15 de nov. de 2016

Análise literária A mão e a luva, Machado de Assis

A MÃO E A LUVA, MACHADO DE ASSIS

SOBRE O AUTOR


Considerado por muitos críticos como o maior escritor brasileiro, Joaquim Maria Machado de Assis teve uma existência relativamente estável e conheceu em vida o prestígio e a fama que lhe cabiam. O mulato nascido no Morro do Livramento, Rio de Janeiro, em 1839, tinha todos os requisitos para ser apenas mais um dos muitos cidadãos fracassados que preenchem o universo das periferias das grandes cidades. Entretanto, ao morrer em 1908, recebe honras fúnebres de chefe de estado. A celebridade alcançada no fim da vida demonstra que a ascensão social alcançada pelo “bruxo do Cosme Velho”, como assim o chamou Carlos Drummond de Andrade, somente foi possível devido ao seu esforço permanente de captar a realidade e mais ainda por seu talento insubstituível de transformar histórias em páginas de livros.
Órfão ainda criança, Machado vendeu doces na rua para ajudar a sustentar a família; na juventude foi caixeiro de uma livraria e tipógrafo, mais tarde tornou-se jornalista, profissão que o encaminhou para a literatura. Porém, o seu sustento vinha do emprego que arranjara no funcionalismo público, chegou a fazer carreira, foi oficial de gabinete de ministro, diretor de órgão público e por ocasião da Proclamação da República em 1889, estava sob seus cuidados a Diretoria do Comércio da cidade do Rio de Janeiro. Além do emprego público, a carreira de Machado de Assis como escritor contou com outra base sólida: O casamento com a portuguesa Carolina de Novais. A esposa tornou-se uma grande incentivadora de seus escritos e há quem diga que em muitos de seus textos há resquícios da influência dela. Conforme opina Coutinho, no decurso de uma atividade literária ininterrupta, iniciada no fim no século XIX, quando seus primeiros versos foram publicados na revista Marmota Fluminense, até a publicação de seu último livro, Memorial de Aires, em 1908, Machado de Assis representou no Brasil o primeiro e o mais acabado modelo de homem autêntico dedicado à arte de escrever.
Não há dúvida quanto à divisão da vasta obra machadiana em dois tempos: Os primeiros textos ainda escritos sob a influência do Romantismo contrastam muito com a parte mais significativa de sua produção literária - a chamada fase da maturidade - esta iniciada em 1881 com a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas e consolidada mais tarde em obras primas como Quincas Borba e Dom Casmurro, demonstra que Machado tornou-se hábil em desenvolver uma prosa realista, permeada de complexos retratos psicológicos que se distanciavam muito da idealização romântica e também dos exageros cientificistas dos demais autores do Realismo-Naturalismo

VISÃO GERAL
A obra “A Mão e a Luva” foi publicada no Rio de Janeiro por E. Gomes de Oliveira, em 1874. Foi o segundo romance escrito por Machado de Assis. Na época do lançamento, a obra não teve uma boa receptividade por parte da crítica, apesar de elogiar o estilo. Desse modo, o livro foi esquecido, até ser reeditado 33 anos depois. Foi traduzida para o Inglês com o título: The hand and the glove” e publicada pela The University Press of Kentucky, em 1970. Rendeu ainda, uma adaptação para o teatro, no ano de 2004, sob a direção de Adriana Tolentino.
A Mão e a Luva, segundo romance de Machado de Assis, difere-se dos outros livros da fase dita ‘romântica’ do autor. Narra a história de Guiomar, moça de origem humilde que ascende socialmente por ser afilhada de uma baronesa. O drama da heroína está na escolha de um marido entre seus três pretendentes: o romântico Estevão, o frio Luís Alves e o preguiçoso Jorge.
O trunfo do livro é a abertura estética do romance brasileiro ao Realismo.
A trama narrativa em A mão e a luva nasce para destacar as relações familiares, precisamente, em torno da figura de um feminino. O universo da trama desse romance é relativamente simples: ela se resume na tensão de uma mulher pretendida por três homens. Nessa disputa, ganham relevância as figuras de Estevão e Luís Alves, dois amigos íntimos, dos tempos de faculdade, que terão o ciclo de amizade interrompido pelo amor de Guiomar. Narrativa simples, mas engenhosa, sobretudo nas tramas duplas, que seguem paralelas, em torno dessas das representações de personagens masculinas: Estevão, Luís Alves e Jorge.

