PONCIÁ VICÊNCIO, CONCEIÇÃO EVARISTO
- Literatura Afro descendente
- Romance Afro-brasileiro
Numa linha que se inicia
em 1859 com o romance Úrsula, de Maria Firmina dos
Reis e passa por Cruz e Souza, Lima Barreto, Ruth Guimarães, Carolina Maria de
Jesus desaguando em autores contemporâneos, tais como Oswaldo de Camargo, Geni
Guimarães, Conceição Evaristo e tantos outros, a obra afro-descendente tem por
tendência mesclar história não-oficial, memória individual e coletiva com
invenção literária, na busca por traçar o painel da memória coletiva de uma
raça tão excluída desde a sociedade colonial até dias atuais.
Características
da obra:
O romance Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, publicado em
2003, traz de maneira madura e competente toda essa linha traçada anteriormente
sobre o romance afro-brasileiro de raiz afro-descendente. Suas principais
marcas podem ser assim sintetizadas:
-
Romance de
formação, de construção da identidade da protagonista e da identidade de um
povo, de uma raça
-
Forte diálogo
entre o presente e o passado, que é fio condutor do romance, criando a memória
coletiva de um povo, de uma raça e o conhecimento da protagonista em relação
aos seus.
-
Romance de fortes
denúncias sociais e raciais, tais como:
-
Crueldade do
cotidiano dos excluídos: pobreza, desamparo, injustiça
-
Condição
pós-escravidão do negro
-
Coronelismo
-
Exploração na
zona rural, regime de semi escravidão
-
Migração do campo
para a cidade
-
Vida nas favelas
-
Violência
doméstica e violência social
-
Analfabetismo e a
importância da alfabetização
-
Mas talvez a
maior das críticas seja em relação a uma situação interrelacional, ou seja,
todas as formas de opressão contra o negro (racismo) devem ser somadas pela
condição de classe (pobres, favelados, excluídos) em que essa raça aqui é
retratada e, devem ainda, serem amplificadas pela questão do gênero, ou seja, a
protagonista da obra é uma mulher. Daí se configura a situação de uma mulher
negra e pobre e todas as formas de opressão que condicionam sua vida.
O romance Ponciá Vicêncio, a princípio, parece não oferecer uma
divisão em capítulos e sim uma divisão baseada em fragmentos. No entanto,
podemos ousar dizer que o romance está organizado em 46 capítulos, geralmente
curtos. Nenhum capítulo possui título ou numeração que os identifique. A marca
da divisão de um capítulo ao outro é o início de cada um onde a letra inicial
do capítulo é feita em negrito num tamanho bem maior do que as outras
utilizadas na continuidade da narrativa da obra. Tal atitude poderia ser vista
com parte da poética e temática do livro, pois a protagonista Ponciá Vicêncio
conforme vai construindo sua identidade vai simultaneamente se
despersonalizando e entendendo sua condição de excluída. Daí a não nomeação dos
capítulos pode ser uma referência à condição dessa personagem e de sua raça
diante da sociedade.
Tomando essa postura da
divisão dos capítulos como uma marca importante da construção narrativa podemos
observar outro detalhe importante: os fatos narrados não seguem uma ordem
cronológica e sim vêm intercalados criando uma trajetória interrompida e
recuperada num forte e belo diálogo entre o presente e o passado da
protagonista e de sua raça. Essa narrativa feita de idas e vindas forma um
verdadeiro quebra-cabeça para o leitor. Nesse processo de constante recuperação
temporal podemos identificar que um dos principais recursos da construção
narrativa é o flashback.
Uma outra marca
importante da construção narrativa é linguagem concisa, quase seca, feita de
frases curtas, de poucos adjetivos e de poucas conjunções aditivas com a
repetição de certas frases. Dessa concisão e da densidade de sentidos que no
contexto do romance essas frases assumem podemos entender o que se costuma
dizer da linguagem de Ponciá Vicêncio, ou seja, seu
brutalismo poético. Ainda mais quando essa densidade de sentido revela tanta
denúncia social, moral, afetiva e racial em relação à precária condição que
vive a protagonista e sua raça.
A
narrativa é feita em terceira pessoa, mas o narrador através do discurso
indireto livre nos revela constantemente o ponto de vista da protagonista e dos
demais personagens fugindo à mera condição de observador. E, assim, nos dando a
imensa complexidade formadora da raça retratada. Sendo assim, os personagens do
romance fogem aos esquemas binários de serem bons ou maus, ou seja, fogem ao
antigo maniqueísmo romântico.
Resumo:
A seguir utilizaremos,
uma parte do estudo realizado por Flávia Santos de Araújo num trabalho de
mestrado intitulado: Uma escrita em dupla face: a mulher negra em
Ponciá Vicêncio de Conceição Evaristo.
