. A beleza do texto, porém, é que Murilo Rubião tem a maestria de tratar este tema, levando os leitores ao domínio do fantástico, ou seja, ao universo da dúvida diante de um fato que foge  do real; um morto pode andar pela cidade como se estivesse vivo? Nesse sentido, apesar de vagar pelas ruas, tentando provar, angustiado, que está vivo, Zacarias encara com ironia e humor a sua morte, ao dizer que ir de carro para o cemitério era sugestão que mais lhe convinha, “Afinal, as longas caminhadas cansam indistintamente defuntos e vivos.”(Rubião,2010,p.17). Contudo fica-lhe o rancor de que as pessoas não percebem que se pode amar indivíduos diferentes. É assim que o conto se torna uma alegoria da sociedade contemporânea do autor.


O Ex Mágico da Taberna Minhota
O narrador, que não diz seu nome, é um ex-mágico que, entediado com a profissão, torna-se funcionário público. Contudo, a nova profissão também lhe oferece como existência entediante. Aliás,sua vida fora um tédio desde a infância, nunca gostou de viver. Ele relata, em tom saudoso,as mágicas que fazia na Taberna Minhota e depois no Circo-Parque Andaluz. A vida de mágico não lhe agradava, pois seus “truques” não eram mágicas, eram naturais e não apenas ilusões. Ele relata que,sem querer,foi ao banheiro da taberna e retirou do “bolso o dono do restaurante”, e tal fato surpreende o narrador. Quem ficou perplexo foi o dono do restaurante, que lhe propôs emprego de mágico na Taberna Minhota.
Neste conto, temos um personagem-narrador que é um sujeito inapto para a vida, um sujeito que tem várias crises de identidade,pois nada do que a vida lhe oferece o satisfaz e chega a declarar:
“Na verdade, eu não estava preparado para o sofrimento. Todo homem, ao atingir certa idade, pode perfeitamente enfrentar a avalanche do tédio e da amargura, pois desde a meninice acostumou-se a vicissitudes, através de um processo lento e gradativo de dissabores. Tal não aconteceu comigo. Fui atirado à vida sem pais, infância ou juventude.” (Rubião,2010,p.21).
Trata-se, portanto, de um sujeito que tende para a morte do que para a vida. Neste sentido, o tema da morte surge nas várias tentativas de suicídio que o narrador empreende. Neste conto, temos portanto, um personagem instável e que não sabe suportar a existência humana que, ora é prazerosa, ora é entediante. É um sujeito próprio da pós-modernidade,que vive uma intensa crise existencial e de identidade.
A narrativa é essencialmente existencialista. Para Sartre, “a existência precede a essência”. Desta forma, o homem, primeiramente, nasce. A essência vai se formando no decorrer da existência. Entretanto, o homem, marcado pela morte, busca essa identidade absoluta, fracassando. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. Assim, não há natureza humana, visto que não há Deus para concebê-la. Por isso, o homem se sente responsável: o homem ligado ao compromisso e que se dá conta de que não é apenas aquele que escolhe ser, mas de que é também um legislador pronto a escolher, ao mesmo tempo em que a si próprio, a humanidade inteira. Daí a angústia e a sensação de fracasso.