NARRADOR
O foco narrativo em “A Mão e a Luva” está na 3ª pessoa do singular. É evidente no início da história: “Estevão meteu as mãos nos cabelos com um gesto de angústia”. Ainda em tempo, deve-se observar que o narrador interage com o leitor, tomando a variante de “narrador intruso”, como na passagem do capítulo IV: “Enquanto as três almoçam, relancemos os olhos ao passado (…)”.
Irônico, debochado, o narrador de A Mão e a Luva se apropria da dramaturgia, regendo a narrativa como lhe convém. Constantemente lembrando o leitor tradicionalmente romântico de que ambos estão imersos em um mundo ficcional, mas verossímil – “[…] é privilégio do romancista e do leitor ver no rosto de uma personagem aquilo que as outras não veem ou não podem ver.” (ASSIS, 2005, p.79) -; de que ele não será um idealizador, e procurará representar fielmente a realidade — “Era melhor, — mais romântico pelo menos, que eu o pusesse a caminho da academia, com o desespero no coração, lavado em lágrimas, ou a bebê-las em silêncio, como lhe pedia a sua dignidade de homem. Mas que lhe hei de eu fazer? Ele foi daqui com os olhos enxutos, distraindo-se dos tédios da viagem com alguma pilhéria de rapaz, — rapaz outra vez, como dantes.” (ASSIS, 2005, p.18) — e que o seu trabalho maior é desvendar os segredos anímicos de seus personagens, sobretudo ressaltando que é ele quem escolhe as descrições dos perfis: “Eu não a quero dar como uma alma que a paixão desatina a cega, nem fazê-la morrer de um amor silencioso e tímido. Nada disso era, nem faria.” (ASSIS, 2005, p.93).
A ironia mais mordaz do narrador é em relação aos estereótipos românticos, materializados nas figuras dos pretendentes de Guiomar: o ardor exacerbado de Estevão, que é constantemente ridicularizado; o egoísta e frio Luís Alves; e o burguês preguiçoso e mimado Jorge, brilhantemente sintetizado na passagem: “possuir era seu único ofício.” (ASSIS, 2005, p.87).
Desta forma, podemos caracterizar, não só o livro abordado, como também toda a primeira fase machadiana, como “pré-realista”. Portanto, A Mão e a Luva e sua fase correspondente vieram para preparar o território para o Realismo pesado e crítico que Machado viria a nos apresentar com a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, obra na qual é nítido que a estética realista triunfou.

ENREDO
Exposição: no capítulo I, são apresentados os primeiros personagens, Estevão e Luís Alves. Eles são amigos e estudam na mesma instituição educacional – a chamada academia de São Paulo (apesar da maior parte da história se passar no Rio de Janeiro). A história começa já com um conflito secundário, provocado pela dor de Estevão ao ser esnobado pela moça que amava. Tal rejeição o faz pensar em suicidar-se. Estevão procura, então, a seu amigo e confidente, Luís Alves para desabafar. Finalmente, este aconselha aquele que se esquecesse de tais coisas (o suicídio e a decepção amorosa), e acrescenta: “O amor é uma carta (…); carta de parabéns quando se lê, carta de pêsames quando se acabou de ler. Tu que chegaste ao fim, põe a epístola no fundo da gaveta, e não te lembres de ir ver se ela tem um post-scriptum…”
                                        
Complicação: a complicação da história acontece quando Estevão, depois de concluir seus estudos em São Paulo, volta para o Rio de Janeiro. Até aqui, tudo bem, não fosse por ele encontrar uma moça, vizinha de Luís Alves, no jardim da chácara deste. Para a surpresa dele, a moça era Guiomar, aquela a quem ele amara e de quem se desiludira. O reencontro torna-se uma complicação quando Estêvão recai de amores pela mesma moça. Esqueceu-se de seguir o conselho metafórico de seu amigo Luís Alves há dois anos, quando disse que ele não voltasse a ver se a carta tinha um post-scriptum. Essa recaída é o gatilho que leva a outros fatos que culminarão no clímax do romance.

Clímax: o autor constrói um clima de tensão no trecho dos capítulos VIII ao XVII, os quais cercam os acontecimentos que antecedem ao desfecho. Essa tensão em “A Mão e a Luva” está nos fatos que encerram um período de decisões em relação ao destino matrimonial de Guiomar, que depois de desiludir a Estevão, (outra vez) e ser pretendida de Jorge, sobrinho da baronesa. Há uma correria no desenrolar dos fatos, pois, a personagem principal deseja realizar seu desejo ambicioso: galgar posição social ao casar com Luís Alves, recém eleito deputado. A tensão é tanta que a moça escreve um bilhete com a mensagem: “Peça-me” e o joga pela janela do doutor Luís Alves.

Desfecho: a decisão de Guiomar em dar um sinal a Luís Alves para que este a pedisse em casamento é o acontecimento que desencadeia o desfecho: o casamento entre duas pessoas, ambiciosas, de uma sagacidade encontrada em poucos, que se combinavam como “a mão e a luva”.

PERSONAGENS
Estevão: Machado apresenta-o como um dos protagonistas, que também é anti-herói; é vítima de suas sentimentalidades exageradas; vive um conflito psicológico, pois, mergulha em uma crise emocional por não ter o amor de Guiomar. É uma clara alusão aos exageros ultrarromânticos.
Luís Alves: o narrador parece, às vezes, tentar despertar emoção/simpatia (no leitor) em favor desse rapaz, pois permite que ele tenha mais espaço que Estevão ou Jorge. É descrito com ambicioso, mas como não sendo uma má pessoa. Sabia reger os sentimentos, era seguro de si. Ele representa o herói da história, pois tem qualidades maiores que seus pares na obra.
Guiomar: a protagonista, e heroína da história, é pobre e de origem simples, perde seu pai, e logo depois, a mãe, ficando aos cuidados de uma baronesa, que a adota e a toma por filha por ocasião da morte de Henriqueta, sua filha de sangue. Desconstrói o romantismo e a fragilidade das mocinhas dos romance românticos. Guiomar é forte, decidida, racional e casa-se não pelo envolvimento sentimental puramente, mas por perceber que suas ambições sociais encontravam mais harmonia em Luís Alves.
Mrs. Oswald: britânica, e governanta da casa da baronesa, o braço direito desta. Personagem tipicamente inglesa, em seus modos e educação, mas brasileira por dedicação à sua patroa, a baronesa. É uma antagonista na história, pois, por querer realizar os desejos de sua patroa, atrapalha um pouco as pretensões e aspirações amorosas de Guiomar.
A baronesa: viúva, generosa, conhece a Guiomar desde que esta era uma criança e ajuda-a em sua formação. Teme pela não realização completa de seus desejos quanto ao futuro de Guiomar. Com Mrs. Oswald, tenta cuidar em arrumar um bom pretendente para a afilhada, já que a sombra do jovem doutor Estevão, moço de origem pobre, ameaça os seus projetos para Guiomar.
Jorge: Machado de Assis introduz um personagem insulso, indiferente ao que está ao seu redor. Preferido por sua tia, a baronesa, a ser o marido de Guiomar. Ele até que gosta dela, segundo ele, mas, é um gostar “tanto faz”. Trama com Luís Alves impedir, ou melhor, convencer a baronesa a não fazer uma viagem, que atrapalharia os planos dele e de Jorge.