Vamos ao trecho:
“Descendente de
africanos escravizados, Ponciá vive, quando criança, junto com os pais e um
irmão mais velho, na propriedade rural que sempre pertencera ao Coronel
Vicêncio, cujo sobrenome não só indica quem é o dono das terras, mas também das
pessoas que ali vivem. A terra, pertencente a uma geração de coronéis, foi
“repartida”, no passado, entre os negros recém-libertos, sob a condição de que
eles - os negros - continuassem ali, trabalhando para os brancos, agora sob um
regime de escravidão reconfigurado, segundo o qual a “(...) cana, o café, toda
a lavoura, o gado, as terras, tudo tinha dono, os brancos. Os negros eram donos
da miséria, da fome, do sofrimento, da revolta suicida” (p.82). Dessa maneira, legitima-se não somente a
prática da escravização pós-abolição, como também a continuidade do ciclo de
opressão e exploração dos negros e negras das futuras gerações. O pai de Ponciá
conhece esta verdade ainda menino, quando, na função de pajem do “sinhô-moço”,
filho do Coronel Vicêncio, é obrigado a submeter-se a extrema humilhação e
perversidade:
[O pai de Ponciá]” Era pajem do sinhô-moço. Tinha a obrigação de brincar
com ele. Era o cavalo onde o mocinho galopava sonhando conhecer todas as terras
do pai. Tinham a mesma idade. Um dia o coronelzinho exigiu que ele abrisse a
boca, pois queria mijar dentro. O pajem abriu. A urina do outro caía escorrendo
quente por sua goela e pelo canto de sua boca. Sinhô-moço ria, ria. Ele chorava
e não sabia o que mais lhe salgava a boca, se o gosto da urina ou se o sabor de
suas lágrimas. (...) Se eram livres, porque continuavam ali? Porque, então,
tantos e tantas negras na senzala? Porque todos não se arribavam à procura de
outros lugares e trabalhos?” (p.14)
As perguntas que ecoavam
dentro do pai de Ponciá desde a infância são lentamente silenciadas pela rotina
do trabalho forçado e também porque, sobre qualquer outro aspecto, os
mecanismos de opressão procuram desenvolver estratégias que garantam o controle
e a dominação do opressor sobre o oprimido, usurpando deste último qualquer
vestígio de dignidade. Isto pode ser percebido, por exemplo, no próprio nome
daqueles que compõem a família de Ponciá: o avô paterno, chamado de Vô
Vicêncio; a mãe, Maria Vicêncio; o irmão, Luandi José Vicêncio; e a própria
Ponciá Vicêncio. A marca do sobrenome do Coronel nos nomes dos descendentes dos
antigos escravos da fazenda substitui a antiga tatuagem feita a ferro nos seus
corpos. O exercício da opressão apenas toma contornos diferentes, porém
continua marcando suas vidas.
Contudo, ao registrar e
reconstruir as estratégias de sobrevivência e resistência construídas por
aqueles que lutam para quebrar este ciclo, a narrativa confronta e desafia o
discurso que cristaliza na escravatura - e nos seus conseqüentes desdobramentos
- toda a história dos afro-descendentes. Ponciá não reconhece seu próprio nome
e, através de uma postura questionadora que se manifesta já na infância, a
protagonista começa a traçar o caminho à procura de si mesma: Quando mais nova,
sonhara até um outro nome para si. Não gostava daquele que lhe deram. Menina,
tinha o hábito de ir à beira do rio e lá, se mirando nas águas, gritava o
próprio nome: Ponciá Vicêncio! Ponciá Vicêncio! Sentia-se como se estivesse
chamando outra pessoa. Não ouvia o seu nome responder dentro de si. Inventava
outros. Pandá, Malenga, Quieti, nenhum lhe pertencia também. Ela, inominada,
tremendo de medo, temia a brincadeira, mas insistia. A cabeça rodava no vazio,
ela vazia se sentia sem nome. Sentia-se ninguém. (p.16)
O vazio de Ponciá,
referido inúmeras vezes ao longo do texto, toma configurações diversas. O
“sentir-se ninguém”, neste contexto, é o sentimento daquela que foi desprovida
de uma história e de uma subjetivação próprias, como afirma Albert Memmi, ao
discutir o processo de desumanização a que é submetido o colonizado (Cf. MEMMI,
1977: 80-81). Por outro lado, esta atitude de Ponciá revela seu desejo de
romper com o sistema opressor que lhe imprime uma marca até mesmo no nome: ela
deseja um nome que traduza quem ela é, pois pronunciar o que lhe foi dado “Era
como se estivesse lançando sobre si uma lâmina afiada a torturar-lhe o corpo.”