Teleco, o coelhinho
Dois fatos inusitados se colocam,de imediato, na leitura dessa narrativa:
Um coelho que fala e, além do mais, que pede um cigarro ao narrador personagem. Será que ele que ser humano? Esta pergunta que se coloca na leitura do conto. O homem dá cigarro a Teleco,o coelho,  e trava com ele uma conversa  amigável. Ao perceber que Teleco  não tem casa, e encantado com a educação do animal,o personagem humano o convida para morarem juntos.
Teleco se metamorfoseia, o tempo todo, em outros animais. Ele alega ser um sujeito instável por querer sempre agradar aos outros. O comportamento do coelho é, portanto, de alguém que vive buscando uma identidade.
Teleco encontra uma mulher sedutora e se apaixona. Para viver esse romance e afirmar-se como homem, o coelhinho assume a forma de um canguru com um comportamento humano, porém degradante. A relação entre o protagonista e o canguru torna-se tensa, levando à expulsão do animal, que passa a viver com a namorada, que explora o seu dom. Após a decepção amorosa, Teleco volta para o seu amigo, arrependido, doente e pede ajuda. Não tarda para que Teleco consiga sua última e desejada metamorfose: uma criança, ainda que sem vida.
No conto, o fantástico surge de um elemento ingênuo: um simples coelhinho de dimensão humana e dramática revela ao homem a verdade que ele não pode suportar: o homem contemporâneo é massificado, sem identidade e solitário. O cotidiano apresentado no conto é absolutamente fiel ao nosso mundo real; a partir da presença de um coelhinho, que busca a sua humanidade, temos a subversão desse real harmônico. A princípio, Teleco encontra nas metamorfoses a maneira de se aproximar do humano, afinal, ele é um ser marginalizado, um ser que ninguém reconhece como humano e que busca a todo custo sua aceitação: “Depois de uma convivência maior, descobri que a mania de metamorfosear-se em outros bichos era nele simples desejo de agradar ao próximo” (RUBIÃO, 1998, p.144).
O querer desenfreado de Teleco constrói um muro entre a realidade que o cerca e o que ele julga como real. A sua condição de coelho é que o faz não-humano; logo, a metamorfose em canguru livra-o da forma anterior, tornando-o, conseqüentemente, humano. Barbosa é um homem (canguru) e não um coelho, por isso usa óculos e cospe no chão. A meiguice do coelhinho cede à bruta imagem, cheia de vícios, do horrendo canguru.

O HOMEM DO BONÉ CINZENTO

O narrador infantil, Roderico, conta-nos que a rua onde morava era pacata. Caminhões de mudança, despejando caixas no antigo hotel abandonado, tiram a calma da rua. Diziam que para lá se mudaria um celibatário. Todavia, um velho magro, com roupas largas e um inseparável boné cinzento, acompanhado de um cão perdigueiro se muda para lá. Não é visto na rua e, invariavelmente, senta-se todas as tardes, com um cachimbo e seu cachorro, à porta. Artur, irmão do narrador, espreita a casa vizinha, na esperança de que o velho se antecipe.
Artur argumenta insistentemente com o irmão que o velho está emagrecendo. Acorda o narrador para dizer-lhe que descobrira o nome do vizinho: Anatólio, ao que Roderico esbraveja: chamasse Nabucodonosor.
Chega uma bonita moça, desce do táxi e, sozinha, adentra a casa de Anatólio. Artur e Roderico se questionam sobre a vida do velho. Os diálogos entre o narrador e Artur indicam a obsessão de adentrarem na vida do outro e opinarem sobre o que e como deveria ser.
A incógnita aumenta: a mulher chega e o homem emagrece a cada dia. Depois, assim como chegou, a moça se foi. O narrador resolve também vigiar o vizinho, não que ele lhe interessasse, mas por causa de Artur que, por sua obsessão, tinha olheiras, definhava. Artur comenta que o homem está ficando invisível. O narrador, sugestionado pelo irmão, vê as coisas através do corpo de Anatólio. Sua magreza encanta o narrador.
Roderico afirma: “Às cinco horas da tarde do dia seguinte, o solteirão apareceu na varanda, arrastando-se com dificuldade. Nada mais tendo para emagrecer, seu crânio havia diminuído e o boné, folgado na cabeça, escorregara até os olhos. O vento fazia com que o corpo dobrasse sobre si mesmo. Teve um espasmo e lançou um jato de fogo, que varreu a rua. Artur, excitado, não perdia o lance, enquanto eu, recuava atemorizado. Artur entusiasmado, gritava: Não falei, não falei! A seguir, Artur também começa a diminuir até se reduzir a uma bolinha negra, que escorre pela mão do narrador.

O conto aborda os relacionamentos humanos na pós-modernidade: na verdade, nem os irmãos que observam obsessivamente Anatólio estavam preocupados com ele, mas apenas especulando sobre um fato inédito na rua pacata. O homem ter ficado transparente indica que não somos vistos pelos outros, que nos são indiferentes, somos, também, transparentes, assim não vemos os que nos cercam. Por outro lado, paradoxalmente, Artur se transforma em uma bolinha, coisifica-se, por deixar de viver sua própria vida para vigiar a outro.
Powered By Blogger

Flickr