TEMPO
 O tempo em “A Mão e a Luva” é cronológico, pois os fatos seguem uma sequência natural, onde observamos a passagem dos dias, meses e anos. Isso fica evidente no trecho: “Um mês depois de Estevão chegar a São Paulo (…)”. É importante lembrar que tempo cronológico relaciona-se com o enredo linear.
O tempo no qual se passa a história é situado no século XIX, mais precisamente em 1853 (vinte e um anos antes da publicação do romance, em forma de folhetim no jornal O Globo, em 1874).

AMBIENTE
Nessa época, o Brasil vivia os seus anos de Império, e o Rio de Janeiro, o principal espaço que ambienta o romance, era a capital do país.
Machado descreve pouco o ambiente. Mas constrói a tensão do romance com os acontecimentos que deixam o leitor, ou leitora, em suspense, pois a história toma rumos inesperados, talvez influenciados pelas incertezas que são dominantes nestas terras abaixo do Equador. Por exemplo, Luís Alves, que inicialmente parece nem notar a existência de Guiomar, apesar de tê-la cortejado anteriormente, passa a querer a moça.
Machado transmite emoção ao descrever poeticamente a natureza, e principalmente a protagonista Guiomar. Ainda, transmite a ideia de um ambiente burguês, relatando características da alta sociedade dos dias do Brasil Império.

INTERTEXTUALIDADE: ESTEVÃO E A CRÍTICA AO EXCESSO SENTIMENTAL

A construção do clima romântico na narrativa se dá, principalmente, por duas forças maiores: a influência do Romantismo estrangeiro e as referências ao movimento análogo no Brasil. Logo no início do livro, enquanto a personalidade das personagens ainda está se esboçando, o narrador cita um traço fundamental para a formação de Estevão: “O rapaz acertara de abrir uma página de Werther; leu meia dúzia de linhas, e o acesso voltou mais forte do que nunca.” (ASSIS, 2005, p.17). O acesso em questão era o desespero causado pela rejeição primeira de Guiomar, que o colocou na posição de amante abandonado. Já a referência feita é ao romance Os Sofrimentos do Jovem Werther, do alemão Goethe, que se tornou molde para a estética ultrarromântica. O livro termina com o suicídio do protagonista, depois de uma vida amarga e depressiva, calcada na ausência da mulher amada. Werther e Estevão são muito similares, já que apresentam personalidades depressivas e exageradas: “Apenas direi por alto que ele pensou três vezes em morrer, duas em fugir à cidade, quatro em ir afogar a sua dor mortal naquele ainda mais mortal pântano de corrupção em que apodrece e morre tantas vezes a flor da mocidade. Em tudo isto era o seu espírito apenas um joguete de sensações contínuas e variadas. A força, a permanência do afeto não lhe bastava a dar seguimento e realidade às concepções vagas de seu cérebro – enfermo, ainda quando estava de saúde.” (ASSIS, 2005, p.72).
Estevão é quase um Werther brasileiro, não fosse o seu desfecho. E até nesse ponto o narrador ironiza o seu destino no final de A Mão e a Luva: “A frouxidão do ânimo negou-lhe essa última ambição. Os olhos podiam fitar a morte, como podiam encarar a fortuna; mas faltavam-lhe os meios de caminhar a ela.” (ASSIS, 2005, p.115). Ao concluir que o rapaz não teve sequer coragem de pôr fim à própria vida, o narrador deixa claro que a personalidade romântica é meramente discursiva e frouxa, ou seja, não está preparada para enfrentar ou questionar a realidade.
Seguido do romantismo alemão, o narrador convida também o inglês: “As mesmas quimeras tinha, e a mesma simpleza de coração; só não as mostrara nos versos que imprimiu em jornais acadêmicos, os quais eram todos repassados do mais puro byronismo, moda muito do tempo. ” (ASSIS, 2005, p.21, grifo meu). Lord Byron, representante fiel do ultrarromantismo, é aqui citado para trazer consigo a ideia do spleen, do escape do sofrimento na boemia, e dos exageros românticos. Há ainda um inglês importante, mas que será matéria de outro tópico.
Após proporcionar esses diálogos com os estrangeiros, o narrador também estabelece uma ligação com os românticos nacionais. Estevão é claramente um representante da 2ª geração — o mal do século — caracterizada pelo desejo da concretização do amor inalcançável, pela nostalgia da infância e o escape pela morte: “A ideia do suicídio fincou-lhe mais adentro no espírito […]. Não tenho outro recurso, pensou ele; é necessário que morra. É uma dor só, é a liberdade. Ao voltar para casa, uma criança que brincava na rua […] fê-lo […] invejoso daquela boa fortuna da infância […]. Mas a inveja da morte e a inveja da inocência foram ainda substituídas pela inveja da felicidade.” (ASSIS, 2005, p.72).
A desconstrução do Romantismo começa, entretanto, quando a personagem que materializa essa escola estética é constantemente criticada e satirizada. Estevão representa claramente os ideais ultrarromânticos, byronianos, com um estilo semelhante a Álvares de Azevedo na primeira parte da sua Lira dos Vinte Anos. Ao contrastá-lo constantemente com Luís Alves, homem frio e calculista, o narrador exalta a personalidade desse último em detrimento da do nosso romântico. Ao fim do livro, é clara a superação das tragédias românticas: a heroína, Guiomar, escolhe Luís Alves, que casava perfeitamente com a sua ambição: “Ajustavam-se ambas, como se aquela luva tivesse sido feita para aquela mão.” (ASSIS, 2005, p.116).
No entanto, o grande trunfo do romance machadiano foi a inserção do drama na narrativa romanesca. Além das inúmeras referências a peças de teatro, a própria estrutura do romance foi modificada, mesclando elementos dramáticos com a prosa. Sobre este tópico, utilizarei o estudo de Ronaldes de Melo e Souza, O Romance Tragicômico de Machado de Assis.
Como aludido anteriormente, eis aqui o inglês que faltava: William Shakespeare. Porém, em A Mão e a Luva, é menos lírico e mais dramático. Mrs. Oswald nos apresenta a ele: “Bem está o que bem acaba, disse um poeta nosso, homem de juízo.” (ASSIS, 2005, p.34), numa referência a uma das comédias shakespearianas. Assim como o futuro Bento Santiago, de Dom Casmurro, Estevão assiste a uma apresentação de Otelo e a aplaude fervorosamente. Mais à frente na história, o nosso romântico se depara com uma indagação fatal, que também dialoga com os gêneros teatrais: “Estevão retirou-se dali cabisbaixo e triste, batido de contrários sentimentos, cheio de uma tristeza e de uma alegria que mal se combinavam, e por cima de tudo isso o eco vago e surdo desta interrogação:  — Entro num drama ou saio de uma comédia? ” (ASSIS, 2005, p.31).
Em seu A Mão e a Luva, Machado inaugura uma nova maneira do fazer literário, focando principalmente no drama de caracteres. Logo na primeira advertência ao leitor, ele já deixa claro que o objetivo principal da narrativa será “[…] o desenho de tais caracteres […] servindo-me a ação apenas de tela em que lancei os contornos dos perfis.” (ASSIS, 2005, p.12). Dessa forma, opõe o livro ao romance de costumes e ao romance psicológico romântico e realista.