(p.27). Assim, a personagem questiona sua própria história, ao mesmo tempo em
que segue com sua trajetória de (re)(des)construir sua própria identidade: O
tempo passou deixando a marca daqueles que se fizeram donos das terras e dos
homens. E Ponciá? De onde teria surgido Ponciá? Por quê? Em que memória do
tempo estaria escrito o significado do nome dela? Ponciá Vicêncio era para ela
um nome que não tinha dono. (p.27)
Burlar a dinâmica do ciclo
de violência e exclusão social no qual sua história foi inscrita torna-se o
sonho da menina Ponciá. Nesta tentativa, procura superar o aprendizado do pai,
que só sabia reconhecer as letras, mas não podia ler. A protagonista, então,
ingressa em um curso de alfabetização, promovido por missionários em visita ao
povoado onde mora, interrompido, porém, quando a menina já dominava a formação
das sílabas. Mas a determinação de Ponciá faz com que a leitura torne-se um
desejo realizado, através de um esforço autodidata e do apoio de sua mãe que,
desde muito cedo, anuncia o destino da filha: “Era melhor deixar a menina
aprender a ler. Quem sabe, a estrada da menina seria outra.” (p.25). A leitura
é, para Ponciá, um símbolo de conquista da liberdade, uma chave com a qual ela
poderia acessar outros mundos para além do seu povoado, um saber necessário
para a realização de um outro sonho: o de ir para a cidade.
A vontade de deixar o povoado rural é, para Ponciá Vicêncio, mais um indício de sua resistência. Ao perceber
as amarras sociais que a prendem a
uma vida marcada pela miséria, pelas condições desumanas de subsistência e pela
exploração material e psicológica que acompanham todas as gerações das famílias
negras da roça, a protagonista decide arriscar-se na construção de um modo
diferente de vida - aquele que possivelmente traria dignidade para ela e para
os seus. Movida, então, por um rompante
de coragem, a jovem Ponciá apressa-se em pegar o único trem que passaria
naquele mês rumo à cidade, mal tendo a oportunidade de despedir-se de seus
familiares: O inspirado coração de Ponciá ditava futuros sucessos para a vida
da moça. A crença era o único bem que ela havia trazido para enfrentar uma
viagem que durou três dias e três noites. Apesar do desconforto, da fome, da
broa de fubá que acabara ainda no primeiro dia, do café ralo guardado na
garrafinha, dos pedaços de rapadura que apenas lambia, sem ao menos chupar,
para que eles durassem até ao final do trajeto, ela trazia a esperança como
bilhete de passagem. Haveria, sim, de traçar o seu destino. (p. 35)
Neste pequeno trecho,
evidencia-se não apenas o desejo da protagonista de transformar sua realidade,
mas também a ousadia de uma mulher negra que rompe com os parâmetros racistas e
patriarcais embutidos naquela sociedade. Como mulher negra, Ponciá está presa a
um conjunto de aspectos que promovem a perpetuação de um sistema que submete
negros e negras a uma vida sem perspectiva, a uma escravidão camuflada. Ponciá
recebeu educação na convivência com a mãe, e, assim, aprendeu com ela a
desenvolver tarefas domésticas e a produção de peças de barro, cuja venda
traria alguma contribuição para o sustento da família. Entretanto, não é a vida
junto à família que a deixa “cansada de tudo” (p. 32), e sim “(...) a luta
insana, sem glória, a que todos se entregavam para amanhecer cada dia mais
pobres, enquanto alguns conseguiam enriquecer-se a todo dia” (p. 32), uma luta
exaustiva que provocara a morte de seu pai e de tantos outros. Sua intolerância
à vida naquele contexto revela-se ato de resistência aos mecanismos de opressão
que se efetivam na exploração racial, de gênero e de classe. Desta maneira,
Ponciá decide lutar contra esta configuração hegemônica e neste ato de decidir
partir e na prontidão revolucionária de sua ação reside o caráter de subversão
em relação a uma realidade pré-estabelecida. Isto é visível, por exemplo, em
outro momento do romance, no qual Ponciá, através da voz da narradora, expressa
sua incompreensão diante do temor que as pessoas do povoado cultivavam em relação
à cidade: um lugar associado a “casos infelizes” e “histórias de fracasso” (p.
32 -33) dos que se haviam aventurado por aqueles caminhos. Ponciá, então,
desfaz este discurso de carga negativa e acomodação, seguindo na contramão de
uma história fixada na tradição e no imaginário de sua própria comunidade.
Longe de apresentar uma
solução fácil e denunciando os esquemas de opressão entranhados na sociedade, a
narrativa mostra, pouco a pouco, que a cidade apenas materializa outro cenário
para a encenação do mesmo ciclo de miséria com o qual Ponciá tentara romper.
Chega à estação de trem na mais completa solidão e tenta encontrar refúgio em
uma igreja, onde se espanta por ver tantos santos “limpos e penteados”, sendo
que aparentemente esses “(...) deveriam ser mais poderosos do que os da
capelinha do lugarejo onde ela havia nascido” (p. 34). A observação sobre os
santos nos indica que Ponciá passa a perceber diferenças também entre as
pessoas dali e aquelas que freqüentavam a capelinha do povoado: “Combinavam com
os santos, limpas e com os terços brilhantes nas mãos” (p.35). Entre o espanto
e a admiração, o medo e a determinação, Ponciá tenta pedir ajuda, mas nem mesmo
consegue falar e sua mudez encontra eco na indiferença daqueles que a vêem com
a trouxa de roupa na mão. Dessa maneira, o romance estabelece um corte na
trajetória da protagonista que saíra de casa em busca de um caminho mais feliz:
sua primeira noite na cidade acaba no pátio externo à igreja junto a outros
indigentes, talvez mais acostumados ao frio (insensibilidade e desproteção) da
cidade; nos dias que seguem, Ponciá consegue um emprego de doméstica,
encaixando-se, assim, ao padrão imposto para uma mulher negra e pobre no
contexto urbano; mais adiante, vai morar em barraco de favela, comprado à custa
de muito trabalho e economia forçada, levando consigo sempre o sentimento
insistente da ausência. Este sentimento de apartação que acompanha a
protagonista por toda a narrativa é ressaltado à medida que suas perdas
emocionais e materiais aumentam, de modo que não se constitui em um
distanciamento apenas geográfico, mas psíquico e identitário.
Ao tentar cumprir a
promessa que fizera ao deixar a roça, Ponciá faz sua primeira viagem de retorno
ao povoado, à “terra dos negros” como a região é denominada ao longo do
romance, para buscar a mãe e o irmão. Encontra, contudo, uma casa vazia, que,
mais tarde soubera, havia sido deixada: primeiro pelo irmão, Luandi, e depois,
pela própria mãe. O reencontro de Ponciá com sua antiga casa, o povoado e as
pessoas com quem sempre convivera metaforiza o contato com sua própria história
e com a história de seu povo, até aqui representada sempre em forma de
lembrança.
Segue-se daí uma
detalhada descrição espacial que produz o efeito de resignificar as bases sob
as quais a protagonista procura recompor sua identidade: os objetos da casa de
pau-a-pique (as panelas antigas de barro, o fogão a lenha, as canecas de café,
o velho baú de madeira) constituem, metonimicamente, os fragmentos identitários
espalhados no espaço-tempo diaspórico. A descrição do povoado resulta,
igualmente, na reativação da memória de uma condição que, apesar de antiga,
continuava a mesma: Depois de andar algumas horas, Ponciá Vicêncio teve a
impressão de que havia ali um pulso de ferro a segurar o tempo. Uma soberana
mão que eternizava uma condição antiga. Várias vezes seus olhos bisaram a
imagem de uma mãe negra rodeada de filhos. De velhas e de velhos sentados no
tempo passado e presente de um sofrimento antigo. (p. 48)
A relação de Ponciá com
o passado - individual e coletivo - e os recursos simbólicos utilizados para
representá-lo são um dos principais elementos para a construção identitária da
personagem ao longo do romance. Desta maneira, a estrutura narrativa
fundamenta-se em diversas digressões no tempo para contar e (re)montar a
história de uma comunidade e do próprio enredo, alternando, não- linearmente,
passado e presente na trama textual, como que para compor um mosaico. Esta
estratégia alinha-se com uma perspectiva da reconstrução da memória e da
identidade culturais que não anula as marcas históricas do passado, mas, por
outro lado, não fixa neste tempo anterior ou na tradição uma fonte supostamente
pura, autêntica e consensual da identidade. Antes, a construção narrativa de Ponciá Vicêncio remete a uma poética do exílio que toma
corpo nos espaços fronteiriços, sejam eles geográficos ou psíquicos; nas
palavras de Homi Bhabha, “(...) um lugar a partir do qual algo começa a se fazer presente em um movimento não
dissimilar ao da articulação ambulante, ambivalente (...)” (BHABHA, 2005: 24,
grifo do autor).
Nessa direção, o
sentimento de vazio, o “profundo apartar-se de si mesma” (p. 49), que acompanha
a protagonista ao longo do texto está associado a esta tentativa de reencontro
com o passado-presente da memória que compõe sua própria identidade em
formação, em transe, em trânsito: Nas primeiras vezes que Ponciá Vicêncio
sentiu o vazio na cabeça, quando voltou a si mesma, ficou atordoada. (...)