Análise fílmica Cabaré Mineiro

A RUA DE BAIXO

ANÁLISE DO FILME CABARET MINEIRO, DE CARLOS ALBERTO PRATES CORREIA VERSÃO REDUZIDA, REVISTA BALALAICA, 1997

POR MANOEL RANGEL


      No final da década de 70, usufruindo de um clima maior de liberdade, o cinema brasileiro estava ocupado em apreender o processo de modernização que o país atravessou a partir do golpe de 64 e refletir sobre ele. Filmes como Black tie (Leon Hirszman, 81) e Bye bye Brasil (Cacá Diegues, 79) inquiriam as transformações culturais, econômicas e políticas ocorridas.
      Cabaret Mineiro, de Carlos Alberto Prates Correia, com suas marcas fortemente regionais, seu tom memorialístico e a aparente desordem temporal/narrativa, opera na mesma direção realizando uma viagem pelo imaginário coletivo de Minas e em certo sentido do Brasil. Nele estão, a seu modo, os sinais da modernização, as ideias que povoaram o país e uma clara opção diante das opções ocorridas.

Paixão no Cabaret Mineiro

      Em uma pequena cidade do interior vemos um muro de um casarão antigo, uma casa com uma grande árvore ao centro e, logo após, Paixão passeando por uma rua em que as portas das casas estão abertas. No armazém, o proprietário faz a sesta deitado em uma mesa, tira a dentadura e arranha uma rapadura que está pendurada por um cordão ao alcance de suas mãos. A câmera demora em cada gesto, como se eles fossem vistos após muito tempo. Paixão, apresentado como um viajante, convida Tôni para um pôquer em Montes Claros. Tôni anuncia que perdeu até as calças na noite anterior, pretexto para que Paixão insista e diga que também passa por uma maré de azar.
      A partir daí segue-se o itinerário de Paixão por Minas Gerais, composto de cinco grandes blocos. O primeiro é marcado pelo contraponto com Thomaz, o americano, e ocorre em Montes Claros. No geral as situações têm muito de exterior a Minas. Nelas acontecem os diálogos fundamentais para a compreensão do momento que se vive e das circunstâncias que presidem a história do país/estado, e o próprio filme. É forte a presença do imaginário do cinema americano: o faroeste, os safáris, os índios, o zorro. No segundo, Paixão purga seu afastamento de Minas. Transcorre aqui o convívio com Tôni e com situações mais próximas das pequenas cidades do interior, quando o viajante trava contato com as utopias da década de 60. No terceiro bloco Paixão encontra a dançarina espanhola. A referência aos homens de esquerda é direta no anúncio do soldado cubano: “Perdi-a porque acredito na utopia”. A dançarina o convida a fugir pra Grão Mogol, para o seu sítio, o Paraíso de Avana. Minas vai se tornando mais presente com um suceder de planos que a caracterizam e com a vida da fazenda. No quarto, Paixão vive com Maruja, com quem dança as músicas locais e faz amor. Pela primeira vez há afetividade em suas relações com uma mulher. Aí ele liquida a morena da zona, fantasiada de onça, e a imagem de Thomaz, com quem de certa forma manteve compromisso. No quinto bloco assistimos, nós e Paixão com sua luneta, à representação da Minas do sertão. Assistimos à Marujada e vemos desenrolar o dramaSorôco, sua mãe, sua filha de Guimarães Rosa.
      Não há cronologia em suas representações. As várias situações são desencadeadas, como nos sonhos, por pequenos elementos contidos em situações anteriores. Seus fios condutores são o inventário das ideias que tomaram o país ao longo das décadas e a gradual submersão de Paixão na Minas Gerais mitológica, como se fosse um roteiro de fuga. Um retorno que pressupõe ajuste de contas com cada movimento feito no passado, para que se possa entender ao fim sua opção.