Sabia apenas que, de uma hora para outra, era como se um buraco abrisse em si
própria, formando uma grande fenda, dentro e fora dela, um vácuo com o qual ela
se confundia. Mas continuava, entretanto, consciente de tudo ao redor. Via a
vida e os outros se fazendo, assistia aos movimentos alheios se dando, mas se
perdia, não conseguia saber de si. No princípio quando o vazio ameaçava
preencher sua pessoa, ela ficava possuída pelo medo. Agora gostava da ausência,
na qual ela se abrigava, desconhecendo-se, tornando-se alheia do seu próprio
eu. (p. 44) Além disso, este mergulho no vazio, muitas vezes recheado pelas
lembranças do passado, tem profunda relação com o desejo de compreender a
própria trajetória marcada por sucessivas perdas: a morte repentina do pai; o
afastamento e, mais tarde, o desaparecimento da mãe e do irmão; as sucessivas
mortes dos sete filhos logo após o nascimento; e, a primeira de todas as
perdas, certamente a mais marcante, a morte de seu avô. Mas este ato demonstra,
ainda, que o processo de identificação é móvel, fluido, pois a personagem procura
reelaborar este passado no seu tempo presente e refazer esse próprio presente.
Assim, mergulhada em sua memória, Ponciá passa a desprezar tudo que lhe é
corriqueiro como a rotina diária, o relacionamento embrutecido com o marido e
as notícias de jornal que costumava ler e colecionar quando chegara à cidade
(Cf. EVARISTO, 2003: 92 - 93). Seu interesse único passa ser o “recordar a
vida”, para ela também “uma forma de viver” (p. 93).
A HERANÇA DE VÔ VICÊNCIO
O mistério na trama do
romance, mencionado repetidas vezes, especialmente nos momentos de ausência da
protagonista, incide sobre a herança que Vô Vicêncio havia lhe deixado. É
importante perceber que todo o enredo conduz Ponciá ao encontro desta herança,
anunciada pelo seu próprio pai quando da morte do avô. À medida que a narrativa
avança, a tal herança ganha novos contornos.
Primeiro, ela revela-se
na semelhança física entre a menina e o avô, pois ela, logo que aprende a
andar, imita o jeito de caminhar do velho que vivia escondendo atrás de seu corpo
o braço mutilado: Surpresa maior não foi pelo fato de a menina ter andado tão
repentinamente, mas pelo modo. Andava com um dos braços escondido às costas e
tinha a mãozinha fechada como se fosse cotó. Fazia quase um ano que Vô Vicêncio
tinha morrido. Todos deram de perguntar por que ela andava assim. Quando o avô
morreu, a menina era tão pequena! Como agora imitava o avô? (...) Só o pai
aceitava. Só ele não espantou ao ver o braço quase cotó da menina. Só ele tomou
como natural a parecença dela com o pai dele. (p. 13)
Depois desta pista,
outra é revelada quando a menina expressa seu talento no trabalho com o barro.
Ao moldar a figura de um velho encurvado, com um braço cotó para trás, a mãe de
Ponciá toma um susto ao ver a enorme semelhança entre o homem de barro e Vô
Vicêncio. Por não entender o mistério que ligava a menina e o avô, Maria
Vicêncio contém o espanto, embrulha o objeto em palha de bananeira - como
sempre fazia antes de entregar os objetos de barro ao marido, que os venderia
na “terra dos brancos” - e esconde-o dentro do baú. Não obstante, o pai de
Ponciá examina o homem de barro e, ao constatar que se tratava mesmo de seu
pai, entrega-o para a menina, através de um gesto ritualístico: Ponciá recebe o
avô- barro como se fosse uma autoridade legitimamente constituída para proteger
e preservar o tesouro cultural e identitário de sua própria essência: [O pai de Ponciá] Chamou a menina entregando-lhe o que
era dela. Não fez nenhum gesto de aprovação ou reprovação. Aquilo era uma obra
de Ponciá Vicêncio, para ela mesma. Nada que pudesse ser dado ou vendido.
Voltou às costas à filha e, entre os dentes, resmungou para a mulher que não
sabia por que ela se assustava tanto. (p. 19) A figura de Vô Vicêncio, personificada no homem-barro, conserva, de uma
só vez, a força da ancestralidade e o poder criativo na busca identitária de
Ponciá: “A neta, desde menina, era o gesto repetitivo do avô no tempo.” (p.
63). Aqui, o trabalho com o barro liga a protagonista com sua ancestralidade
africana, uma vez que a fabricação de peças e utensílios de barro ou argila
foi, como é público e notório, uma das atividades características das
comunidades quilombolas espalhadas por todo o Brasil. O barro - signo que remete à ideia de origem, de vínculo, de raiz -
materializa a história afro-descendente na trajetória da protagonista, ao mesmo
tempo em que a inscreve no processo criativo de sua construção identitária no
presente. Portanto, moldar o barro constitui o ato simbólico de
(re)criar os sentidos da vida e da própria subjetividade, além de enfatizar a
fortaleza de espírito e de corpo das mulheres, personagens da narrativa, no ato
criativo como uma fonte geradora de mudanças sociais. É, ainda, a arte de
moldar o barro que dá especificidade a estas mulheres, funcionando por vezes
como uma assinatura, e que acaba sendo o elemento de reunião dos membros da
família, como acontece, por exemplo, na passagem em que o irmão de Ponciá se
emociona ao reconhecer as peças de barro da mãe e da irmã numa exposição de
objetos de arte na cidade: Luandi olhava os trabalhos da mãe e da irmã como se
os visse pela primeira vez, embora se reconhecesse em cada um deles. Observava
as minúcias de tudo. (...) Criações feitas, como se as duas quisessem
miniaturar a vida, para que ela coubesse e eternizasse sobre o olhar de todos,
em qualquer lugar. (p. 106 - 107)
O enigma da herança de
Vô Vicêncio deixada para sua neta é, ainda, reforçado, algumas vezes, nas falas
da velha Nêngua Kainda, mais um
ícone da presença ancestral do povo afro-descendente. Esta personagem é
descrita como uma “mulher sempre velha, muito velha como o tempo” (p. 95), cuja
voz, quase inaudível, pronunciava palavras em uma “língua que só os mais velhos
entendiam” (p. 96). Sua presença na Vila Vicêncio era sinônimo de respeito e
autoridade; a ela todos pediam conselhos e benção antes de tomar decisões
importantes, pois ela “tudo sabia, mesmo se não lhe dissessem nada” (p. 128).
Possuidora de uma sabedoria ancestral, Nêngua Kainda profetiza o destino de
Ponciá, quando esta retorna ao povoado pela primeira vez, depois de anos na
cidade: “(...) para qualquer lugar que ela fosse, da herança deixada por Vô
Vicêncio ela não fugiria. Mais cedo o mais tarde, o fato se daria, a lei se
cumpriria” (p. 60). É também a velha a quem Luandi, irmão de Ponciá, procura
quando faz seu primeiro retorno à vila, de onde também fugira tempos depois que
Ponciá havia partido, na esperança de realizar seu sonho de tornar-se soldado -
uma tentativa de aproximação com posições de comando na hierarquia do poder patriarcal.
Nesta conversa com Luandi, a velha repete a profecia sobre Ponciá e questiona o
rumo que o rapaz estava dando a própria vida, afirmando que seu sentimento
aguerrido deveria se voltar para a luta em defesa dos seus iguais: sua missão
era reencontrar a mãe e a irmã, contribuindo, assim, para reunir os fragmentos
de sua própria história.
Há, ainda, no final do
romance, um trecho em que Nêngua Kainda representa a guia, o braço condutor do
destino de Luandi ao encontro de sua mãe na cidade, quando ele, triste com a
morte de Bilisa, a prostituta por quem se apaixonara, mergulhava em um
sentimento profundo de desesperança e desilusão. Através de um sonho -
prenúncio da chegada de Maria Vicêncio à delegacia -, Luandi vê-se cercado por
todas as mulheres que marcaram a sua vida: Vó Vicência, a mãe, a prostituta
Bilisa, a irmã, Ponciá e muitas outras mulheres do povoado onde vivera - todas
orientadas pela velha Nêngua Kainda que, finalmente, entregava Maria Vicêncio
para ele (p. 122). Nesta visão/sonho de Luandi, a narrativa retrata uma cena
que dá relevância às figuras femininas dentro da cultura afro-descendente como
seres portadores de sabedoria cujo papel é, neste contexto, preservar a memória
cultural através das várias gerações situadas em contextos distintos. E é neste
sentido que a personagem Nêngua Kainda ocupa uma posição de destaque, uma vez
que sua autoridade é símbolo do conhecimento e da riqueza cultural de um povo.
A explicação para o braço cotó de Vô Vicêncio, só mais tarde revelada
a Ponciá, guarda uma história marcada pela tragédia. Como muitos negros e
negras do povoado, Vô Vicêncio,sua mulher e seus filhos são mantidos nas terras
do Coronel como mão de obra para a lida com o canavial, fortalecendo e
enriquecendo o mesmo senhor que, um dia, vende três de seus quatro filhos,
mesmo estando esses supostamente protegidos pela lei do ventre-livre. Em um
surto de ira e revolta contra toda a opressão a que fora submetido ao longo de
tantos anos, o avô de Ponciá mata a companheira com uma foice e, ainda em
desespero, decepa a própria mão, na tentativa de suicídio, que só não se
concretiza por causa da intervenção dos vizinhos. Todavia, a partir deste
incidente, Vô Vicêncio torna-se um homem desvairado, repetindo sempre o mesmo
gesto de chorar e rir convulsivamente, gesto que, mais tarde, o leva a morte:
certo dia, Vô Vicêncio tem uma crise tão intensa de choros e risos que,
esgotado, falece.