O memorialismo mineiro

      Minas Gerais desenvolveu ao longo de sua formação uma forte tradição memorialística. Boa parte de sua literatura, ao narrar as singularidades, ocupou-se em contar a vida nas pequenas cidades do estado, a vida na fazenda, a herança da mineração, os feitos gloriosos do passado.
      A obra desses memorialistas realiza uma apreensão toda particular do tempo, tendendo em suas exposições ao rompimento da linearidade. Nela despontam reflexões sobre o gênero e incorpora-se a linguagem poética. Há ainda uma “tentativa de rastrear as origens e afastar os componentes espúrios” ao lado da tendência de conceber a identidade cultural brasileira a partir de Minas, “como se fosse natural passar por aí para pensar o conjunto.”(Maria Arminda do Nascimento Arruda)
      Cabaret Mineiro filia-se a essa tradição memorialística não apenas pelo esforço da exaltação de Minas, mas pela linguagem poética, o rastreamento dos componentes espúrios, o esforço de universalização da condição mineira e, sobretudo, o rompimento da linearidade temporal e narrativa.

A mineiridade

      Ao longo dos anos foram sendo processados os fatores que tornaram os mineiros, a seus olhos e aos dos outros brasileiros, singulares. Tal construção mítica não esteve infensa às necessidades políticas e econômicas de suas elites, mas ganhou lugar no imaginário do povo e passou inclusive a constituir modelo, referencial ideológico para as novas gerações.
      A construção mítica ocupou-se dos mais diversos fatores. Desde as características físicas dos mineiros até sua caracterização social e psicológica.
      Com a Inconfidência e o mártir Tiradentes, Minas ganhou o status de berço da brasilidade. Tomou a si a responsabilidade de guardar a unidade nacional com a desenvoltura que guardou a unidade do estado, tão diverso.
      Cabaret Mineiro opera submerso na mitologia da mineiridade. Não esconde essa condição e a utiliza para conferir maior concretude ao discurso que realiza: a visita a Minas Gerais constitui um retorno para verificar o que a passagem do tempo fez a si, à sua terra e ao país, mas sobretudo à procura de valores que ficaram intocados.
      Os traços mitológicos despontam por todo o filme. Paixão e Maruja, tal Quixote e Dulcinéia. Paixão e Tôni, qual Quixote e Sancho Pança. A dançarina espanhola, mulata, remetendo ao objeto de desejo e perdição da Minas setecentista. O discurso de Thomaz “aos irmãos nascidos no berçário da Independência”, tomando nota de pontos nevrálgicos da história de Minas Gerais, como a Inconfidência e as bandeiras. A cultura popular, os vilarejos do interior, a fazenda mineira, local da comunhão de Paixão com a mineiridade.

As fontes literárias

      Em sua apropriação do mito, Prates Correia buscou referências na literatura mineira. Recorrer a elas foi um meio de legitimar a sua própria leitura do mito e usufruir da atualização e reinvenção que os escritores levaram a cabo.
      Não por acaso as referências diretas de Cabaret Mineiro são Carlos Drummond de Andrade, de quem toma emprestado o nome do filme e a letra de uma das músicas, e João Guimarães Rosa, cuja representação de Sorôco, sua mãe, sua filha o encerra significando a comunhão com a Minas mais profunda.
      Em Sorôco o diretor encontrou a representação da Minas dos Campos Geraes e do Sertão, que o tempo esqueceu e preservou como espaço de reencontro dos que se perderam. É no universo de Rosa que Paixão reencontrará por completo Minas Gerais.

As fontes fílmicas

      Os procedimentos de Cabaret Mineiro – quebra da temporalidade, ausência de personagens, ênfase em situações, descompromisso com a narrativa – devem muito aos avanços empreendidos pelo cinema moderno.
      O filme dialoga com a melhor tradição do cinema brasileiro. Comunga com o Cinema Novo uma certa forma de olhar a cultura popular, que realça sua importância e sua qualidade definidora da nacionalidade.
      Tem ainda forte aproximação com Ganga Bruta (Humberto Mauro, 1933) na sequência de sedução da Maruja por Paixão na fazenda. Estão lá o entrelaçamento entre o ambiente de trabalho e a sedução, o fogo, a panela fervendo e a montagem que, sem mostrar o desfecho, demonstra toda a força do encontro.
      Diálogo explícito é o que Prates Correia mantém com o seu próprio cinema. Cabaret Mineiro reproduz a sequência de Perdida (1975) em que o caminhoneiro Júlio diz pra Janete que vai levá-la para a zona. Mas sua reprodução torna uma cena dramática, no primeiro filme, cômica em Cabaret. O diretor investe contra as ideias que permeiam seu filme anterior, como se elas não servissem mais no presente.
      Perdida, tendo por pano de fundo a chegada do desenvolvimento ao norte de Minas, conta a trajetória de Janete, filha de lavradores pobres. Expulsa da casa em que trabalhava como doméstica, essa moça conhece o caminhoneiro Júlio, que mantém relações sexuais com ela, depois a conduz para uma casa de prostituição e some. Janete visita os pais com Zeca de Oliva, um poeta que lhe propõe casamento e mudança para a roça onde eles moram. Ela recusa a opção de retorno à miséria mas, com a morte de Zeca, resolve trabalhar numa fábrica da região e é reconhecida por uma operária que lhe atira na cara: melhor seria continuar onde estava. No final, Júlio chega de viagem e a reencontra na cidade. Manda que ela volte para a zona. Janete, no entanto, parte para Belo Horizonte a fim de reorganizar sua vida, longe de tudo e de todos.  
      Em Perdida a trajetória de Janete vai do reconhecimento da sua condição miserável em Rio Verde para a aposta num futuro melhor na indústria e na cidade grande. Aí as pequenas cidades do norte de Minas, de vida centrada na lavoura, atrasadas, não possuem nenhum charme, representam a morte e a impossibilidade de trabalhar. As situações do filme são de perversidade do núcleo familiar, de cafajestismo nas relações amorosas e de interesse nas relações pessoais. A exceção corre por conta do poeta, um destrambelhado, e de Janete. 
      Exemplar da visão do filme é o que diz Janete ao poeta quando este lhe propõe casamento e mudança para a roça:  “Então você acha que eu posso levar a sério quem diz que vai me levar pra aquele fim de mundo?  Você não sabe de nada, Zeca, tá pensando que eu sou doida?”
      Cabaret Mineiro em tudo é oposto. Nele não apenas a representação recusa a narrativa linear que conduz Perdida, mas a trajetória da personagem central é diversa. Paixão aparenta ser um viajante, conhecedor do mundo. Aos poucos empreende um retorno ao imaginário mineiro composto pela exaltação da lentidão do tempo, das características naturais do estado, do elogio da vida nas pequenas cidades, do convívio generoso. No núcleo desse retorno está a vida rural de Minas e as ricas manifestações de seu folclore. Ao fim, Paixão vincula-se indissoluvelmente ao imaginário mineiro, terminando em uma pequena cidade, solidário aos dramas de sua gente.
      A forma encontrada pelo cineasta para conciliar visões tão opostas foi reapresentar parte do universo de Perdida em Cabaret Mineiro, ironizando-o como uma alternativa ingênua, e inventariar as ideias que habitaram o país naqueles anos, tudo à maneira dele.    
      No entanto, na leitura dos seus filmes, estão representadas duas opções diferentes diante de um mesmo movimento: a modernização do país. E mais, revelando que visão acabou predominando, Cabaret Mineiro está imerso no imaginário mineiro, diferentemente de Perdida, que apesar de ambientado em Minas, é a representação de uma história que se repete igual em inúmeras localidades atrasadas do país.

Cabaret Mineiro se revela

      Duas grandes linhas percorrem a obra de Prates Correia: um inventário das ideias e utopias, e um roteiro de fuga. Nelas, Minas, apesar de cenário, modelo e substância, é sobretudo parâmetro de processos mais amplos que atingem o país. Seu filme é uma tentativa de análise e resposta a um fenômeno nacional. Fenômeno ao qual seus conterrâneos, seus colegas de trabalho e ele próprio estão submetidos e com o qual são obrigados a lidar cotidianamente.