A amputação de Vô
Vicêncio, no contexto da narrativa, tem um forte valor simbólico que remete não
somente à história da família que protagoniza o romance, mas a história da
diáspora africana, marcada por exclusões, ausências, separações sucessivas,
loucura, atos brutais de violência, além de perdas e mutilações identitárias e
culturais. Por isso é que entendemos a repetição da imagem do homem-barro e da
herança de Vô Vicêncio ao longo do texto como estratégia-chave para acessar a
trajetória de deslocamentos e convergências na construção identitária e na
representação da mulher negra na figura de Ponciá Vicêncio.
O homem-barro feito por Ponciá produz, ainda, o
efeito de presentificar a memória cultural de uma comunidade cuja preservação
teria sido entregue à protagonista, como havia anunciado seu pai e Nêngua
Kainda. Assim, quando Ponciá retorna pela primeira vez à antiga vila e lá se
defronta com a casa onde vivera a infância, o objeto que merece mais atenção da
protagonista é a estatueta de barro de Vô Vicêncio, esquecida no fundo do baú.
Como não tinha conseguido encontrar-se com a mãe e o irmão - ambos tinham também
partido para a cidade -, Ponciá preocupa-se apenas em carregar consigo na
viagem de volta, o homem-barro que só a ela era permitido tocar. O reencontro
com aquele objeto causa em Ponciá uma estranha coceira nas mãos, onde também
ficara impregnado um cheiro de barro: Correu lá no fundo da casa, no seu quarto
de empregada, e tirou o homem-barro de dentro da trouxa. Cheirou o trabalho,
era o mesmo odor da mão. Ah! Então, era isso! Era o Vô Vicêncio que tinha
deixado aquele cheiro. (...) Ela beijo respeitosamente a estátua sentindo uma
palpável saudade do barro. Ficou por uns instantes trabalhando uma massa
imaginária nas mãos. Ouviu murmúrios, lamentos e risos... Era Vô Vicêncio.
Apurou os ouvidos e respirou fundo. Não, ela não tinha perdido o contato com os
mortos. E era sinal de que encontraria a mãe e o irmão vivos. (p. 74 - 75)
Além da força simbólica
do homem-barro, que provoca a incômoda e inquietante comichão nas mãos de
Ponciá - metáfora de seu desejo de unir o passado ao presente-, percebe-se
neste trecho um exemplo de como a narrativa utiliza estratégias para acessar o
universo diegético através dos sentidos. Como bem coloca Maria José Somelarte
Barbosa, no prefácio do romance, a poética de Conceição é visceral, tanto na
prosa como na poesia, levando o(a) leitor(a) a traçar, junto com as
personagens, as complexas viagens que fazem em busca de si mesmas e os
profundos questionamentos sobre o mundo ao seu redor (Cf. BARBOSA apud
EVARISTO, 2003: 8). Neste sentido, é importante ressaltar que a memória de Ponciá
é ativada repetidamente pela lembrança do cheiro de café e do sabor das broas
de milho; pela visão do arco-íris (a “colorida cobra do ar” que a menina temia
por achar que, ao passar debaixo dele, viraria menino) e pelo olhar perdido no
tempo; pela capacidade da personagem de “escutar os passos do passado”; e, por
fim, pela modelagem do barro. Ao mesmo tempo em que estes elementos remontam o
passado histórico-cultural de origem africana, vivenciado mais substancialmente
no povoado, onde parecia que “havia ali um pulso de ferro a segurar o tempo”
(p. 48), a narrativa busca também penetrar nos sentidos que movem a cidade,
onde Ponciá “gastava a vida em recordar a vida” (p. 93): a visão das luzes e
dos santos na catedral e o cenário degradante do barraco empoeirado; o som das
músicas cantadas na igreja e das badaladas do sino; o choro de fome ou frio de
uma criança da periferia; o barulho dos ratos escondidos nos cantos do barraco
e o do trem na estação; o olhar de Ponciá que atravessava a janela do barraco
para se perder no tempo lá fora ou aquele que fitava o marido como se não o
visse. O romance de Evaristo penetra, assim, pelas vísceras de um espaço-tempo
que se conjuga em uma visão caleidoscópica de duas realidades cujo pano de
fundo é compartilhado na tentativa de resignificar as mutilações e ausências
históricas.
As andanças de Ponciá Vicêncio - suas idas e vindas no
tempo, seu retorno ao povoado na tentativa de rever a família - também são
acompanhadas pelos movimentos errantes de sua mãe e de seu irmão. Luandi também
vai para a cidade e retorna ao povoado, tempos depois, para buscar a mãe, mas,
assim como Ponciá, encontra a casa vazia. Já Maria Vicêncio vai, aos poucos,
afastando- se do povoado, em sucessivas idas e vindas, até que decide ir de vez
para a cidade buscar os filhos. Ambos mantêm-se conectados à Ponciá, não apenas
através do laço familiar, mas através do exercício de manter ativa a memória e
a certeza de que em Ponciá encontrariam a “herdeira de uma história tão
sofrida” (p. 130). Mais uma vez, configura-se na narrativa uma mobilidade
temporal e espacial que dá início a um esquema de construção identitária
articulada nos interstícios da subjetivação. As imagens do trem, do rio, do
barro e do arco-íris denotam que estes processos de construção e afirmação da
identidade invadem espaços intervalares; projetam-se na fronteira que divide a
revisão do passado e a (re)semantização do presente; concretizam-se no ato
incessante e fluido do ir e vir, nas transformações dos signos identitários. Assim,
entendemos que a metáfora da casa tantas vezes encontrada vazia/abandonada por
várias das personagens também parece indicar que esse não era o lugar que, de
fato, lhes pertencia. A respeito dessa nova configuração de espaço- tempo,
recorremos, outra vez, às colocações de Bhabha: O trabalho fronteiriço da
cultura exige um encontro com “o novo” que não seja parte do continuum de
passado e presente. Ele cria uma idéia do novo como ato insurgente de tradução
cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente
estético; ela renova o passado, refigurando-o como um “entrelugar” contingente,
que inova e interrompe a atuação do presente. O “passadopresente” torna- se
parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver. (BHABHA, 2005: 27)
É exatamente na
perspectiva de “passado-presente” de Bhabha que as últimas linhas do romance
narram o reencontro de Ponciá com sua mãe e seu irmão, cujo cenário não poderia
ser outro, se não o da estação de trem. É, ainda, na cena do reencontro que
podemos decifrar o cumprimento da herança que Vô Vicêncio deixara para a neta:
andando em círculos “(...) como se quisesse emendar um tempo ao outro” (p.
132), levando nas mãos o homem-barro, Ponciá remonta sua história, “(...)
decifrando nos vestígios do tempo os sentidos de tudo que ficara pra trás”; e
percebendo, finalmente, que “A vida era a mistura de todos e de tudo. Dos que
foram, dos que estavam sendo e dos que viriam a ser” (p. 131). Reconduzida ao
rio pelas mãos dos familiares, a protagonista mergulha de vez no seu estado de
ausência, regado pelos risos e prantos do avô para que, assim, habitando o
espaço intermediário, seja reconduzida também a presença de si mesma. Na
estrutura narrativa, o fim da história de Ponciá liga-se ao seu começo pela
paisagem do rio sobre o qual se dilui vagarosamente o arco-íris, fechando,
desta maneira, o ciclo da trajetória da personagem, como relatado nos dois
últimos parágrafos: E do tempo lembrado e esquecido de Ponciá Vicêncio, uma
imagem se presentificava pela força mesmo do peso de seu vestígio: Vô Vicêncio.
Do peitoril da pequena janela, a estatueta do homem-barro enviesada olhava meio
para fora, meio para dentro, também chorando, rindo e assistindo a tudo. Lá
fora, no céu cor de íris, um enorme angorô multicolorido se diluía lentamente,
enquanto Ponciá Vicêncio, elo e herança de uma memória reencontrada pelos seus,
não se perderia jamais, se guardaria nas águas do rio. (p. 132)
O romance de Conceição
Evaristo estabelece, dessa forma, uma relação dialógica com uma história por
vezes silenciada ou relegada à margem do reconhecimento crítico, sem, no
entanto, fixar uma leitura pré-determinada dos sujeitos marcados pela
afro-descendência. Seu texto recoloca, sobretudo, a figura da mulher como
sujeito portador dessa história: Ponciá, como mulher negra, protagoniza e
recolhe em si os conflitos, as ambivalências, os processos de exclusão e as
marcas de opressão que permeiam uma trajetória individual e coletiva. Além
disso, traz para o interior do discurso literário, um sujeito feminino negro
representado a partir da contextualização de seu lugar de enunciação,
produzindo um “eu” ou um “nós” em processo. Nesta perspectiva, a narrativa de
Evaristo, ao mesmo tempo em que move a identificação “mulher” em direção a
múltiplos locais de redefinição contextual, cria um espaço de resistência para
a reelaboração das múltiplas subjetividades e das vozes de sujeitos femininos
duplamente marginalizados e oprimidos pelos diversos mecanismos do poder
patriarcal e racista embutidos na sociedade brasileira.”
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