Inventário das ideias e utopias

      A grande linha que o percorre é o inventário das ideias e utopias que habitaram o país. Elas despontam, sem grandes preocupações sociológicas, nos hábitos, no discurso, no resultado das ações e principalmente por meio de pequenos símbolos usados inteligentemente.
      Passada a abertura, assistimos desfilar um conjunto de símbolos exteriores ao ambiente nacional. Sedução num vagão-restaurante de um trem, um avião pousando em um imenso descampado trazendo mulheres, um enorme carro aberto seguido por um homem montado a cavalo, um homem loiro vestido de vaqueiro com uma raquete e uma bola de tênis na mão, uma bandeira dos Estados Unidos. As palavras do vaqueiro anunciam o fim de um tempo e a chegada de um novo: “Silêncio que o tempo da discórdia está vencido! A disputa inconsequente, que exaltou os ânimos em dias passados, deu lugar a uma solidariedade nova...”
      O discurso de Thomaz remete a muitos momentos da história do país. “Tempo da discórdia” em que o Brasil criou a Petrobras, estatizou a Light e outras multinacionais. Tempo de namoro em que entrou muito dinheiro externo para financiar o milagre econômico. Remete ainda à divisão de trabalho proposta pelos países do primeiro mundo, reservando aos países  subdesenvolvidos a condição de fornecedores de matéria prima, agricultores, pecuaristas. Dá ainda uma estocada em valores simbólicos da nacionalidade, como a referência à luta pela Independência, às bandeiras que rasgaram o país em busca do ouro e às gentes do cerrado e do sertão, antes de tudo uns fortes.
      Paixão, que o escutava tomando whisky, sai sem comentários, apenas alguma irritação. Em seu quarto após a sesta, começamos a ouvir barulho de trem e ver a cena em que ele é seduzido por Tamara Taxman. A montagem insinua que Thomaz também busca seduzi-lo. E a impressão é reforçada pela sequência seguinte, quando o americano lança para ele olhares cúpidos, depois de beijado por uma mulher, e Louise Cardoso, de biquíni, ostentando uma garrafa de coca-cola, pisca, e um homem de óculos escuros é lambido no bíceps por duas mulatas nuas.
      Adiante ouvimos a voz off de Paixão, enquanto o vemos e a Thomaz, sentados em poltronas, cruzando e descruzando as pernas. Paixão, calçando sandálias de couro, está irritado porque Thomaz, calçando tênis, cruza as pernas como ele. Paixão lhe diz: “Mr. Thomas Caps (Thomaz Capiau), as máquinas que perfuram nossa terra fazem a riqueza da Inglaterra, de seus filhos e irmãos”. Ao que Thomaz responde: “As máquinas e toda a sapiência vão tragar a indolência e transformar esse povo , em rico povo, generoso fornecedor de cereais. Quem duvida?”
      Novamente o discurso de Thomaz revela dois conceitos caros ao país. O primeiro, uma crença cega no progresso, a modernização a todo custo. A modernização são as máquinas e o saber. O segundo, um preconceito que vem dos tempos dos viajantes, que vê o brasileiro como um povo que cultiva o ócio e o ganho fácil.
      Em outro momento, após deixar os domínios de Thomaz, vamos encontrar Paixão
na areia, largado. Vemos uma jovem tirando fotos com uma Laika. Quando desperta, ele vê a jovem nua, fazendo ioga. Do seu lado, uma garrafa de cachaça, onde lemos “Havana” e “Santiago”. Ela pergunta se ele tem cigarros e ele responde que tem charutos. Saltamos à frente e vemos Paixão no cabaré assistindo ao show da dançarina espanhola. Ao lado do palco está Tavinho Moura com um charuto na boca, roupa de soldado e um boné verde com uma estrela vermelha. Terminado o show, Paixão dirige-se com flores  para o camarim da dançarina espanhola e vê sair o soldado, que lhe diz: - Perdi-a porque acredito na utopia.
      São poucos os sinais, mas inequívocos. Nas duas sequências temos alusões a Cuba, tornada a principal referência das esquerdas latino-americanas na década de 60. Símbolo da possibilidade de enfrentar o vizinho norte-americano e ser independente. Símbolo da utopia. No filme são apenas traços, bem menos presentes do que as alusões aos EUA e ao nacionalismo. No entanto, também no cenário do país sua penetração foi menor. Paixão, ladeado por esses símbolos, demonstra não ter por eles grande envolvimento. Assiste patético ao soldado dizer que perdeu a dançarina porque acredita na utopia, no socialismo, e ganha sua namorada seguindo com ela para o Paraíso de Avana, lugar onde conhece Maruja.
      Ao fim, após “casar-se” com Maruja, Paixão parte abençoado pela dançarina espanhola. O casal participa de uma roda de dança no vilarejo, namora em uma ruína e dá vazão ao amor. Em meio ao enleio surge uma mulher-onça, que Paixão abate com um tiro. Ao tirar a sua máscara, ele ouve seu sussurro, Thomas. Surge na tela o último plano que vimos do texano e Paixão, livre, parte para um lugar de onde vê a confluência do Sorôco com a Marujada.
      Nessas sequências a gênese da marujada surge com força. Paixão incorpora sua origem e de homem do mundo transmuda-se em mineiro. O filme adentra o território da década de 60, em que ganhou força a necessidade de descobrir o país, expô-lo e comungar dos referenciais da gente simples. O diretor parece ter encontrado as ideias a que ele aceita entregar-se. No fundo, mais que ideias, à voz profunda do passado, da lenta construção de um povo e de sua cultura.

Um roteiro de fuga

      Os anos que precedem a realização de Cabaret Mineiro são controversos. O regime militar teve êxito em interromper o processo de acumulação de forças, que tornava possível pensar em um programa de desenvolvimento soberano para o Brasil. Em seu lugar adotou um programa de modernização conservadora. Realizou importação maciça de capitais, investiu pesadamente em infraestrutura, completou a industrialização do país, cuidou de integrar as várias regiões, mudou a face do país.
      O cinema aos poucos desperta, ainda que parcialmente, para o processo em curso e vai percebendo os resultados desses “modernos”. A questão que mais preocupa é a perda da identidade nacional. Há também reflexões sobre as mudanças na consciência dos homens após tanto tempo de arbítrio. Filmes como Eles não usam black tie e Bye bye Brasil são ilustrativos do esforço.
      Cabaret Mineiro constitui um roteiro de fuga para o cenário crítico que se estabeleceu. Aceita a premissa de que o país realmente se modernizou e que o ocupante chegou para ficar.
      Mas sua personagem, apesar das relações cordiais com esse universo, pouco a pouco passa a não admitir que ele substitua o seu próprio universo original e segue recolhendo os instrumentos de resistência. A personagem não trilha o roteiro de forma consciente. Reage. Desobstrui lentamente e desordenadamente os “grandes rios que são profundos como a alma do homem”.  No seu retorno à Minas mais profunda, Paixão livra-se de toda e qualquer influência que possa ser externa a esse ambiente e não apenas do imaginário norte-americano.
      Há momentos bastante característicos do retorno. O primeiro, que já fornece a pista de sua aventura, é o texto over que ele fala enquanto cruza as pernas, após o discurso de Thomaz, onde ressalta a permanência da “rua de baixo como era, simples e bonita como sempre foi,... da rua de baixo (que) repele todo esse modernismo idiota...”
      Mais à frente, depois que discute a exploração do país, ele come um fruto do cerrado e, ao invés de deleitar-se com as mulheres da casa de jogos ofertadas pelo texano, devaneia com uma parada de carro na estrada para mijar, quando duas “januarinas, de ancas largas, barranqueiras” surgem, pegam no pau dele e solicitam “a fineza da fodança”.  A câmera, antes concentrada em seus rostos, sobe e faz uma panorâmica, associando o êxtase à paisagem dos campos gerais.
Paixão parte então dos domínios de Thomaz para a cidade de Tôni. No novo ambiente a contaminação externa é menor. Ouvimos músicas folclóricas e assistimos a devaneios de cidade pequena. No encontro com a moça da máquina fotográfica, hospedados na mesma pensão, os dois compartilham brincadeiras. A moça entedia-se, ouvimos rapidamente um yesda sua parte e ele canta uma música bestialógica (“Vamos dançar tudo nu / tudo com dedo no cu...”). Assistimos em seguida a duas sequências em que a ideia do retorno é reforçada.
      Na primeira, Paixão está sentado sobre o carrinho, com Tôni e a Fortuna atrás de si. A câmera pega os três de perfil, mostrando ao fundo as portas abertas dos armazéns e das casas da cidade, como na sequência de abertura. Paixão sofre, ouvimos “Lady Laura” de Roberto Carlos e mais uma vez a música confere sentido ao filme: “Tenho às vezes vontade de ser novamente um menino / E na hora do meu desespero gritar por você / Te pedir que me abrace e me leve de volta pra casa...”
      Na segunda, de noite, uma mulher é assada na fogueira. A música, um cântico das procissões católicas, fala de uma “intangível procissão”, da “espiritualidade” e da “alvorada” tranquila dos que “ficam de vigília a noite inteira”. Percebemos que a mulher assada é a moça da máquina fotográfica. Paixão, antropofagicamente, no melhor Oswald de Andrade, a devora com prazer. Raia o sol e mais uma vez ele escapa dos domínios alheios.
      O outro momento importante do “roteiro de fuga”, e que precede o desfecho já conhecido, desenrola-se no Paraíso de Avana. Paixão já está imerso nos campos gerais. Os elementos externos resumem-se à dançarina espanhola e a uma televisão. Na TV, ele assiste ao jogo Argentina e Peru, pela Copa do Mundo de 78, acompanhado da dançarina, de Maruja e de habitantes da região. O ambiente é de patriotismo e de sedução. Troca de olhares de Paixão e Maruja, interceptados pela dançarina. Semblantes anuviados diante do resultado do jogo. Depois, Paixão discursa sobre três jogos: o de futebol, o da sedução e o que move o filme. No texto, reflexões sobre a luta em condições adversas orientada pela “certeza de um triunfo incontestável” e sobre a ajuda dos fracos, em nome dos quais age.
      Pronunciado o discurso, desenrola-se a sequência de sedução, que tem seu desenlace acompanhado pela dançarina espanhola. Esta, canta nos primeiros momentos o anúncio de suas vinganças terríveis. Depois, consente e libera o amante.
      O novo casal parte do Paraíso de Avana, Paixão liquida Thomaz encarnado na onça e mergulha em Minas.
      O que faz acreditar num roteiro de fuga diante da crise de identidade nacional que o cineasta percebe é a insistência com que, mesmo com muita leveza e nonsense, irrompem as situações de recusa ao que é estrangeiro, com a contraposição do nacional, aqui o rico imaginário mineiro.
      O diretor parece acreditar que o antídoto para a conjuntura adversa é o retorno ao que há de mais primitivo no país. Confia no mito como bloqueio da descaracterização que o modelo de desenvolvimento promove. Confia desconfiando, bem mineiro. Mas ao longo do percurso, confrontado com a necessidade de posicionar-se, opta por “manter os sentimentos elevados” qual “flores do campo” e “trilhar o caminho da esperança”.  
      No entanto, a Minas que deseja precisa despir-se da hipocrisia dos falsos valores. Precisa perder o recato e a sisudez. O mitológico, o profundamente mineiro, coaduna-se bem com o bom humor. Retornar ao mito não pode significar abrir mão do que a ele se incorporou pela pena dos seus escritores, por meio das “bandeiras” e do sonho de cada um.
      Há ainda a necessidade de não transigir com o estrangeiro. Ele se impregna. Ocupa sorrateiramente corações e mentes. Confunde objetivos, obscurece a vista, liquida as origens.

Coerência da construção fílmica

      Cabaret Mineiro mantém perfeito entrosamento entre suas partes. O roteiro, a trilha sonora e sobretudo a montagem do filme, asseguram-lhe a possibilidade de percorrer caminho tão complexo e tão controverso com muita leveza. Sua construção serve às ideias do diretor. Onde não há compromisso com alternativas reais, uma forma descompromissada de proceder a exposição das ideias. Onde não há certezas absolutas, uma exposição desprovida de causa e consequência.
      Cabaret consegue equilibrar-se entre as vertentes históricas do cinema a que recorreu e a obra de mestres como Drummond e Guimarães Rosa.  Melhor, consegue combinar todo esse reino ilustrado com o popularesco, o bestialógico e a mais legítima cultura popular.
      O filme é de um lado circunspecto e compenetrado. E de outro, corrosivo e irreverente.
      Ainda que ele seja despojado das pretensões de projeto coletivo, Prates Correia não deixa, em certa passagem, de convocar os amigos e colegas de trabalho a virarem o rosto para o pedaço de Brasil que lhes pertence: Minas Gerais. E conclui seu filme com o que decidiu e talvez gostasse de dizer sobre toda a sua turma:

      “A gente agora estava levando ele pra casa, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde ia aquela cantiga.”
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